As crônicas de um caboclo sonhador

Por Maciel Melo

Entre a lâmina e o espelho

Um rosto magro, pálido e envelhecido, estampado numa lâmina de vidro espelhada, que ladeava as escadarias de uma arquitetura barroca, imperiosa e conservadora, onde se lia em alto relevo na fachada: “Aqui é a casa do povo”. Que ironia! Na verdade, ali se reuniam senhores de engenhos; depois, transformou-se num estabelecimento público. Um depósito de cabides onde se penduram paletós e gravatas falantes. Em seu entorno, carros longos, pretos, blindados e bem polidos, exaltando a imponência do edifício de paredes largas, desenhado lá pelo final do século XVIII e erigido pelas mãos escravas de uma negritude que gerou Zumbis, Mandelas e Martin Luther kings. Hoje, tombado pelo patrimônio histórico, tem a função de atender, zelar e estender os interesses de uma nação.

Pois bem, meus queridos e seletos seguidores: aquele rosto que me trouxe a este assunto, magro, esquálido, ressequido e quase sem vida, refletido sob a luz do sol de um fim de tarde, era a face de um trabalhador que passara dias andando, a pé, ou de carona, para chegar até ali, com coragem no peito, mil palavras entaladas na garganta e a esperança de ser recebido para curar as dores de alguma ferida que, sangrando, escorre pelas valetas da alma do povo.

Foi por um acaso, estava eu passeando por aquela rua, quando vi aquele senhor cuspindo verdades e vomitando mentiras, lucidamente, em desespero de causa, se submetendo a tal humilhação. Fiquei um bom tempo observando seu semblante enrugado, ressequido e sem paciência, que ia lá, vinha cá, falava alguma coisa para o guarda, sentava-se no meio-fio do outro lado da rua, olhava pata o infinito, divagava no meio do nada, e nada, nem ninguém lhe enxergava.

Sentei-me num banco de praça em frente e, uma sensação revoltante entrou em ebulição, fervendo meu sentimento de cidadania e ativando o vulcão humano que nunca adormece em mim. Aquela cena hostil vivida por aquela criatura, que me parecia tão peculiar, me transportou para um passado não muito distante. Aquela situação era familiar, tive a impressão de já ter passado por isso, se não nessa, em outra vida. À medida que o tempo passava, eu incorporava aquele cidadão e me demorava naquele instante que me fazia ver de perto a distância entre o povo e o poder.

A indignação me cortava a carne como a lâmina afiada de uma faca de fino fio, rasgando-me o peito, dilacerando minha sensatez e absorvendo as dores daquele ser, que nada mais era que um pai de família, de olhar opaco, honesto e trabalhador, que perdeu as esperanças e estava ali para saber se valia a pena continuar defendendo alguma causa nessa vida. Ah, meus camaradas, mera ilusão, pura utopia, quem pode, pode, quem não pode se sacode, faz das tripas coração e vai levando a vida do jeito que a vida quer.

Enfim… O dia escureceu, fecharam-se as portas, o guarda sumiu, o espelho partiu e aquela lâmina de vidro estilhaçou a imagem do retirante que, vencido pelo cansaço, sentou-se no batente do desengano, baixou cabeça e dormiu.

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