25 anos sem Caio Fernando Abreu: cearenses escrevem cartas ao literato

Autor de “Morangos mofados” e outras obras seminais das letras brasileiras, o escritor, jornalista e dramaturgo é reverenciado por artistas do Ceará que encontraram, na prosa audaciosa de Caio, um modo de estar no mundo

Redigir cartas sempre foi expediente comum de Caio Fernando Abreu, falecido há exatos 25 anos
Foto: Divulgação

“Queridos pai e mãe, 

esta é uma carta só de boas notícias, portanto preparem-se. Em primeiro lugar, a minha voz melhorou! Foi uma mudança completa: estou com uma voz muito bonita, grave, forte, perfeitamente normal”. 

Denso de rotina e afeto, esse trecho de uma das mais famosas cartas escritas por Caio Fernando Abreu (1948-1996), em 29 de outubro de 1969, demonstra a predileção do autor não somente por registrar o cotidiano, mas encapsula-lo num envelope e despachar via Correios para amigos e familiares. Redigir cartas sempre foi expediente comum do escritor, jornalista e dramaturgo gaúcho falecido há exatos 25 anos, em 25 de fevereiro de 1996.

Nesta que destacamos – quando conta aos pais que a voz, outrora motivo de vergonha por soar esganiçada, havia mudado para um tom grave e sedutor, o qual se tornou uma de suas marcas registradas – Caio se alonga em miudezas e fascínio. Sobretudo porque escrevia da Casa do Sol, recanto da escritora Hilda Hilst (1930-2004), com quem travou grande amizade e dividia textos e confidências. Estar nesse espaço onde a arte, o diálogo e a criação literária reinavam absolutos era motivo de singular alegria por parte do literato.

Fato é que, desde criança, CF já escrevia tudo o que pensava em diários. Com o tempo, o tecer de correspondências fez com que enviasse vários textos a leitores, munido do desejo secreto de dividir a rotina com eles – cada dia mais entusiasmados com o modo de contar do escritor. A partida precoce aos 46 anos, contudo, fez com que os amigos ganhassem autorização para tornarem públicas as missivas.

A proposta feita pelo Verso a três cearenses com grande apreço por Caio é que também se debrucem sobre o papel para homenagear o autor no dia em que recordamos sua passagem para o eterno. Assim, o escritor Marco Severo, o ator Lucas Sancho e o curador Bitu Cassundé articulam pensamentos e palavras a fim de também se lançarem nessa redoma de íntimas trocas e confissões. Confira:

 

O ator, diretor e dramaturgo Lucas Sancho
Foto: Divulgação

 

“Talvez resolvesse começar a escrever sem data nem nada, para não contar tudo. Talvez deixasse a carta assim mesmo, só uma data num papel em branco” 

Caio,

Nesta madrugada pandêmica, na solidão do meu quarto, te escrevo e me lembro de dragões. Há treze anos, quando saía de Fortaleza e vinha morar em São Paulo, estava muito desacreditado em mim como ator. “Mas acontece assim quando você sai de uma cidadezinha que já deixou de ser sua e vai morar noutra cidade, que ainda não começou a ser sua. Você sempre fica meio tonto quando pensa que não quer ficar”. Foi numa noite de setembro que li seu conto “Uma praiazinha, de areia bem clara, ali na beira da sanga”.  Nele, o personagem narra a vida na megalópole após ter fugido da sua cidade de origem. Um conto que fala de amor, posse, descontrole e humanidade.

“Ando tão triste que às vezes me jogo na cama, meto a cara fundo no travesseiro e tento chorar. Claro que não consigo. Solto uns arquejos, roncos, soluços, barulhos de bicho, uns grunhidos de porco ferido de faca no coração. Sempre lembro de você nessas horas. Hoje, preferi te escrever.”

Tua escrita me deu a ousadia para fazer meu primeiro espetáculo solo “Dias de Setembro”. Tua poesia visceral, pungente e crua, por mais contraditório que possa parecer, curou muitas feridas minhas.

Treze anos depois estou desta vez como diretor de um espetáculo que é uma homenagem ao teu espírito livre, vanguardista e doído. “Caio, quando o amor não vem” é o nome da peça. Você iria gostar… Ou não.

E agora aqui te escrevendo enxergo aquele Lucas que está numa megalópole de areia bem clara. Talvez fugindo, talvez se encontrando.

Um grande beijo,
Lucas Sancho

Lucas Sancho é ator, diretor e dramaturgo, fundador do núcleo O Ator Maestro, em São Paulo – grupo de pesquisa e montagem de solos teatrais, tendo o ator como regente da cena. É também criador da Magnólia Cultural, produtora de espetáculos e projetos independentes desde 2013

 

O escritor Marco Severo
Foto: Isanelle Nascimento

 

Caio,

Um quarto de século se passou desde sua partida e o Brasil que você observava tão de perto ficou muito mais bruto desde então. Às vezes penso que escritores como você, meio bruxos, ainda assim teriam dificuldade em lidar com esse lodo onde nos enfiamos. Que diria você desse cenário em chamas?

Vale o exercício. Ainda lembro quando li Sargento Garcia, que chegou a mim através de um amigo que me falara do lirismo narrativo, apesar da história dilacerante – e o meu espanto, pois aquilo era novo para mim, que tateava meio sem rumo – o mundo por ser descoberto – mundo no qual você também estava. Por isso mesmo tudo que veio depois: suas crônicas, cartas, sua famosa participação no Roda Viva no qual Rachel de Queiroz era a sabatinada da vez, e eu capturava sua maneira de lidar com o que lhe atingia e entendia que suas inquietações eram minhas.

Por isso imagino você certo do seu legado. Vinte e cinco anos, o que são, já que o tempo é só uma contagem para fingir dar sentido a um mundo caótico?

Marco Severo é escritor, autor dos livros “Os escritores que eu matei” (2015), “Todo naufrágio é também um lugar de chegada” (2016), “Cada forma de ausência é um retrato da solidão” (2017), “Coisas que acontecem se você estiver vivo” (2018)”, “Se eu te amasse, estas são as coisas que te diria” (2019) e “Um dos nomes inventados para o amor” (2020), todos publicados pela editora Moinhos

 

O curador Bitu Cassundé
Foto: Fabiane de Paula

 

Caio querido,

Leia-me ao som de Blues da Piedade (Cazuza) ou Balada da arrasada (Angela Ro Ro), por favor, pois ao escutar estas canções, sinto ouvir-te sussurrar. Esses artistas tão intensos da sua geração amplificam o seu gesto poético; nas vozes deles, sua voz também ecoa, comungando de lutas, desejos, prazeres e melancolias. Geração marcada pela ditadura militar, assistiu a anistia e a desejada democracia, depois foi atropelada pela epidemia da AIDS e sua implacável violência inicial. Nascido em 1974, numa pequena cidade do interior do Ceará, minha percepção do mundo foi contaminada por essas questões e também pela rica produção cultural de sua geração.

Seus livros me chegaram no início da fase adulta. Prosa radical para uma bicha como eu, com a libido ainda mal resolvida, enrijecida numa coreografia de vida que aprisionava meu corpo, e ainda rendida ao exagerado ideal romântico libriano. Arrebatou-me ler Os dragões não conhecem o paraíso, ali te encontrei como um verdadeiro amigo, um confidente, e compreendi a potência da comunhão.

Anos depois, ao pesquisar com furor a obra do artista cearense José Leonilson, retornei àquela sensação de te encontrar. Nas duas poéticas, a força do biográfico, da solidão, da busca, do amor. Em Porto Alegre, sua cidade natal, organizei uma individual de Leonilson na Fundação Iberê Camargo e meu texto de catálogo inicia com um fragmento de seu “Sobre o vulcão” (1989). Nada define vocês dois tão bem quanto um vulcão em erupção.

No se puede vivir sin amor.

Bitu Cassundé

Bitu Cassundé é curador e pesquisador. Foi diretor do Museu de Arte Contemporânea do Ceará e coordenou o Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema das Artes

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