A chaga da escravidão (6ª parte)

Nos quilombos, povo africano reproduzia dialetos e outros ritos da terra natal

Nos quilombos, povo africano reproduzia dialetos e outros ritos da terra natalFoto: Da editoria de Arte

Os escravos quando chegaram ao Brasil, tiveram que aprender novos hábitos. Passaram a viver em senzalas. Para Joaquim Nabuco (1849-1910), “o pombal negro”. Construídas perto das casas-grandes, ao alcance do grito dos senhores de engenho.

Eram de taipa em pau-a-pique (gradeado de ripas de madeira, galho ou bambu, preenchidos com barro amassado), cobertas com palha ou telhas feitas no próprio engenho. Sem janelas. Por dentro, cubículos conjugados davam para uma grande galeria comum.

Pela má acomodação, pelo excesso de trabalho e sobretudo pela má alimentação, muitos morriam nesses dormitórios. Maus tratos e castigos eram frequentes. Tinham os pés acorrentados e usavam colar de ferro. Apanhavam com chicote, varas e cinturão de couro.

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Ou acabavam postos no ferro e no tronco. Muitos foram punidos com castração, quebra de dentes, vazamento de olhos, queimaduras, amputação de seios e orelhas. O castigo não era apenas para corrigir o escravo punido. Mas sobretudo para amedrontar os outros, que eram forçados a assistir àquele ritual macabro.

Alguns poucos escravos conseguiam fugir e se organizar em mocambos (em banto, esconderijo) e quilombos (povoação) nas florestas. O maior e mais famoso deles foi o dos Palmares (Alagoas). Lá viveram o rei Ganga Zumba (grande senhor) e seu sobrinho Zumbi (deus da guerra) – que, apesar de baixo e coxo, é reconhecido como muito valente.

Nesses quilombos passavam a ter os mesmos hábitos da África distante. A falar a própria língua. A exercer seus rituais religiosos. E a se alimentar do que lhes dava prazer.

Nas senzalas, aprenderam a substituir ingredientes de suas receitas originais pelo pouco que lhes davam. Peixes secos, por frescos. Grandes animais, por capivaras, cobras, cutias, jacarés, lagartos, preás, porcos-do-mato, tatus, tartarugas.

Insetos, também – besouros, cupins, formigas, gafanhotos, tanajuras, tapurus. Pimentas africanas (zingiberáceas e piperáceas), pelas nativas (capsicum). Mancarra, por amendoim. Inhame, por mandioca. Banana, por pacova – embora preferissem as de sua terra, pela acidez do tanino dessas pacovas.

E comiam banana de muitos jeitos – com mel, farinha ou açúcar mascavo – acompanhando todos os alimentos. Substituíam, no gosto, melancia por abacate, abacaxi, abio, goiaba. Os que viviam próximos a cajueiros, logo introduziram o caju entre as suas preferidas. “Fugiam de noite, mesmo palmilhando quilômetros para o saque de caju”, segundo Câmara Cascudo (1898-1986, em História da Alimentação no Brasil).

É que os senhores, para evitar o escorbuto, consentiam que escravos tivessem, no pomar, as frutas que quisessem. Mas eles preferiam mesmo o alimento dissolvido – por acreditar fossem mais fortes. E mais próprio também às suas bocas desdentadas. Até porque, antes de dormir, enquanto na casa-grande esfregavam os dentes com triaga magma (mistura de 74 drogas, que se acreditava curar tudo), restava aos escravos o alho – a triaga dos rústicos. Um dente de alho para cada um.

Era comum, nesses escravos, chegar aos 40 anos sem um único dente na boca – segundo o Trattado Unico da Constituição Pestilencial de Pernambuco, do médico João Ferreira da Rosa, impresso em Lisboa (1694), talvez o primeiro livro de medicina do Brasil. No almoço comiam basicamente feijão, farinha, jerimum e carne (seca ou fresca) cozinhada. Almoçavam às nove da manhã e jantavam à uma da tarde.

O sorgo, tão presente na culinária africana, acabou substituído, aqui, pelo milho – durante muito tempo alimento destinado apenas a escravos e a animais. “Os portugueses plantam milho para a mantença de cavalos, galinhas, porcos e escravos da Guiné”, segundo o viajante Gabriel Soares de Souza (1540-1591, em Tratado Descritivo do Brasil em 1587).

Com leite de coco, açúcar e farinha desse milho (a que chamavam fubá), iam nascendo por mãos negras novas receitas, depois, todas elas, adotadas também pela casa-grande. Entre elas: angu (do tupi, angau) – semelhante ao infundi ou anfunge, que originalmente levava caldo de peixe ou miúdos de boi, engrossado com farinha de sorgo.

“É fazendo cozer o fubá na água, sem acrescentar sal, que se faz uma espécie de polenta grosseira, que se chama angu e que constitui o principal alimento dos escravos” escreveu o cientista francês Auguste Saint-Hilaire (em Viagem às nascentes do rio São Francisco).

Mungunzá vem de mu’kunza (milho cozido) servido, na tradição religiosa africana, às pessoas que compareciam aos velórios. É uma espécie de sopa doce que aqui passou a ser feita com milho branco cozido em água e leite de coco, temperado com açúcar, erva-doce, canela ou cravo. No sul do Brasil, é conhecido como canjica.

Canjica vem de acanjic (em tupi, grão cozido), que escravos melhoraram com o acréscimo de leite de coco ou de vaca, sal, açúcar, manteiga. No sul essa canjica acabou mais conhecida por curau. Com os portugueses aprenderam também os escravos a decorar essa canjica com desenhos de canela, da mesma maneira que decoravam o arroz doce.

Pamonha é adaptação da pamunhã (em tupi, papa grossa de milho) indígena, originalmente cozida na folha de bananeira. Os escravos passaram a usar a palha do próprio milho. Cuscuz se fez reproduzindo, aqui, a mesma maneira de como eram feitos por lá, apenas substituindo farinha de sorgo, de arroz ou de trigo, pela do nosso milho.

Todas essas receitas se enraizaram na nossa cultura. Tanto e de tal forma que são obrigatórias em todas as mesas nordestinas. Sobretudo nessa época quando celebramos nossas festas juninas.

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