Biografia tenta revelar os mistérios de Clarice Lispector

André Bernardo

Clarice Lispector, com um vestido vermelho, em frente a uma estante de livros em seu apartamento no Leme em 1963
Clarice em seu apartamento no Leme, no Rio de Janeiro, em 1963

Teresa Montero costuma dizer que foi Maria Bethânia quem lhe apresentou Clarice Lispector (1920-1977).

Em 1981, ela foi assistir a um show da cantora no Teatro da Praia, em Copacabana, Zona Sul do Rio. No espetáculo Estranha Forma de Vida, dirigido por Fauzi Arap (1938-2013), Bethânia declamava um texto da autora: “Passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar corrigir um erro, cometia outro. Sou uma culpada inocente”.

“Fiquei fascinada!”, recorda a biógrafa que leu Clarice pela primeira vez aos 15 anos numa aula de Língua Portuguesa. “Sai de lá pensando: ‘Tenho que ler a obra dessa mulher!'”.

Quarenta anos depois, Teresa Montero não só leu a obra completa de Clarice – dos 18 títulos que ela publicou, entre romances, crônicas e contos, seu favorito é Água viva (1973) -, como se tornou uma referência no assunto – a ponto de a própria Rocco, editora que publica seus livros no país desde 1997, recorrer a ela para, de quando em quando, esclarecer dúvidas de leitores.

“Já cansei de me deparar com frases atribuídas a Clarice que não foram escritas por ela. Hoje em dia, nem acompanho mais. Mas, no início, o número era impressionante”, recorda.

Doutora em Letras pela PUC-Rio, Teresa acaba de lançar À procura da própria coisa – Uma biografia de Clarice Lispector, versão revista e aumentada de Eu sou uma pergunta (1999), esgotada desde 2010.

O título da nova biografia foi retirado da crônica Aproximação gradativa, publicada na edição de novembro de 1962 da revista Senhor e incluída na antologia Para não esquecer (1977): “Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa”.

Nascida de sua dissertação de mestrado na PUC-Rio, sob a orientação de Rosiska Darcy de Oliveira, Eu sou uma pergunta corresponde à terceira das quatro partes de À procura da própria coisa, acrescida de um capítulo novo: Recife, 1976, que descreve a viagem que Clarice fez à cidade onde viveu dos 5 aos 10 anos, a convite de um jovem escritor pernambucano chamado Augusto Ferraz, um ano antes de morrer.

As outras três partes do calhamaço de 700 e poucas páginas são Itinerário de uma mulher escritora, Vida-vida e vida literária e Guia mapa de Recife e Maceió. “Divulgar a obra da Clarice virou uma missão. Uma missão que procuro cumprir há 31 anos”, define a biógrafa.

Nesta missão, Teresa Montero realizou 112 entrevistas: 88 para Eu sou uma pergunta e mais 24 para À procura da própria coisa. Há desde Heloísa Azevedo, a vizinha do 702 que salvou Clarice do incêndio em seu quarto no dia 14 de setembro de 1966, até Urbano Fabrini, o cirurgião plástico que reparou as sequelas da queimadura em sua mão direita.

Apenas uma pessoa declinou do convite da biógrafa: o escritor mineiro Fernando Sabino (1923-2004). “Procurado por telefone, alegou que não se sentia à vontade para falar de Clarice”, explica Teresa. “É uma pena porque ele teve um papel importantíssimo na vida dela.”

Foto em preto e branco de Clarice sentada olhando para a câmera
Um dos retratos mais famosos da escritora foi tirada em seu apartamento no Rio de Janeiro

‘Escrever é mais forte do que eu’

Entre outros achados, Teresa incluiu um raro registro audiovisual de Clarice: seis minutos de uma entrevista que ela concedeu em dezembro de 1976 para o jornalista Araken Távora (1931-1991) no programa Os Mágicos, da antiga TVE (atual TV Brasil).

A gravação, feita no apartamento de Gustavo Sampaio, no Leme, mostra a escritora sentada no sofá da sala, descalça, com uma máquina de escrever no colo e, aos seus pés, Ulisses, seu cão de estimação, descansando sobre o tapete vermelho.

À pergunta “Você consegue viver exclusivamente de literatura?”, Clarice responde: “De jeito nenhum”. Mais adiante, Távora indaga: “Escreve por vocação ou por necessidade?”. “Olha, eu só escrevo porque não consigo deixar de escrever”, explica a escritora ucraniana nascida em Chechelnyk que, assim que completou 21 anos, se naturalizou brasileira. “É mais forte do que eu.”

O trecho resgatado do Arquivo Nacional é um dos destaques do documentário A Descoberta do Mundo, dirigido por Taciana Oliveira, que estreia em dezembro na 16ª edição do Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo e, a partir de janeiro, chega às salas de cinema e aos canais de streaming.

Além de colaborar no roteiro, Teresa atua como consultora da obra. “Gosto de comparar meu trabalho ao de uma arqueóloga”, diz. “É um misto de pesquisa arqueológica com investigação detetivesca. Não basta ler o livro físico. Tem que ‘escavar’ nos arquivos”.

Foi pesquisando arquivos públicos, tal e qual uma arqueóloga em busca de um fóssil raro, que Teresa Montero descobriu, entre outras preciosidades, a carta que Clarice Lispector – seu nome original era Haia (“Vida”, em hebraico) – escreveu ao presidente Getúlio Vargas (1882-1954) solicitando sua naturalização.

A Descoberta do Mundo resgata trechos do depoimento dado por Clarice ao Museu da Imagem e do Som (MIS) no dia 20 de outubro de 1976 e reúne depoimentos de amigos, como as escritoras Nélida Piñon e Marina Colasanti, e familiares, como Paulo Gurgel Valente, seu filho, e Nicole Algranti, sua sobrinha-neta. Dos que já partiram, há entrevistas com os poetas alagoano Ledo Ivo (1924-2012) e maranhense Ferreira Gullar (1930-2016) e o jornalista carioca Alberto Dines (1938-2018).

“Minha história com Clarice começou a ser escrita aos 19 anos quando li Água Viva pela primeira vez. Ler sua obra me tornou uma pessoa melhor”, afirma Taciana. “O documentário diz muito sobre o atual momento político do Brasil. Se estivesse viva, Clarice estaria indignada com tudo o que está acontecendo. Dona de uma posição ideológica firme, estaria ao lado dos que lutam por seus direitos.”

Teresa Montero
A biógrafa Teresa Montero fez uma revisão de seu livro publicado em 1999

Militante ou ‘isentona’?

Outra descoberta importante de À procura da Própria Coisa atende pelo título de Clarice Lispector fichada pela polícia política: 1950 e 1973. Garimpados em dois arquivos públicos, o Nacional e o do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), as fichas policiais revelam a atuação política de Clarice na luta pelo fim da ditadura e a patrulha que ela sofria por parte dos governos antidemocráticos.

A escritora foi fichada pela primeira vez em 27 de janeiro de 1950, durante o governo do general Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), na Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS). Qual a razão do seu fichamento? No livro, Teresa especula algumas hipóteses: era casada com um funcionário do Itamaraty, o diplomata carioca Maury Gurgel Valente (1921-1994)? O casal era amigo do jornalista russo Samuel Wainer (1910-1980) e sua esposa, Bluma (1914-1951)? Ela tinha “nacionalidade russa”? Difícil saber.

O segundo fichamento ocorreu em 6 de junho de 1973, no Serviço Nacional de Informações (SNI), durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). À época, Clarice trabalhava no Jornal do Brasil, com Alberto Dines, considerado “subversivo” pelo regime militar. E mais: gostava de entrevistar intelectuais da esquerda, como o jornalista Antônio Callado (1917-1997), o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) e o psicanalista Hélio Pellegrino (1924-1988), entre outros, para a revista Fatos & Fotos.

Vista como “alienada” por Henrique de Souza Filho (1944-1988), o Henfil, Clarice chegou a ser “enterrada” em O Cemitério dos Mortos-Vivos, tirinha de humor publicada nas páginas do jornal O Pasquim. Era lá que o cartunista sepultava simbolicamente personalidades que, em sua opinião, simpatizavam com o regime militar ou, como se diz nos dias de hoje, ficavam em cima do muro.

Na edição de nº 138, publicada na semana de 22 a 28 de fevereiro de 1972, o “enterro” foi de Clarice Lispector. “Me reservo o direito de criticar uma pessoa que, com o recurso que tem, a sensibilidade enorme que tem, se coloca dentro de uma redoma”, explicou Henfil. Fizeram companhia a ela, entre outros, o dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980), a escritora Rachel de Queiroz (1910-2003) e a apresentadora Hebe Camargo (1929-2012).

Sobre o episódio, Clarice comentou, em abril de 1972: “Ele não me conhece o bastante para saber o que eu penso ou não”. E completou: “Se eu me encontrasse com ele, a única coisa que eu diria é: ‘Olha, quando você escrever sobre mim, Clarice não é com dois ‘esses’, é com ‘c’, viu?'”. Anos depois, em depoimento para a jornalista Regina Echeverria, autora da biografia Furacão Elis (1985), Henfil fez um mea culpa: “Eu só me arrependo de ter enterrado duas pessoas: Clarice Lispector e Elis Regina”.

À Procura da Própria Coisa traz, ainda, uma foto inédita de Clarice Lispector na Passeata dos Cem Mil. O protesto, realizado no dia 26 de junho de 1968, reuniu artistas e intelectuais, como o ator Paulo Autran (1922-2007), a atriz Tônia Carrero (1922-2018) e o dramaturgo Dias Gomes (1922-1999).

A fagulha incendiária da passeata foi a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto (1950-1968) durante uma invasão policial ao restaurante Calabouço, no Centro do Rio. Na imagem, Clarice está sentada no chão, ouvindo o discurso dos líderes estudantis.

Foto de ativistas na passeata dos cem mil, sentado no chão
Clarice pode ser vista no canto inferior direito da foto da Pesseata dos Cem Mil

Homenagem em bronze

Com o passar dos anos, Teresa Montero tornou-se mais do que biógrafa de Clarice Lispector. A convite do filho da escritora, Paulo Gurgel Valente, passou, também, a organizar antologias. São dela: Correspondências (2002), Aprendendo a viver (com Luiz Ferreira, 2005), Outros escritos (com Lícia Manzo, 2005), Minhas queridas (2007), Clarice na cabeceira (contos, 2009) e Clarice na cabeceira (crônicas, 2010). Nestes dois últimos, admiradores famosos da obra clariceana elegem seus contos e crônicas favoritos.

Não satisfeita, Teresa ainda colaborou, assinando o prefácio ou redigindo as notas, de duas publicações: Clarice Lispector – Entrevistas (2007), organizado por Claire Williams, e Todas as cartas (2020). Ajudou, ainda, na criação do Espaço Clarice Lispector no Jardim Botânico e na instalação de uma estátua de bronze, no Leme.

A obra, em tamanho natural, é assinada pelo escultor Edgar Duvivier e, não por acaso, fica no bairro onde Clarice viveu seus últimos anos de vida. Em 2016, Duvivier foi convidado pela prefeitura do Rio para esculpir uma estátua em homenagem à moradora mais ilustre do bairro.

No dia, conheceu Teresa e a atriz Beth Goulart, que interpretou a escritora no monólogo Simplesmente Eu, Clarice Lispector. A certa altura da conversa, Duvivier perguntou: “E quem vai financiar a estátua?” Ninguém soube responder.

Na falta de patrocínio, Duvivier esculpiu 40 maquetes e conseguiu vendê-las, cada uma por R$ 2,5 mil, em 15 dias. Além de esculpir a escritora, esculpiu também Ulisses. “Quando os cachorros passam pela estátua, começam a latir. Tem uns que ameaçam até morder o Ulisses. Minha obra é apreciada até por cachorros!”, diverte-se.

Frame de documentário sobre Clarice Lispector
A escritora em um documentário sobre sua vida

Roteiro clariceano

Entre uma biografia e outra, Teresa lançou O Rio de Clarice — Passeio afetivo pela cidade (2018). O livro nasceu de uma série de passeios culturais, realizados entre 2008 e 2019, pelos bairros onde Clarice viveu na cidade: Tijuca, Centro, Catete, Botafogo, Cosme Velho, Jardim Botânico e Leme. Os participantes leem trechos de sua obra, trocam experiências de leitura e visitam os lugares que ela frequentou.

Um dos pontos altos do roteiro é o número 88 da Gustavo Sampaio, no Leme. Lá mesmo, onde a TVE gravou a entrevista para Os mágicos, em 1976. Clarice morou no Edifício Macedo de 1966 a 1977. Hoje, quem mora no apartamento 701 é a atriz Zezé Motta. “Acredita que, certa vez, uma fã foi lá por conta própria, bateu na porta da Zezé e pediu para conhecer o apartamento?”, indaga, espantada. Sim, Clarice tem dessas coisas.

A ideia de fazer um tour pelas ruas clariceanas do Rio surgiu durante viagem a Itabira (MG), a 111 quilômetros de Belo Horizonte. Na terra natal do escritor Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), placas sinalizam endereços importantes na vida e obra de seu filho mais ilustre. De volta ao Rio, pensou em fazer o mesmo com Clarice.

Às voltas com o lançamento de À procura da própria coisa, Teresa ainda não teve tempo de ler o novo livro de Chico Buarque, Anos de chumbo. Um dos contos, Para Clarice Lispector, com candura, fala da admiração, quase idolatria, de um jovem poeta por uma escritora famosa.

“Chico é lindo e é tímido e é triste. Ah, como eu gostaria de dizer alguma coisa – o quê? – que diminuísse a sua tristeza”, escreveu na coluna do JB de 3 de fevereiro de 1968. “É bacana saber que, depois de todos esses anos, o Chico presta essa homenagem a Clarice”, afirma Teresa.

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