A corrida para salvar 33 marinheiros e 1 cachorro da ilha onde missionário foi morto por nativos há 1 ano

imagem de satélite do naufrágioDestroços do navio Primrose, que encalhou na ilha do Sentinela do Norte durante um tufão em agosto de 1981

“Homens selvagens, provavelmente mais de 50, com armas caseiras, estão fazendo dois ou três barcos. Temo que eles nos alcancem no pôr do Sol. A vida de todos os tripulantes está em risco.”

A corrida contra o tempo começou com essa mensagem enviada pelo capitão do cargueiro de bandeira panamenha MV Primrose no início de agosto de 1981 à empresa Regent Shipping, sediada em Hong Kong.

Dias antes, a embarcação de 16 mil toneladas, de fabricação japonesa, que havia saído de Bangladesh em direção à Austrália encalhou durante um tufão nos arredores da ilha remota Sentinela do Norte, onde uma tribo de aborígenes vive isolada do mundo exterior.

Foi ali, onde as visitações são proibidas pelo governo da Índia, que o jovem missionário americano John Allen Chau acabou sendo morto a flechadas por integrantes da tribo em 17 de novembro de 2018.

O mesmo mau tempo que levou ao acidente do MV Primrose por volta da meia-noite servia temporariamente de obstáculo impedindo os sentinelas, armados com arco-e-flecha e lanças, de chegarem de canoa até o navio.

O capitão taiwanês Liu Chunglong chegou a solicitar que aeronaves lançassem armas para que eles pudessem se defender, mas o pedido não teve resultado.

Temendo uma invasão, a tripulação passou fazer vigílias com armas improvisadas, entre canos de ferro, pistolas de sinalizadores e machadinhas. A bordo estavam 33 pessoas e um cachorro.

Primeira tentativa de resgate

A quase 50 km dali, em Port Blair, as autoridades diziam que a situação estava sob controle. “Estamos em constante contato com a tripulação”, afirmou à época o coronel indiano Prithvi Nath. “Eles estão bem e têm bastante comida e água.”

A primeira tentativa de resgate foi pelo mar, mas as condições climáticas não permitiram a aproximação e o bote inflável usado pela Marinha indiana quase naufragou também na região noroeste da ilha.

vista aérea do navio encalhado PrimroseRegistro do Primrose feito a partir do helicóptero usado pela equipe de resgate

“Nossa embarcação se aproximou e tentou transferir os tripulantes (do Primrose), mas isso não foi possível por causa do mau tempo”, disse Nath a jornalistas na ocasião.

A segunda tentativa de aproximação seria feita pelo ar.

Piloto na Guerra do Vietnã nos anos 1970, o americano Robert Fore trabalhava em Port Blair para a empresa indonésia P.T. Airfast.

À época, a empresa tinha um contrato com a Comissão de Petróleo e Gás Natural do governo indiano, e o ex-militar americano era um dos pilotos da equipe.

Os pilotos e mecânicos que não eram nativos ficavam hospedados em um hotel de Port Blair. “Eles tinham até uma filmagem sobre a ilha Sentinela do Norte que nos deu uma ideia de que a ilha era hostil, e era melhor deixá-la em paz”, relembra Fore em entrevista à BBC News Brasil.

Um grupo de sentinelasAcredita-se que entre 50 e 150 aborígenes habitem a ilha

Segundo ele, a filmagem de 8mm feita durante uma expedição do governo indiano mostrava sentinelas de início amistosos, recebendo suprimentos como lençóis, potes e panelas. Mas o clima mudou rapidamente, e as autoridades passaram a “correr por suas vidas” sob uma chuva de flechas.

O cinegrafista, que continuou filmando durante a fuga até ao barco, encerra a gravação com um close em uma flecha fincada perto de sua coxa.

‘Pesadelo’

Ele conta ter recebido a visita de um representante da Marinha indiana em busca de voluntários para fazer o resgate da tripulação do MV Primrose. Fore e o colega Vic Weirzba aceitaram integrar a equipe, que contaria também com um jovem piloto militar indiano.

“Nós éramos simples pilotos de helicópteros profissionais que estavam no lugar certo e na hora certa com o helicóptero perfeito para fazer o resgate.”

Eles contavam com poucas informações sobre a missão, se havia náufragos feridos ou se as condições climáticas na região ainda estava adversas, por exemplo. Por isso, o plano de resgate incluía uma escada de corda que fizeram rapidamente, caso não fosse possível descer no local.

Para ele, seria um pesadelo caso os passageiros precisassem subir por essa escada em meio a rajadas de vento.

Mas, apesar das ondas que chegavam a quase seis metros, eles conseguiram pousar sobre o próprio cargueiro encalhado a quase 100 metros da costa da ilha de quase 50 quilômetros quadrados.

vista do navioPilotos tinham poucas informações concretas sobre a missão

O helicóptero usado na missão, um Sikorsky S-58T, tinha capacidade para levar dois pilotos e até 16 passageiros. Só que para garantir leveza e agilidade caso precisassem se deslocar rapidamente, eles decidiram voar com pouco combustível no tanque.

Os náufragos seriam divididos em três viagens que durariam em torno de meia hora cada, e a aeronave seria reabastecida a cada chegada, momento em que os pilotos revisavam o andamento da empreitada.

Em razão dessa dinâmica, Fore e Weirzba não tiveram oportunidade de conversar com os náufragos a cada trajeto — a maioria dos marinheiros era oriunda de Hong Kong.

“Nós não chegamos a ver nenhum nativo, então pudemos nos concentrar no navio. No fundo, sabíamos que a ameaça estava por perto, mas não havia nada que os sentinelas pudessem fazer para parar nossa missão”, conta.

Ao fim do último voo, um entre os milhares que realizou nas carreiras militar e civil, Fore diz ter retomado sua rotina sem refletir muito sobre o assunto.

náufragos durante o resgateTripulantes do Primrose foram divididos em três grupos durante o resgate

A morte de John Allen Chau

Hoje com 70 anos, o piloto aposentado vive em Pampanga, nas Filipinas. Diz que só passou a pensar mais sobre o resgate na ilha Sentinela do Norte décadas depois.

“Não me surpreenderia descobrir o que a tradição norte-sentinelesa conta daquele dia, sobre uma estranha entidade voadora, que os habitantes da ilha talvez nem tenham se dado conta de que havia humanos dentro, que tenha retirado os intrusos que ameaçavam sua pacífica existência”, disse em entrevista ao escritor Dennis Price na revista Mindscape anos atrás.

As lembranças voltaram com força há exatamente um ano, quando o aventureiro e missionário John Allen Chau foi morto aos 27 anos durante uma tentativa de aproximação dos sentinelas.

Chau com uma cachoeira ao fundoNo Instagram, @johnachau descrevia a si mesmo como ‘um sobrevivente de picada de cobra’ e ‘paramédico da natureza selvagem’

Os pescadores que levaram o americano ilegalmente para a ilha, em 17 de novembro de 2018, disseram ter visto membros da tribo arrastando e enterrando o corpo dele na praia.

Chau queria contatar a tribo para propagar o cristianismo, de acordo com as anotações que ele deixou antes de sair e que foram divulgadas pela imprensa local.

“Vocês podem pensar que sou louco… Mas eu acho que vale a pena falar de Jesus a essas pessoas”, escreveu o jovem na última carta que enviou aos pais.

Depois de sua morte, a família dele divulgou um comunicado perdoando os sentinelas pelo assassinato e afirmando que o jovem “amava a Deus, a vida, ajudando os necessitados, e não tinha nada além de amor pelo povo da ilha de Sentinela”.

Para o piloto Robert Fore, é triste qualquer perda de vida humana, principalmente a de um jovem tentando realizar o que considera o certo. Mas critica as possíveis consequências da empreitada de Chau, que caracteriza também como uma busca por adrenalina.

“Eu não posso falar sobre o que passou pela cabeça dele, mas parece que ele foi uma vítima da própria mentalidade de sua geração. Eles se consideram os únicos capazes de fazer o que querem sem pensar na repercussão ou se preocupar com os outros.”

O contato com várias tribos do arquipélago de Andaman e Nicobar, no oceano Índico, que correm risco de extinção e vivem isoladas do mundo, é proibido com o intuito de preservar seu estilo de vida e protegê-las de doenças.

As autoridades dizem que os membros da tribo vivem isolados há quase 60 mil anos e, portanto, não têm imunidade para doenças comuns, como gripe e sarampo.

A tribo da Ilha Sentinela ainda é um mistério. Não se sabe que língua eles falam, nem quantos são. Estima-se que existam entre 50 e 150 pessoas na tribo.

O rapto de 6 sentinelas

Relatos em torno de uma suposta hostilidade dos sentinelas circulam há décadas.

Para o antropólogo indiano T. N. Pandit, uma das poucas pessoas que já tiveram contato com sentinelas, a fama de uma violência deliberada da tribo é injusta.

“Os sentinelas são um povo que ama a paz. Eles não buscam atacar as pessoas. Eles não visitam áreas próximas e causam problemas. Esse foi um incidente raro”, afirmou à BBC no ano passado.

Em sua primeira visita, ele relembra que “os guerreiros sentinelas nos encararam com rostos irritados e sombrios, totalmente armados com seus longos arcos e flechas, preparados para defender suas terras contra intrusos”.

E completa: “Quando eu estava distribuindo cocos, me distanciei um pouco do resto do grupo e comecei a me aproximar da praia. Um garoto sentinela fez uma cara engraçada, pegou uma faca e sinalizou para mim que cortaria minha cabeça. Chamei imediatamente o barco e parti”.

Pandit não foi o primeiro estrangeiro na ilha, localizada em uma região estratégica.

As Ilhas Andaman são o lar de quatro tribos “africanas” — os grandes andamanenses, os onge, os jarawas e os sentinelas. Já as Ilhas Nicobar abrigam duas tribos “mongóis” — os shompen e os nicobareses.

No século 19, colonizadores britânicos estabeleceram uma colônia penal no arquipélago para abrigar rebeldes que participaram da revolta popular de 1857, descrita por historiadores nacionalistas como a primeira guerra da Independência da Índia. E logo se viram lutando contra as tribos locais.

Maurice Vidal PortmanPortman guardou várias fotografias de seus encontros com as tribos aborígenes que conheceu enquanto vivia no Pacífico

A primeira guerra entre as tropas do Raj Britânico e andamanenses ocorreu em 1859.

As guerras e a disseminação de doenças levaram a um declínio na população de todos os grupos nativos. Mas os sentinelas escaparam de grande parte dos conflitos coloniais.

O episódio mais conhecido de contato com os sentinelas naquela época ocorreu já no final do século 19, quando Maurice Vidal Portman, um jovem oficial da marinha britânica, pisou na ilha. Ele estava acompanhado de um grupo que reunia desde autoridades a criminosos condenados e aborígenes de outras tribos do arquipélago.

Portman queria estudar a língua e os costumes da comunidade, que relutava em se comunicar com o mundo exterior. Mas isso não era um obstáculo para ele.

Segundo um texto publicado pela revista American Scholar no ano 2000 de autoria do professor Adam Goodheart, do Washington College (EUA), os exploradores liderados por Portman encontraram um casal de idosos e quatro crianças da tribo — e os sequestrou.

Sentinelense com arco e flechaOs sentinelas costumam disparar flechas em qualquer um que tente contatá-los

Ele forçou os indígenas a embarcarem em seu navio e os levou até a cidade de Port Blair com o objetivo de estudar os nativos em detalhes.

Mas o sequestro acabou em tragédia, e os idosos morreram doentes em pouco tempo.

As quatro crianças foram levadas de volta à ilha, com presentes para o restante da tribo.

Ao escrever sobre o caso, Goodheart afirma que, anos mais tarde, Portman reconheceu o fracasso de sua intervenção durante uma palestra na Real Sociedade Geográfica, em Londres.

Goodheart conta também ter encontrado com um grupo de irmãos em Port Blair que disse ter autorização do governo para se aproximar da ilha do Sentinela do Norte e coletar metais dos destroços do MV Primrose, encalhado em 1981.

Um dos irmãos contou ao escritor ter acordado com um barulho inesperado durante o período em que estavam ancorados.

Membros da tribo cantavam ao redor de fogueiras na praia. Era noite de lua cheia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *