Arrependimento após mudança de sexo: ‘Como volto a ser a Debbie que eu era?’

Debbie
Debbie agora está sendo tratada em uma das clínicas de identidade de gênero do serviço público de saúde britânico

“Foi um erro. Como eu volto a ser a Debbie que eu era?”

Debbie nasceu menina e viveu a maior parte de sua vida dessa maneira.

Mas quase duas décadas atrás, aos 44 anos, ela procurou ajuda para fazer a transição de uma mulher para um homem.

Debbie passou por uma transição cirúrgica completa, que incluiu a realização de uma cirurgia em que um pênis foi construído a partir da pele do antebraço.

Ela mudou seu nome para Lee e passou 17 anos tomando testosterona — hormônio que pode levar a mudanças como mais pelos faciais e mais desenvolvimento muscular.

Ela acreditava que a transição permitiria que ela “fosse aceita no mundo”. Mas agora, com 61 anos, ela está voltando ao gênero que foi designado no nascimento.

O número de pessoas que questionam abertamente sua identidade de gênero aumentou rapidamente e a demanda por serviços especializados em identidade de gênero no serviço público de saúde britânico está no nível mais alto de todos os tempos.

Muitos dos que fazem a transição para um gênero diferente daquele designado no nascimento têm uma vida feliz. Mas a BBC News ouviu outras pessoas que, como Debbie, reverteram o processo.

Revertendo a transição

“Eu era uma criança que não se conformava com padrões de gênero”, disse Thain, agora com 40 anos.

“E havia o fato de que eu gostava de garotas e simplesmente não conhecia ninguém que fosse lésbica.”

ThainThain começou a transição aos 20 anos, mas decidiu parar alguns anos depois
Presentational white space

Na adolescência, Thain disse que o crescente desconforto que ela sentia em relação à sua identidade a convenceu de que era transgênero.

Aos 26 anos, Thain procurou ajuda do serviço de saúde e recebeu testosterona. Mas depois de dois anos, ela decidiu parar de tomar o hormônio e reverter a transição.

“Foi só quando descobri a comunidade feminista radical que realmente tomei a decisão de parar”, disse Thain à BBC News.

Charlie Evans, 28 anos, também se incomodou com sua identidade de gênero desde tenra idade. Aos 15 anos, começou a se identificar como menino, raspando a cabeça, amarrando os seios e usando pronomes masculinos.

Ela nunca tomou testosterona e depois de vários anos, voltou a se identificar como mulher.

Desde então, ela criou uma rede de apoio aos “destransicionadores” e disse que foi contatada por cerca de 300 pessoas, incluindo algumas que disseram ter feito a transição cirúrgica.

“A maioria de nós é atraída pelo mesmo sexo”, disse ela à BBC News. “A maioria se identifica como lésbica ou bissexual e muitas são autistas.”

Charlie disse que muitas dessas mulheres, no momento em que procuraram tratamento, “não estavam em um estado em que pudessem dar consentimento (à transição médica) porque se sentiam mal devido a distúrbios alimentares ou depressão”.

Charlie
Charlie diz que ficou surpresa com o número de pessoas que entraram em contato com sua rede de apoio a pessoas que estão interrompendo transições

Tentativa de fuga

Lui Asquith, da organização Mermaids, que apoia jovens transexuais e de gênero diverso, alertou que essas experiências não devem ser usadas para insinuar que está faltando rigor ao sistema ou que as pessoas “estão sendo pressionadas a serem trans”.

“Isso está errado”, disse ele. “Você não pode fazer alguém ser trans.”

Não há dados oficiais para o número de pessoas que fazem a “destransição”. Alguns estudos falam em 2%, enquanto outros indicam menos. Mas especialistas disseram à BBC News que os estudos são falhos.

O psicoterapeuta James Caspian trabalha com adultos transgêneros há mais de uma década. Mais recentemente, ele foi contatado por dezenas de destransicionadores.

“Toda essa área da medicina transgênero é muito pouco pesquisada”, disse ele. Mas ele identificou certos temas comuns entre os destransicionadores com quem falou.

“Muitos deles parecem ter tido uma experiência muito negativa de ser mulher em um corpo feminino — assédio sexual, abuso”, disse ele.

Debbie acredita que fez a transição como uma maneira de lidar com os abusos sexuais que sofreu quando criança.

“Eu pensei que estava em uma jornada para me tornar uma pessoa diferente. Eu me transformaria em outra pessoa e deixaria a mulher traumatizada para trás”, disse ela.

Mas, por meio da terapia, ela acrescentou, tornou-se evidente que “a transição era uma maneira de tentar escapar”.

Debbie and Lee
Debbie quando jovem e depois de sua transição, como Lee

A destransição é um assunto controverso. Christopher Inglefield, especialista em cirurgia de transgêneros, explica por que parte da comunidade trans pode ficar “muito nervosa” com a possibilidade de esse assunto ter destaque.

“Qualquer reversão dessa transição começa a fazer a sociedade questionar todo o processo”, disse ele.

E isso pode levar as pessoas a questionar o financiamento público e o apoio a serviços de gênero muito necessários.

“O que é realmente importante é garantir que essa experiência (de destransição) não seja usada para pressionar outras pessoas”, disse Lui Asquith, da Mermaids.

“Isso não deve ser usado para dizer àqueles que são trans, que são de gênero diverso, que estão errados. O importante é criar um sistema que faça com que todos se sintam validados.”

Exigências do sistema

O Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero (Gids, na sigla em inglês para Gender Identity Development Service) é a única clínica do National Health Service (NHS), sistema de saúde pública britânico, que trata menores de 18 anos que questionam sua identidade de gênero.

As crianças podem receber medicamentos bloqueadores da puberdade, que atuam no cérebro para impedir a eventual liberação de estrogênio ou testosterona.

Os adultos podem começar a fazer a transição tomando hormônios.

O NHS disse que os pacientes adultos são obrigados a viver pelo menos um ano no sexo desejado antes de se tornarem elegíveis para a cirurgia.

A instituição britânica sem fins lucrativos Tavistock e o Portman NHS Foundation Trust, que administram o Gids, disseram que seus dados mostram que a destransição é “muito rara” e que é importante não tratar todas as destransições como arrependimento.

O NHS Foundation Fund — que também administra a Clínica de Identidade de Gênero para adultos (GIC, na sigla em inglês para Gender Identity Clinic) — disse que aqueles que buscam intervenções físicas para a transição e adultos que desejam a destransição recebem “apoio psicossocial”.

Mas dois profissionais que já foram integrantes do Gids estão publicamente levantando preocupações sobre o apoio disponível para esse grupo vulnerável, pela primeira vez.

Anna Hutchinson, parte da equipe do Gids entre 2013 e 2017, disse que quando os pacientes procuravam ajuda de profissionais, eles tinham expectativas sobre o resultado que desejavam.

“Muitos deles deixam muito claro que desejam a intervenção médica”, disse ela. “As pessoas para quem esse caminho não funcionou dirão que o que eles desejavam era terapia. Então, temos um dilema em que talvez o que alguns desses pacientes precisam de fato não seja o que eles querem no momento.”

Os destransicionadores são “um grupo de pessoas particularmente isolado”, disse ela.

A psicoterapeuta Anastassis Spiliadis, que deixou o Gids no mês passado após quatro anos, disse estar preocupada com o fato de que nem sempre há uma avaliação adequada do histórico do indivíduo.

Uma avaliação do Gids “geralmente se baseia em de três a seis consultas”, de acordo com seu site.

“Conheço médicos que são realmente atenciosos e muito cautelosos em sua abordagem”, disse Spiliadis. “Mas eu me preocupo com o quanto realmente pode ser explorado em um modelo de avaliação de três sessões.”

O Gids disse que seus médicos “trabalham cuidadosamente, caso a caso”.

Spiliadis, que também trabalha em uma clínica particular, disse que o isolamento social, a depressão e a ansiedade são comuns entre os destransicionadores que ele está tratando — alguns dos quais foram atendidos no Gids — e outros foram diagnosticados com transtorno do espectro autista.

“Eles costumavam entender todas essas dificuldades pelo prisma do gênero”, disse ele.

“Todos os pacientes com disforia de gênero têm amplo acesso a psicoterapia e aconselhamento”, disse uma autoridade do NHS England.

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