AI-5: Os bastidores da radicalização da ditadura 

Mais que uma mera lei, o Ato Institucional Número 5 praticamente decretou um outro tipo de governo

Alessandro Meiguins
Imagem retrata o período de repressão
Imagem retrata o período de repressão – Divulgação

O documento era pequeno. Com quatro páginas e 12 artigos, era possível lê-lo em menos de cinco minutos. Foi discutido em poucas horas e teve apenas um voto contra. Ao ser assinado, mudou a face do Brasil e o mergulhou nas trevas.

O Ato Institucional número 5 (AI-5) foi aprovado em uma reunião do Conselho de Segurança Nacional, comandada pelo presidente do país, o marechal Costa e Silva, em 13 de dezembro de 1968.

Foi um fecho autoritário para um ano em que o sonho de liberdade soprou como nunca: as lutas estudantis viraram de cabeça para baixo cidades do Brasil e do mundo.

A ideia era colocar “a imaginação no poder”, como dizia um lema da época. Para os mais politizados, o objetivo era provocar “um, dois, três, mil Vietnãs, que o imperialismo será derrotado”. Na França, as agitações tiveram seu peso, e Charles de Gaulle quase foi deposto. Nos Estados Unidos, o presidente americano Lyndon Johnson perdeu força e desistiu da reeleição.

No Brasil foi diferente. Militares reprimiram com violência as manifestações contrárias ao regime, fossem greves, passeatas ou manifestações culturais. Mataram estudantes. Invadiram teatros. E, quando o ano estava para terminar, editaram o AI-5. O novo tempo nem havia começado e já terminava, abatido com um só golpe.

Durante a reunião de aprovação do texto, realizada numa sexta-feira 13, houve certo constrangimento quando o vice-presidente, Pedro Aleixo, tomou a palavra para expor suas idéias na reunião do Conselho de Segurança Nacional de 13 de dezembro de 1968.

Da boca para fora, o encontro marcado pelo presidente Costa e Silva tinha dois objetivos: expor o conteúdo do Ato Institucional número 5 ao ministério e, em seguida, votar para aprová-lo ou não.

A verdade é que a voz moderada do vice foi vencida antes mesmo do encontro. Ele fazia parte da minúscula ala liberal do governo que propôs um “estado de sítio” para contornar a crise que os militares radicais criaram com a Câmara dos Deputados. Mas Costa e Silva convocara a reunião com um plano fechado em mente: aprovar o AI-5.

“Ou a revolução continua ou a revolução se desagrega”, disse no começo do encontro. Naquele momento, o Ato já estava pronto e mimeografado. Havia sido decidido um pouco antes, pela manhã, em uma reunião fechada do presidente com o alto comando militar. Costa e Silva deu uma cópia a cada um dos ministros.

Depois de um breve discurso, ofereceu 20 minutos para que pensassem e se retirou. Na volta, deu a palavra a todos. Magalhães Pinto, então ministro das Relações Exteriores, observou que estavam criando uma ditadura, mas não se opôs.

Delfim Netto, da Fazenda, pediu que os poderes do presidente fossem ainda mais estendidos, sobretudo em matéria econômica. Jarbas Passarinho, do Trabalho, também usou a expressão “ditadura” para descrever do que se tratava, mas completou: “Às favas, neste momento, todos os escrúpulos da consciência”.

Os ministros militares deram apoio sem pestanejar. Aleixo não foi categórico, mas mostrou discordância. Quando terminou seu pronunciamento, os membros do Conselho pediam: “Ato! Ato! Ato”. “Bom, já que vocês acham que é o Ato, então será o Ato”, disse o marechal Costa e Silva. “Peço a Deus que não venha me convencer amanhã de que ele [Aleixo] é que estava certo”, finalizou, dando o AI-5 por aprovado.

Luta armada crescia

O ato foi a resposta do governo para a pressão que sofria pela democratização do país, que cresceu durante 1968. E também às ações da esquerda armada, que ganharam corpo e audácia. Significou a vitória da linha dura militar, que queria atacar com mais violência na repressão, nem que para isso fosse preciso passar por cima do presidente.

“O Costa e Silva estava sob cerco virtual. Os chefes militares foram taxativos: ou se aprovava o AI-5 ou as Forças Armadas não teriam como garantir a segurança nacional interna”, relata Jarbas Passarinho, ex-ministro de Costa e Silva e um dos integrantes da equipe que assinou o AI-5.

“Se o chefe vacila, ultrapassemos o chefe’, era o que falavam”, nas palavras de Passarinho. Como se tornou usual dizer, o AI-5 representou um golpe dentro do golpe. Para quem queria ampliar os porões da ditadura, foi entendido como uma licença para matar.

A violência policial no regime militar / Crédito: Wikimedia Commons

O clima de radicalização cresceu durante todo o ano, mas a justificativa de que os radicais precisavam para endurecer foi um discurso de apenas cinco minutos. No dia 2 de setembro de 1968, na Câmara, o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, espinafrou os militares e perguntou: “Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?”.

Marcito, como era conhecido, tinha autoridade para desafiar os radicais: havia denunciado e provado dezenas de casos de tortura ocorridos na época de Castello Branco. Seu discurso foi mimeografado e distribuído em todos os quarteis.

Um detalhe aparentemente banal, mas que soou especialmente provocativo, era que Moreira Alves pedia o boicote às paradas militares que aconteceriam em menos de uma semana, numa convocação “às moças, às namoradas, àquelas que dançam com os cadetes e freqüentam os jovens oficiais”.

Quem mais criou caso foi o grupo de radicais encabeçado pelo ministro Lyra Tavares. Ele encaminhou um ofício ao presidente, mostrando-se indignado. Jayme Portella, chefe do Gabinete Militar, dedicou-se à construção da crise. O governo aceitou as provocações e solicitou à Câmara dos Deputados uma licença para processar Moreira Alves, que, como deputado, tinha o que se chama de imunidade parlamentar.

Rota de colisão

Tudo não passava de manobra para colocar governo e Câmara em rota de colisão. Nos bastidores, oficiais encorajaram parlamentares a votar contra a autorização para o processo, como relatou o general Golbery do Couto e Silva ao embaixador americano John Tuthill, que depois reportou a conversa a Washington. “Quanto mais as coisas piorarem, melhor para nós e nossos objetivos”, teria ouvido Golbery do grupo.

O esboço do AI-5 foi rabiscado na véspera, ainda antes da decisão da Câmara. Para não ser surpreendido, explicaria o autor, o próprio presidente Costa e Silva. Naquele momento, a votação para o pedido de licença para processar Moreira Alves estava em curso. No final do dia, as coisas definitivamente pioraram.

A Câmara manteve a imunidade. A noite foi dura para Costa e Silva. Dezenas de generais o procuraram para exigir uma retaliação. No Palácio da Guanabara, o clima era de incerteza e medo de que um golpe pudesse acontecer a a qualquer instante.

Na manhã do dia 13, em uma solenidade na Escola Naval que ocorreu antes da reunião do Conselho de Segurança Nacional, quem estava presente soube que “a decisão era para valer”. Era uma senha. Significava que o presidente cedera à linha dura, e o país estava prestes a viver seus anos de chumbo. O Ato Institucional já estava decidido.

O AI-5 tinha um texto curto porque, pelo seu espírito, nem precisaria descer a detalhes. Na prática, dava carta branca aos dirigentes militares e atropelava o direito dos cidadãos. Com ele, o governo pôde “cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, proibir manifestações sobre assuntos políticos, suspender o habeas corpus em crimes contra a segurança nacional”, num resumo feito pelo sociólogo Marcelo Ridenti, autor do livro O Fantasma da Revolução Brasileira.

Segundo o ex-ministro Jarbas Passarinho, o AI-5 era um mal necessário, uma licença jurídica “apenas para a linha dura conseguir seu objetivo, o de prender os comunistas”. Ele dá um exemplo de como a ordem legal anterior dificultava o combate aos grupos armados de esquerda, que praticavam até atos terroristas, isto é, usavam violência contra alvos civis.

Em abril de 1964, a polícia havia prendido Carlos Marighella, integrante do Partido Comunista. Dias depois, teve que soltá-lo, porque Marighella conseguiu um habeas corpus, mandado judicial que beneficia alguém que esteja sob ameaça de sofrer coação ou detenção de forma ilegal ou abusiva. O ex-preso viveria na clandestinidade e se tornaria um dos adversários mais temidos do regime.

Presos sem contato

“Os militares só conseguiram atacar com o amparo do AI-5”, explica Passarinho. Atacar é bem a palavra. Logo depois da edição do ato, começaram as prisões em série. Nos primeiros dois meses, houve a cassação ou suspensão de direitos de 441 cidadãos, segundo o historiador Thomas Skidmore.

No início de 1969, estabeleceu-se que os responsáveis pela segurança nacional podiam prender quem quisessem por 60 dias, sendo que dez deles em regime incomunicável, isto é, sem que familiares ou advogados soubessem que a pessoa fora presa. Era o cheque em branco que os porões queriam para tornar a tortura uma “técnica” regular nas investigações.

A censura tornou-se implacável. Passou a proibir músicas, peças de teatro e filmes. Nos jornais, censores analisavam o conteúdo de tudo o que seria publi-cado no dia seguinte, vetando notícias de prisões, torturas ou desaparecimentos. “Por algum tempo, não seria tolerada qualquer oposição ao governo, nem mesmo a do moderado MDB”, relata Marcelo Ridenti. “Era a época do slogan oficial “Brasil, ame-o ou deixe-o””, diz o sociólogo, relembrando a frase que sugeria que nenhuma discordância seria admitida.

Presidente Costa e Silva / Crédito: Divulgação

O AI-5 contribuiu para engrossar a luta armada contra o regime. Grupos que já praticavam ações violentas, como a Ação Libertadora Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), concluíram que não havia outro caminho a não ser acirrar o combate. Mas outros setores, que antes relutavam a pegar em armas, passaram a não ver outro modo de combater a ditadura. Criou-se um círculo vicioso. Quanto mais atentados, mais dura ficava a repressão.

Os efeitos do AI-5 foram ainda mais profundos por conta do afastamento do general Costa e Silva, em 1969. O presidente se rendeu à linha dura no final de 1968, mas no ano seguinte tinha planos de trilhar um caminho mais suave. Ele preparava outra Constituição, que estava sendo escrita por representantes liberais do governo, Miguel Reale, Hélio Beltrão e Pedro Aleixo, vice-presidente da República. “Basta de cassações”, disse, na época, a Jarbas Passarinho.

A intenção de Costa e Silva era colocar a nova Constituição em vigor em 1º de setembro e, no dia 7, convocar o Congresso de volta aos trabalhos. Dias antes, no entanto, o presidente foi vítima de uma isquemia cerebral. Os primeiros sinais apareceram em 27 de agosto. Mais dois dias, e o marechal ficou mudo e com o braço direito paralisado.

Protesto contra a ditadura / Crédito: Divulgação

Costa e Silva foi afastado do governo e, com ele, o esboço do que poderia ser uma liberalização do regime. Começa então, às pressas, os arranjos para tratar de sua sucessão. O ministro e general Jayme Portella patrocina a criação de uma Junta Militar provisória, para evitar que assumisse o vice, Pedro Aleixo, persona non grata entre os radicais desde que, por linhas tortas, se posicionou contra o AI-5.

A junta promulga uma nova Constituição, que incorpora o AI-5. O Congresso é reaberto apenas para referendar o candidato do regime à Presidência da República, o general Emílio Garrastazu Medici, representante da linha dura.

Estava garantida a continuidade do AI-5, que vigorou por dez anos e 18 dias. O governo de Medici se caracterizou pela eliminação física da oposição armada. “A tortura foi seu instrumento extremo de coerção e o extermínio, o último recurso da repressão política que o AI-5 libertou das amarras da legalidade”, diz Elio Gaspari, no livro A Ditadura Escancarada.

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