Até que o dinheiro os separe: histórias de traição financeira entre casais

BEATRIZ SOUZA
 

Pedro* foi amado durante nove anos e até o pagamento da entrada de um imóvel na zona norte de São Paulo. Era novembro de 2018 quando o cabeleireiro viu seu companheiro chegar do trabalho e dizer que estava indo embora porque havia comprado um apartamento. Não era um pedido de término, ele explicou, mas apenas uma oportunidade que havia surgido. “Eu me senti com medo e só queria que ele fosse embora o mais rápido possível”, conta Pedro, hoje aos 37 anos. “Uma pessoa que compra um apartamento enquanto dorme com você é capaz de qualquer coisa.”

Dos nove anos em que estiveram juntos, um deles foi sob o mesmo teto — o de Pedro, que mantinha sua situação financeira aberta embora não fosse correspondido igualmente. “Eu me senti traído. Acho que se ele tivesse me dito que estava com outra pessoa, teria doído menos.”

Esconder o jogo do parceiro ou da parceira, seja uma etiqueta de roupa recém-comprada, o salário, empréstimos ou investimentos, é sintoma de infidelidade financeira. Seus efeitos colaterais? O potencial de desgastar ou até mesmo dar fim a relacionamentos  (Foto: Christophel Fine Art/Universal Images Group via Getty Images)
Esconder o jogo do parceiro ou da parceira, seja uma etiqueta de roupa recém-comprada, o salário, empréstimos ou investimentos, é sintoma de infidelidade financeira. Seus efeitos colaterais? O potencial de desgastar ou até mesmo dar fim a relacionamentos (Foto: Christophel Fine Art/Universal Images Group via Getty Images)

A dor e a frustração que Pedro sentiu só ele é quem pode dizer, no entanto seu caso não é único ou isolado. Esconder o jogo do parceiro ou da parceira, seja uma etiqueta de roupa recém-comprada, o salário, empréstimos ou investimentos, é sintoma de infidelidade financeira. Seus efeitos colaterais? O alto potencial de desgastar ou até mesmo dar fim a relacionamentos amorosos.

“Uma pessoa que compra um apartamento enquanto dorme com você é capaz de qualquer coisa””

Pedro*

Foi o que também aconteceu com Leo*, 28, empresário na cidade de Uberlândia, em Minas Gerais. No início da relação, seu então namorado tinha o hábito de comprar roupas e acessórios de marcas caras, apesar de ganhar pouco mais que um salário mínimo. O consumo extrapolado passou a ser omitido à medida que Leo reprovava o comportamento.

A relação dos dois durou sete anos. Nesse meio tempo, tornaram-se proprietários de um pet shop. “Em dois meses, ele gastou R$ 15 mil que a gente tinha poupado para investir no negócio. Gastou comprando roupas. Ele mentia o preço das coisas ou comprava e falava que não tinha comprado”, conta Leo. “A gota d’água foi perceber que não tínhamos um objetivo em comum. Mesmo se ficássemos juntos por dez anos, sinto que a gente não iria se encontrar.”

Segundo pesquisa de 2019 realizada em todas as capitais brasileiras pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas e pelo SPC Brasil em parceria com o Banco Central, 46% dos casais costumam brigar por questões associadas a dinheiro, enquanto 15% das pessoas evitam dividir seus gastos com os parceiros.

Esquivar-se de brigas ou conflitos é apontada como a principal justificativa para a omissão financeira, mas o caminho rumo à infidelidade varia de indivíduo para indivíduo. A psicóloga Gisele*, 28, por exemplo, teve uma infância pobre e hoje sente-se insegura para compartilhar gastos e aquisições considerados supérfluos. “Meu marido costuma dizer que eu faço caixa dois”, brinca. “É mais uma sensação de não me sentir segura ao ponto de falar que comprei porque queria. Vim de uma família muito simples na qual tudo que entrava de dinheiro ia para o mercado ou coisas básicas.”

Casada há cinco anos, até pouco tempo Gisele movimentava uma conta bancária sem o conhecimento de seu cônjuge. Uma das aquisições mais caras feita por baixo dos panos foi um brinquedo no valor de R$ 250 que comprou para a filha — que, para o marido, virou presente enviado por terceiros.

“Fico pensando que ele precisa validar meu desejo. Tenho medo dele falar que estou jogando dinheiro fora, mas não deveria ser assim. O dinheiro é meu e eu trabalhei por ele. Fico triste porque sei que não tenho necessidade de fazer isso. Você se sente enganando, mentindo, é realmente uma traição”, diz. Há dois meses, Gisele e o marido conversaram e definiram que cada um tem direito a uma quantia para gastar com o que quiser. Ela ainda tenta se desprender do próprio bloqueio, mas afirma já sentir certa leveza após o acordo.

Já a aposentada Laura*, 54, é adepta de uma infidelidade aos moldes analógicos. Fora do mercado de trabalho há quatro anos, quando teve sua renda mensal significativamente reduzida, ela passou a pegar dinheiro da carteira do marido. “Às vezes ele pergunta se eu peguei e eu falo que não. Faço isso porque toda vez que eu pedia dinheiro, ele falava que não tinha. Caramba, eu trabalhei por 30 anos e ele nunca me deu nada. Agora que eu preciso, ele não quer dar?”, indaga.

Laura é casada com o mesmo homem há 34 anos. Há um ano, seu marido reconheceu a existência de uma filha fora do casamento, hoje com 20 anos de idade, a quem paga uma pensão alimentícia. Laura achou por bem fazer o seu próprio pé de meia e resgatar parte da verba que ele mantinha em uma conta poupança. “Não falei nada. E não acho que tenha que falar”, afirma. “Me sinto muito mal [em pegar dinheiro escondido] porque acho que ele deveria ter a obrigação de perguntar se eu preciso de alguma coisa.”

“As pessoas são diferentes, e a forma de cada uma lidar com dinheiro também é muito singular””

Camila Portella

Num relacionamento, o diálogo e a transparência sobre como cada um lida com o dinheiro são necessários para que movimentações financeiras possam ser ajustadas de acordo com a dinâmica do casal, defende a psicanalista Camila Portella. “Para além das possíveis implicações morais e cíveis, pensar uma infidelidade financeira é pensar em uma falha da palavra. É uma falha no diálogo, uma quebra mútua de confiança, a qual é necessária para que uma união seja saudável e duradoura”, afirma a psicanalista. “As pessoas são diferentes, e a forma de cada uma lidar com dinheiro também é muito singular.”

Em seu consultório, queixas de homens e mulheres que não sabem quanto o companheiro ganha ou o que faz com a própria grana são frequentes. Há, ainda, relatos daqueles que são surpreendidos com a compra de uma moto ou um carro em meio a uma situação financeira desfavorável e ouvem justificativas a la “sempre foi meu sonho viajar de moto por aí, ela tem que entender”.

“Por de trás de uma descompensação financeira de um casal, é possível que tenha algo que não está sendo dito”, diz Camila ao explicar que, para a psicanálise, o dinheiro tem um valor simbólico ainda maior. “Ele media as relações de consumo e de troca, de aceitação e de recusa. Em outros termos, a forma como as pessoas lidam com o dinheiro nada mais é do que uma versão de como elas lidam com a própria sexualidade”, defende.

No lar do fotógrafo de moda Fernando Piovesan, 32, e do administrador Paulo Pita, 36, tudo é colocado em pratos limpos. Juntos há mais de uma década, o casal já passou por diferentes fases financeiras, mas a gestão nunca deixou de ser feita em conjunto. “O fato da gente sempre considerar o dinheiro que os dois trazem para casa como nosso contribui para não ter aquela dinâmica ‘você paga isso, eu pago aquilo’”, conta Fernando, que se considera o mais mão-aberta da relação.

“Quando um quer fazer uma compra de valor mais significativo, como um investimento na casa ou em educação, a gente consulta um ao outro. Depois a gente até pode se enrolar para pagar, mas se enrola junto”, complementa Paulo. Parte da fórmula para a harmonia financeira do casal, destacam os dois, está no diálogo constante e na renovação de contratos informais estabelecidos entre eles.

“É difícil pensar que dê certo uma relação na qual um parceiro esconde do outro uma verdade sobre algo, que pode trazer implicações para ambos”, pondera a psicanalista Camila Portella. “Um dia eles decidiram se juntar no intuito de dividir tudo, tentando cumprir a famosa promessa de ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na pobreza e na riqueza. E acrescento: na mentira também.”

*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados

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