As crianças de Altamira

O massacre dos inocentes nos denuncia na mais violenta cidade amazônica

A menina com nome de rua e o menino com nome de jogador de futebol, no reservatório da usina de Belo Monte, em Altamira (PA).
A menina com nome de rua e o menino com nome de jogador de futebol, no reservatório da usina de Belo Monte, em Altamira (PA).EL PAÍS (EL PAÍS)

Quero contar essa história real porque percebo que muitos não compreendem a dimensão – e as consequências – do que está acontecendo no Brasil. Parece já não bastar a imagem de cabeças e braços e pernas decepados para que os brasileiros entendam o que está acontecendo no Brasil. Parece que já não nos impressionamos com cabeças e braços e pernas decepados. Algo aconteceu dentro de nós. E, se prestarmos atenção, talvez possamos sentir o cheiro de podre que desta vez não emana de fora.

É essa a imagem que a mulher ainda jovem, cabelos pretos e traços que marcam uma ascendência indígena e também negra tem na cabeça. Naquele momento, ela ainda não sabe se o seu irmão, de 20 anos, tem todos os membros no lugar. Ela ainda não sabe se a cabeça da pessoa que ama está no mesmo corpo que os braços. Também não sabe se os braços estão perto das pernas. Ou se não é nada disso. Se ele morreu queimado, se o corpo jovem do irmão com quem cresceu é uma massa carbonizada em meio a outros corpos de irmãos, pais, filhos. Gente.

 

Ela grita. Junto com ela está sua mãe. A mãe do jovem de 20 anos. Ela gerou e carregou no útero por nove meses aquele que agora ela não sabe se terá que procurar a cabeça ou adivinhar qual é a carne da sua carne em meio à massa de corpos incinerados. Ela é mãe e não sabe se o último suspiro do filho foi dado na dor excruciante de ter a cabeça decepada ou na dor excruciante de ser asfixiado enquanto o corpo incendiava. Ela não quer, mas não consegue evitar de pensar se ele demorou a morrer, e reza para que tenha sido rápido. Essas eram as dúvidas da mãe naquele momento. E não só desta mãe, mas de todas.

Não é apenas que o filho está morto, uma inversão da ordem da vida cuja dor (quase) qualquer pessoa é capaz de imaginar. É ainda mais do que essa dor. É a dor da forma de morte, da certeza de que o filho morreu no horror. Essa mãe então grita e grita. Porque não há palavras para nomear o que vive. Essa irmã grita e grita. Uma outra mulher, também com o rosto arado pelo sofrimento, abraça o corpo da irmã, como se quisesse conter aquele grito que rasga o mundo. Um homem abraça o corpo da mãe, mas ele parece se sentir fraco para conter o grito que emana dela.

Há imagens documentando esse momento. Mas as fotos não podem ser publicadas. Há ainda isso. Elas não podem ter rosto, elas não podem ter nome, elas não podem ter voz. Nem os detalhes da história do jovem assassinado sob a guarda do Estado, no Centro de Recuperação Regional de Altamira, pode ser contada. Se elas forem identificadas pelas facções criminosas, poderão também ter suas cabeças rolando – literalmente – pelas ruas das periferias da cidade. São fantasmas. Fantasmas vivos.

O presidente sem empatia nem responsabilidade

O massacre de Altamira, na manhã de 29 de julho, foi o segundo maior da história do sistema carcerário do Brasil: 58 homens, sob a guarda do Estado, foram assassinados. Dezesseis deles foram decapitados, e o restante foi incendiado. Em seguida, quatro homens foram estrangulados durante a transferência para outro presídio. Estavam algemados, sob custódia do Estado. Total: 62 pessoas sob responsabilidade do Estado foram mortas dentro das dependências primeiro de um prédio do Estado, depois dentro de um caminhão-cela do Estado. Segundo levantamento da Folha de S. Paulo, quase metade deles não tinha condenação, a maioria era negro e tinha até 35 anos. Quase nenhum havia terminado a escola.

O massacre é atribuído a uma guerra entre as facções do crime organizado Comando Vermelho (CV) e Comando Classe A (CCA). O Conselho Nacional de Justiça classificou as condições do presídio como “péssimas”: com vagas para 163 presos, mais de 300 estavam amontoados no local. O número de agentes penitenciários era muito menor do que o necessário e armas haviam sido encontradas.

Ao ser questionado sobre o massacre, o antipresidente Jair Bolsonaro assim respondeu: “Pergunta para as vítimas dos que morreram lá o que eles acham disso. Depois que eles responderem, eu respondo a vocês”. O bispo emérito do Xingu, Dom Erwin Kräutler, reagiu àquele que desgoverna o Brasil: “Leio no jornal que o nosso presidente está falando que a gente deve perguntar às vítimas dos que morreram. Isso não é resposta, pelo amor de Deus, que um presidente dê a essas famílias. Cada preso tem mãe, tem pai. As mães estão chorando lá”. Quando quatro presos foram estrangulados durante a transferência, Bolsonaro declarou: “Problemas acontecem”.

A menina com nome de rua

É isso que os familiares ouvem daquele que foi eleito para governar o Brasil. E também é isso que escuta aquela mãe. E aquela irmã. E existe ainda a menina. Ela tem cinco anos e nome de uma rua de São Paulo. O morto por quem as duas mulheres gritam é seu tio, irmão de sua mãe. Ela quer saber o que aconteceu. Como explicar o que aconteceu? Como você explicaria a essa criança o que aconteceu?

A violência não é estranha à menina. Menos de dois anos atrás, seu pai foi executado pela polícia em um dos chamados “Reassentamentos Urbanos Coletivos”(RUCs), os bairros distantes do centro da cidade construídos pela Norte Energia SA, a empresa que materializou a Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. Foi nestas casas feitas para não durar que a empresa jogou as centenas de famílias expulsas pela usina.

Antes de Belo Monte ser imposta aos povos do Xingu e aos habitantes de Altamira, num dos processos mais criminosos da história recente do Brasil (leia aqui), os mais pobres viviam em situação precária, mas em comunidade. Na cidade, as relações de solidariedade mútua amenizavam a ausência de políticas públicas. Se não havia creches, as vizinhas se alternavam no cuidado das crianças. Se uma família não tinha feijão, outras arranjavam um pouquinho. Quando foram espalhadas pelos RUCs, tudo isso foi rompido. E também os membros das facções criminosas foram aleatoriamente misturados, multiplicando a violência.

Entre 2000 e 2015, a taxa de assassinatos em Altamira aumentou 1.110%. A violência está diretamente relacionada à construção de Belo Monte. Em 2017, o Atlas da Violência, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou Altamira como a cidade com mais de 100 mil habitantes mais violenta do Brasil. Neste ano, Altamira “perdeu” o posto para Maracanaú, na região metropolitana de Fortaleza, no Ceará.

A Altamira que foi palco do massacre de 62 pessoas é hoje a segunda cidade mais violenta do Brasil: 133,7 mortes por 100 mil habitantes. Para que se compreenda o que isso significa, vale apontar que o Rio de Janeiro, símbolo internacional de violência, tem 35,6 mortes por 100 mil habitantes. O Brasil é hoje o campeão mundial de letalidade: concentra 14% dos homicídios do planeta. E não é armando a população que vai melhorar, como já está provado. Pelo contrário, como também já está provado.

O pai da menina com nome de rua era oleiro. Como também seu avô. Quando a barragem chegou, a área das olarias foi desapropriada, o que significa que foram expulsos do lugar. Até então, a família vivia na pobreza, mas não passava fome. A pequena olaria familiar produzia tijolos suficientes para manter a todos com dignidade mínima. Com a perda do que lhes permitia sobreviver, a pobreza virou miséria.

O pai da menina procurou emprego, mas não tinha estudado. Antes de morrer, ele já havia sido preso por assaltar um posto de gasolina. Quando foi morto, segundo um policial, “era a pessoa errada no lugar errado”. Quem era para morrer, segundo este mesmo policial, era o amigo que estava com ele. A polícia tinha executado o homem errado. E isso foi dito para a sua família, como se a execução fosse permitida ao Estado. A família, porém, tem medo de enfrentar o Estado. E deve ter. Se protestar, outros poderão ser mortos. Então ficou assim: “Desculpa aí, matamos o seu filho por engano”.

A menina sem pai hoje mora com a avó paterna em um conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida. O transporte público é escasso, a única área de lazer está abandonada, o bairro são ruínas gerando mais ruínas. Nesta pequena casa vivem oito crianças e quatro adultos. A maioria destas crianças perdeu os pais de forma violenta e, por isso, está sendo criada pela avó, que trabalha como gari. No ano passado, essa avó foi atropelada na calçada por um comerciante alcoolizado e perdeu parte do pé.

A amputação dos membros por acidentes de trânsito – ou abusos de trânsito – é mais uma violência persistente na cidade. Nas ruas esburacadas há caminhonetes 4X4 com vidros escurecidos, conduzidas por motoristas que agem como se fossem donos da cidade. E uma legião de motocicletas de baixa cilindrada usadas pelos mais pobres, famílias inteiras sobre elas, para compensar o transporte público deficiente. Em Altamira, os mais pobres vão perdendo pedaços do corpo por violências que podem começar com acidentes de trânsito, em geral envolvendo motos, e terminar na falta de assistência de saúde.

Às vezes, as crianças ficam sozinhas em casa. Antes de julgar os adultos, entenda a vida. É preciso trabalhar para arranjar comida. Essa avó se vira e desvira. Semanas atrás foi levar um neto para a mãe, que havia sido atacada por uma facção do crime organizado e teve que deixar a cidade às pressas para não morrer. No ataque, uma pessoa levou um tiro na cabeça e entrou em coma. Ela levou um tiro no dedo. Só se salvou porque largou a criança de quatro anos no chão e lutou. Essa criança de quatro anos, primo da menina, testemunhou toda a violência. Ser pobre e fugir, sem poder contar com ninguém além de outros pobres, é da ordem do pavor. Outra filha também está fugida, desta vez porque foi ameaçada de morte por um ex-namorado.

A violência doméstica é parte naturalizada da vida de muitas das mulheres das periferias de Altamira, quase tão certa como o nascimento do sol a cada dia. Nas casas apertadas, as crianças testemunham as mães, tias e irmãs serem espancadas, às vezes cotidianamente. Uma adolescente me disse: “É da natureza dos homens não se controlar. Por isso não sei se quero casar.”

No enterro do pai, a menina com nome de rua explicava para todos que chegavam ao velório: “A polícia matou meu pai. A polícia matou meu pai”. De repente, a imagem do corpo ensanguentado e furado à bala do pai chegou no whatsapp de uma tia. Em seguida, um vídeo onde seu corpo era arrastado pelos policiais. É comum que os corpos sejam fotografados e filmados pela polícia e por grupos que acompanham a polícia, e a imagem distribuída. Corpos são coisas quando as pessoas se desumanizam ao desumanizar outras. Para a menina com nome de rua, aquela “coisa” cheia de sangue era pai. E ela explicava a todos que chegavam: “A polícia matou meu pai”.

O menino que já tem rugas

O irmão da menina não dizia isso. Ele tem 9 anos. Parece ter desenvolvido uma maneira de lidar com uma realidade que é quase toda ela violência. Ele repetia: “Vou ficar aqui (ao lado do caixão) até o pai acordar”. Ele tem nome de jogador de futebol e ainda espera o pai acordar. Não tem nenhuma deficiência, sabe que o pai jamais acordará, mas diz isso. Para sobreviver, conta uma outra história para si mesmo. E esta, possivelmente, é a escolha mais inteligente para quem não tem nenhuma escolha e quer desesperadamente viver. É isso ou: a barragem roubou o ganha-pão da minha família, meu pai foi assassinado por quem deveria protegê-lo, minha avó foi atropelada por um bêbado e perdeu parte do pé, minha tia está escondida para não ser executada por uma facção criminosa, outra tia teve que fugir para não ser morta pelo ex-marido, o tio da minha irmã virou carvão na cadeia.

Olho para ele e sei que ele sabe de tudo isso. Mas salva uma pequena parte de si quando está olhando para lugar nenhum, o que faz com frequência. À noite, ele tem pesadelos. Muitos. Pesadelos que não quer contar. Segredos, ele diz. Depois, tem longas tristezas.

Preciso dizer algo sobre este menino. Ao longo da minha vida de repórter, vi muitas crianças com olhos de velho. Já escrevi sobre isso. São crianças que convivem com a morte todos os dias, são crianças que temem morrer e que correm o risco real de morrer a qualquer momento. Crianças para as quais a morte é mais certa do que a vida.

Quando encontramos crianças com olhos de velho sabemos que um crime ocorreu ali, porque crianças não podem ter olhos de velho. Mas sempre que contei delas eu me referi ao olhar, aquele olhar de quem já viveu várias vidas em apenas um punhado de anos, o olhar de quem viu mortes demais antes de sequer poder elaborar o que é a morte, o olhar de quem vive com medo de morrer enquanto o corpo ainda sequer se desenvolveu. O que vi no menino com nome de jogador de futebol é diferente. O menino tem rugas embaixo dos olhos. Eu nunca tinha visto uma criança com rugas.

Ele é irmão da menina apenas por parte de pai. De pai executado com menos de 30 anos. A mãe do menino foi assassinada por um cunhado quando ele tinha menos de um ano. A família estava reunida na frente da casa quando apareceu o cunhado. Ele estava bêbado. E revoltado. Policiais militares tinham jogado spray de pimenta no seu rosto. A mãe do menino ria de outra coisa, mas ao ouvir seu riso ele achou que ela estava rindo dele, da sua humilhação. A humilhação virou raiva, ele queria que alguém pagasse. E ela era a mais frágil. Pegou a arma e atirou nela. A mulher estava amamentando o menino. A bala acertou o peito, quase rente ao bebê. Ela não largou o menino. Protegeu o filho e morreu quatro dias depois no hospital.

O menino é órfão de pai e de mãe. Quando eu o conheci, ele estava feliz. Foi no mês de junho. E as pupilas acima das rugas cintilavam. Havia uma procissão fluvial e, pela primeira vez, ele navegava no rio Xingu. Eu não conseguia acreditar. O menino nasceu numa cidade à beira do rio Xingu e nunca tinha navegado no rio Xingu. Ele nasceu no rio, apartado do rio.

Desde então, comecei a incluir essa pergunta nas minhas entrevistas. E descobri que muitas das crianças das periferias de Altamira desconhecem o rio, que está a apenas algumas dezenas de metros do centro comercial da cidade. Muitas delas não saem da periferia, pela dificuldade do transporte público, pela dificuldade de um adulto poder trazê-las à orla, pela miséria de tudo. Sem que o transporte público funcione e a tarifa seja acessível, o que é perto fica longe, o que é perto se torna nunca. Todo o mundo que essas crianças conhecem são casas em que falta tudo e ruas esburacadas em que falta tudo. E essa é outra violência da ordem do inominável. Essa é uma prisão sem que elas tenham cometido crime algum. E por serem os sem nada muitas destas crianças passam desta prisão para a prisão oficial. E morrem antes dos 20 anos.

Qual é o seu país?

O menino está na quarta série. Pergunta-se ao menino. O que é a Amazônia? Ele não sabe. Aos 9 anos, ele é informado que mora numa cidade na floresta amazônica. Ele nunca esteve na floresta, como nunca tinha estado no rio. Pergunta-se ao menino: qual é o seu país? Ele responde com o nome do bairro onde vive.

Esta não é uma resposta “errada”. É a resposta mais precisa que o menino pode dar. O seu bairro é o seu país. E seu país o circunscreve – e determina. Mostra-se então um mapa. E o menino se extasia, quase como quando esteve navegando no rio. Vê o Brasil ali, e vê a Amazônia, e de repente há um planeta que não é plano.

Já perdi a conta dos adultos e crianças para quem fui a primeira a mostrar um mapa do Brasil e do mundo. E explicar onde estávamos com relação ao mundo. As crianças das periferias de Altamira me lembram adolescentes que entrevistei numa favela do Rio de Janeiro. Uma favela sem vista nem glamour. Eles nunca tinham ido à praia. Adolescentes cariocas que não conheciam o mar. E, naquele momento, também não poderiam ir, porque se saíssem do território, seriam mortos pela facção rival. Nenhum deles tinha 20 anos. E sabiam que seu futuro seria o cemitério ou a prisão. Em Altamira, as crianças estão amputadas do rio. O Xingu, ao qual o menino deveria pertencer, é um dos mais míticos da Amazônia. E foi roubado dele.

Altamira é um retrato do Brasil, mas com cores ainda mais dramáticas e calor extremado, como são as cidades infiltradas nos trópicos. Em 2000, tinha 77 mil habitantes. Hoje, por obra de Belo Monte, inchou para 111 mil. No auge da obra, teve ainda mais gente. É também o município que mais desmata na Amazônia, expondo a relação direta entre violência e destruição da floresta.

Uma minoria das crianças vive em boas casas, filhas ou de fazendeiros ou de comerciantes ou de funcionários públicos ou de profissionais liberais. Em geral, são casas com muito vidro blindex, um gosto que chegou junto com a barragem. Essas crianças estudam em escolas privadas e moram com vista para o rio ou pelo menos passeiam na orla. Nas férias, muitas delas vão para a Disney com os pais, com uma parada em Miami, um destino muito apreciado também pelas elites de Altamira. E há uma maioria de crianças abandonada à extrema violência, começando pela falta de acesso a políticas públicas. Se há falta evidente de políticas públicas nas periferias das capitais do Sul e do Sudeste, imagine numa cidade do interior amazônico. É comum crianças alcançarem séries avançadas do ensino fundamental sem ainda estarem totalmente alfabetizadas.

Se a trajetória das famílias destas crianças é investigada, o que aparece na maioria dos casos é a perda da relação com o rio e com a floresta ou com a região de origem. Ou os pais ou avós vieram de algum outro lugar do país, muitas vezes do Nordeste, em busca de uma vida melhor por meio de um emprego numa das obras megalômanas ou foram expulsos do rio e da floresta por uma das obras megalômanas. Entre a Transamazônica, nos anos 70, e Belo Monte, nesta década, milhares de vidas foram destruídas. E crianças condenadas.

A mais recente conversão de povos da floresta, ricos, em população urbana periférica, pobre, foi provocada por Belo Monte, com consequências devastadoras, como os números de homicídios mostram. As crianças dos povos da floresta, sejam elas indígenas, ribeirinhas ou quilombolas, têm um enorme conhecimento transmitido pelos pais e avós. Ainda pequenas, e já conhecem em profundidade o território. Sabem pescar e navegar, conhecem as árvores e as plantas que podem comer, aprendem a fazer o que precisam com as mãos, são povoadas por histórias que dizem quem elas são e de onde vieram.

As crianças cujos pais e avós foram expulsos da floresta, foram roubadas de tudo. Quando o menino não sabe o que é a Amazônia e acredita que seu país é o seu bairro, o que ele mostra é a radicalidade da experiência de desterritorialização. Ele está perdido, da forma mais profunda que alguém pode estar perdido. Sem norte, mas também sem sul, leste e oeste. São crianças sem passado nem futuro, cujo presente é violência.

Essas crianças têm sido tratadas como restos. Já estão aprisionadas em guetos, por falta de políticas públicas e porque seus pais perderam o modo de vida. Enquanto elas nascem para morrer, os perversos abrigados no governo e no Congresso querem jogá-las nas prisões formais ainda na infância, em vez de cumprirem a obrigação constitucional de lhes garantir a vida. É urgente que o crime real e os criminosos de fato sejam chamados pelo nome. E responsabilizados pelo que fazem. O que testemunhamos – muitos de nós sem ver ou querer ver – é genocídio.

Belo Monte e a Norte Energia SA ampliam seu campo de destruição

A usina de Belo Monte foi liberada no final de 2015 sem cumprir as condicionantes básicas, aquelas obrigações que condicionavam a liberação da hidrelétrica. O que era condição, portanto, deixou de condicionar, algo que desafia qualquer ordem lógica. O governo de Dilma Rousseff liberou a usina sem que a empresa tivesse cumprido a totalidade de seus deveres. Apenas mais uma das escandalosas violações que envolveram a construção de Belo Monte. Uma das obrigações da Norte Energia SA era construir o Complexo Penitenciário de Vitória do Xingu, cidade a 48 quilômetros de Altamira, com o objetivo de desafogar as cadeias da região e dar condições mínimas de dignidade aos presos. Agora, depois do massacre, a empresa corre a dizer que entregará o empreendimento nos próximos meses. E, como de hábito, afirma que também não tem responsabilidade nenhuma sobre a morte de 62 seres humanos.

Foi massacre, vale repetir. Não foi uma rebelião. Teria sido uma rebelião se os presos tivessem se unido para reivindicar que o Estado cumprisse a Constituição. O que aconteceu no Centro de Recuperação Regional de Altamira foi presos matando outros presos porque o Estado permitiu, por ação ou omissão. E depois permitiu, por ação ou omissão, que outros quatro fossem executados quando estavam algemados a caminho de outro presídio. A barbárie já está anunciada quando se permite que mais de 300 presos sejam encarcerados num prédio que tem espaço para menos da metade deste número. A barbárie já é. Havia dezenas de presos amontoados em contêineres. Tente imaginar o que é estar preso num contêiner, com outros presos, numa cidade em que a temperatura seguidamente passa dos 30 graus e onde a sensação térmica pode chegar a 40 graus. Se isso não é tortura, precisamos rediscutir o que somos nós.

Quando a mãe da menina com nome de rua soube que seu irmão não estava entre os decapitados, mas entre os carbonizados, ela recebeu a notícia como uma nova morte. Ela ainda não conseguiu sepultar aquele que amava. Não há como reconhecer os corpos deformados pelo fogo. É preciso esperar o exame de DNA. É assim que a vida segue. Os familiares aguardam um corpo para chorar, dia após dia, enquanto a vida de misérias segue. E enquanto a cidade, mais uma vez, se esquece deles. Ou sequer lembrou, porque não os reconhece como habitantes do mesmo mundo.

Como nós, os bárbaros, recuperamos a humanidade perdida?

A forma como quase todos nós olhamos para aqueles que estão presos expõe a deformação de nossas almas. Não há como viver num país com esse nível de violência, em todas as áreas, acirrada agora por um perverso no poder, sem ser também contaminado e transformado. Se 62 pessoas brancas, de classe média, tivessem sido decapitadas ou carbonizadas ou estranguladas, as reações seriam imensamente maiores. A pressão por mudanças e a eloquência também. Se 62 indígenas tivessem sido decapitados ou carbonizados ou estrangulados, as reações seriam menores. Mas, especialmente pela repercussão internacional, ainda haveria grande visibilidade e pressão. Mas, quando 62 pessoas presas são decapitadas ou carbonizadas ou estranguladas, a reação, a pressão e as providências são muito menores e o clamor se extingue rapidamente. Aqueles que são encarcerados são vistos como restos até por muitos que defendem os direitos humanos. Não no discurso formal, nem na racionalidade do pensamento, mas na forma como a indignação é menos incorporada na ação.

Às vésperas do final de semana após o massacre, circulou pelas redes de whatsapp uma carta-ameaça de uma das facções, dizendo que haveria retaliação se houvesse festas na cidade depois das mortes. A carta possivelmente era falsa. Mas, falsa ou não, escrita ou não para provocar pânico, havia algo que nos denunciava quando se pensa que é preciso ameaçar os vivos para que respeitem os mortos e respeitem a dor dos que choram os mortos. A questão é: que tipo de gente somos nós se achamos que podemos voltar à rotina sem reconhecer e fazer marca da barbárie, depois que 62 seres humanos foram decapitados, carbonizados ou estrangulados e enquanto suas famílias choram os mortos em absoluto desespero? Se fôssemos dignos, não haveríamos de fechar todas as portas, colocar a faixa preta do luto e nos unirmos aos parentes?

Mesmo quem denuncia a desumanização está se desumanizando. E digo isso olhando também para mim mesma. Num país mergulhado no cotidiano de exceção, precisamos ser mais atentos e exigentes com nós mesmos para não nos tornarmos também violentos sem perceber.

Em Altamira, as periferias estão povoadas por expulsos da floresta. Expulsos recentes, expulsos de longa data. Há gente lutando para que os povos da floresta permaneçam na floresta, o que também significa a melhor chance de a floresta ficar em pé. E lutar pela floresta e pelos povos da floresta hoje significa lutar contra a força de destruição do bolsonarismo. Mas há poucos lutando por aqueles que já foram convertidos em pobres urbanos. Nesse movimento de luta, eles são restos também, são considerados aqueles que já estão perdidos, os além de qualquer salvação. Isso precisa mudar se quisermos recuperar o país. Os laços que foram rompidos pela violência das grandes obras e da grilagem de terras precisam ser reconectados, amarrados como memória e pertencimento. Ter acesso ao rio e a floresta é ter acesso à história. É preciso devolver a memória às crianças de Altamira.

A menina com nome de rua e o menino com nome de jogador de futebol colocaram suas melhores roupas para serem fotografados para essa coluna, com a devida autorização dos responsáveis. Eles estão aqui, num artigo sobre cabeças decepadas, em trajes de domingo. Para eles, foi um raro momento feliz. Depois da foto, era a primeira vez em sua vida inteira que se banhavam no rio. Brincaram muito, como fazem as crianças. “O Xingu é o meu rio preferido”, repetia a menina. E repetia. Este é o Xingu. Esta é a Amazônia. Se pudessem virar o rosto para vocês, veriam que o menino tinha olhos brilhantes. Acima das rugas.

Depois, o menino e a menina voltaram para o Brasil.

A menina com nome de rua e o menino com nome de jogador de futebol na periferia de Altamira.
A menina com nome de rua e o menino com nome de jogador de futebol na periferia de Altamira.EL PAÍS (EL PAÍS)

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: [email protected]Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

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