Cântico dos Cânticos: o livro erótico que está na Bíblia Sagrada

Edison Veiga

Reprodução da tela A Queda do Homem, de Peter Paul Rubens
Reprodução da tela A Queda do Homem, de Peter Paul Rubens

No livro “TerraFutura: Dialoghi con Papa Francesco sull’Ecologia Integrale”, uma coletânea de entrevistas do jornalista Carlo Petrini com o papa Francisco lançada neste mês na Itália, o líder máximo da Igreja Católica diz: “O prazer vem diretamente de Deus. Não é católico, nem cristão, nem nada parecido — é simplesmente divino”.

“O prazer de comer serve para manter uma boa saúde, da mesma forma que o prazer sexual serve para embelezar o amor e garantir a continuidade da espécie. O prazer de comer e o prazer sexual vêm de Deus”, afirma o papa.

Se declarações assim podem causar estranhamento aos conservadores católicos, vale ressaltar que a própria Bíblia Sagrada tem um livro erótico. Cântico dos Cânticos, que consta do Antigo Testamento, é o único poema das escrituras que celebra o amor sexual. Ou, nas palavras do professor de hebraico Robert Bernard Alter, da Universidade da Califórnia, em seu livro The Art of Biblical Poetry, trata-se de um texto sobre “dois amantes que se elogiam e se desejam com convites para o prazer mútuo”.

Mas por que uma obra assim acabou incluída na Bíblia — tanto nas escrituras judaicas, o Tanakh, quanto no compilado de livros que os cristãos chamam de Antigo Testamento? Segundo o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, chefe do departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), “não há a possibilidade de falar algo sobre Deus sem falar do amor erótico”.

“Como falar do divino sem falar das entranhas do humano?”, comenta ele em entrevista à BBC News Brasil. “A melhor teologia é sempre teologicamente antropológica. Falamos de Deus olhando corpos, desejos e medos dos humanos. (O poema) foi incluído (nas Sagradas Escrituras) pelos rabinos, pois viram nos textos a metáfora do amor de Deus pelo povo. O amante e a amada.”

Reprodução da tela Adão e Eva, de Julius Pausen
Reprodução da tela Adão e Eva, de Julius Pausen

Diretor de Cultura Judaica do clube A Hebraica de São Paulo e presidente da Cátedra de Cultura Judaica da PUC-SP, José Luiz Goldfarb recupera essa interpretação. “É um dos poemas mais lindos da Bíblia judaica, um dos poemas mais cantados nas nossas cerimônias, sinagogas. Sem dúvida, um texto curioso, quase erótico”, diz ele, à BBC News Brasil. “Claro que a interpretação é a relação do povo de Israel com Deus, uma relação de paixão absoluta, uma paixão quase física.”

No livro O Cantar dos Cantares, o professor de exegese e padre Alzir Sales Coimbra enfatiza que o livro recebe diversas leituras quanto ao tema central. “Destacam-se os temas da sexualidade e do erotismo, do amor erótico, do amor apaixonado, das experiências e descobertas amorosas, do amor sexual. Sem esquecer a definição de Carlos Mesters (frade carmelita e exegeta, autor de Sete Chaves de Leitura para o Cântico dos Cânticos): ‘o amor entre o homem e a mulher tem a ver com Deus'”, expilca à reportagem padre Boris Agustín Nef Ulloa, professor da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da PUC-SP.

“O Cântico dos Cânticos tem sido objeto de leituras e releituras”, acrescenta à BBC News Brasil o padre Carlos Alberto Contieri, reitor do Colégio São Luís e diretor do Pateo do Collegio. “Mas, o tema principal da coletânea é o amor e, mais especificamente, o amor erótico entre o homem e a mulher. Na interpretação alegórico-tipológica judaica e cristã, no amor entre homem e mulher há uma força divina que se mostra na figura insubstituível do parceiro.”

Enredo

Quando ao estilo literário poético, Ulloa, da PUC-SP, não vê o Cântico como um livro peculiar. “Talvez, poderia-se falar em peculiaridade se o olhar se volta para os personagens que desenvolvem o enredo, a trama do livro: o diálogo amoroso entre homem e mulher”, analisa. “A busca incessante do amado pela amada e vice-versa. Este livro, muito provavelmente foi incluído na Bíblia para nos ensinar que a melhor forma de falar de Deus e com Deus é a materialidade do amor humano. Isto é, o amor humano revela o ser de Deus. Em outras palavras, Deus se revela no amor humano.”

“São poemas assentados em antigas histórias de amor que circulavam na oralidade das culturas orientais. A linguagem é explicitamente erótica e irreverente, descrevendo os corpos do amado e de sua amada”, diz Altemeyer, da PUC-SP.

Entre historiadores não há um consenso se o Cântico é um único poema ou uma antologia — já que é possível observar mudanças bruscas de narrador e de cenas. Em seus oito capítulos, contudo, o livro bíblico apresenta diálogos entre amantes, um eu-lírico feminino enaltecendo seu amado e um eu-lírico masculino descrevendo a beleza da mulher.

A voz feminina, por sua vez, é carregada de ousadia. “Que os seus lábios me cubram de beijos! O seu amor é melhor do que o vinho. O seu perfume é suave; o seu nome é para mim como perfume derramado. Nenhuma mulher poderia deixar de amá-lo. Leve-me com você! Vamos depressa! Seja o meu rei e leve-me para o seu quarto”, diz ela, logo no primeiro capítulo.

Para Altemeyer, o Cântico “é uma bela teologia de corpos enamorados que sentem arder o amor e o desejo por vontade de Deus”. “O livro é tão enigmático que um verso central traz a exortação cantada pelo coro: ‘Podem comer, companheiros, bebam e fiquem embriagados, queridos amigos’, exemplifica. “A plenitude íntima dos amantes curiosamente se estende a um coletivo naquele mesmo instante do encontro íntimos do amor. Toda a humanidade e a natureza se tornam partícipes da libido de quem vive o amor erótico.”

“O livro é testemunha da meditação do povo de Israel em seu duro momento histórico, que mescla versos proféticos e versos sapienciais. O autor da versão final quis manter a perspectiva de mistério pela poesia. Nas grutas de Qumram [sítio arqueológico na Cisjordânia], encontramos quatro exemplares do livro, como testemunhas de seu uso em todas as comunidades”, contextualiza Altemeyer. “A história judaica é repleta de metáforas poéticas do amor conjugal aplicadas ao Deus pessoal e ‘ciumento’. Ainda temos leituras dramáticas que cantam a mulher amada em novelas e sagas de amor. Se torna o canto sagrado do amor sexual. Ou seria o canto profano do amor divino? Um livro intrigante…”

Logo no primeiro versículo, o livro tem a autoria atribuída a Salomão (990 a.C. – 931 a.C.), rei de Israel. Tanto que a obra também é chamada de Cânticos de Salomão. Mas há muitas controvérsias sobre quem teria realmente escrito os poemas.

“A origem dos poemas, ao menos em sua primeira redação — note-se que os livros bíblicos passaram por redações e compilações sucessivas, até que se chegasse ao texto tido como canônico, texto final que entrou na lista dos livros considerados inspirados pela tradição judaica e cristã — surgiu num ambiente pastoril-agrícola e campestre”, pontua Ulloa. “Quanto à autoria, há grandes controvérsias entre os estudiosos do livro. Há os que defendem que Salomão teria sido seu autor. Contudo, a grande maioria aponta para o período da dominação persa, isto é, entre os anos 450 a 330 a.C.”

“Não está excluído que o início dessa campanha literária seja o século 9º a.C., o reinado de Salomão. Quanto à data da compilação da coletânea ou da redação final do livro, os autores variam entre o século 7º a.C. e o século 3º a.C.”, afirma Contieri.

“Os textos são atribuídos ao rei Salomão, como tantos entre os livros sapienciais. Entretanto podemos perceber que remontam aos antigos cantos de amor entoados no Egito Antigo”, compara Altemeyer.

Para o filósofo e teólogo é um livro que “quer ser lido com amor e paixão por pessoas enamoradas”. “Um livro sem travas psicanalíticas, pois deixa a todos nus diante do Criador, que assim nos fez belamente. Os versos devem ser lidos sem pudor como algo radicalmente humano louvando os corpos ardentes e seus desejos mais íntimos. Os 117 versos em oito capítulos estão repletos de corpos, de toques e da sexualidade erótica. É canto de puro amor encarnado. De uma forma radical e explícita ele testemunha a feminilidade exuberante. Não pode haver Igreja sem útero e sem amor”, completa.

Capa do livro de Haroldo de Campos em que ele traduz o Cântico dos Cânticos
Capa do livro de Haroldo de Campos em que ele traduz o Cântico dos Cânticos

“Considero particularmente interessante, muito provocativo, que o Cântico dos Cânticos tenha entrado para a Bíblia judaica e tenha essa peculiaridade, de se tornar erótico, quase provocar uma relação muito forte entre o homem e a mulher, o amado e a amada”, diz Goldfarb. “É um texto interessantíssimo e que passou também para a tradição cristã.”

O Cântico dos Cânticos foi incorporado à bíblia judaica provavelmente no século 2º.

“Na tradição cristã, principalmente, na patrologia defendeu-se uma leitura e interpretação alegórica. Fato que também existia na tradição rabínica judaica. Por sua vez, no final da Idade média e inicio da idade moderna, entre os grandes mestres da espiritualidade cristã, houve uma interpretação mística, na qual se identificava a aliança esponsal entre Deus e a alma humana. Sendo Deus — o amado — e a alma — a amada”, explica Ulloa.

“Já no período contemporâneo, com o antropocentrismo e os avanços científicos e tecnológicos, com o advento e progresso das ciências da psiquê, da valorização da corporeidade e das identidades sexuais, o livro passou a ser lido e interpretado à luz desses novos contextos: o amor humano como busca permanente de sentido da existência”, completa ele.

Nos ritos

Goldfarb conta que na tradição judaica trechos do Cântico dos Cânticos são recitados na cerimônia de apresentação, à comunidade, de uma filha mulher. “É uma cerimônia muito linda que ocorre nas sinagogas do mundo todo. O pai e a mãe anunciam o nascimento de sua filha mulher e dão a ela o nome hebraico”, contextualiza.Ícone de Rei Salomão

Ícone de Rei Salomão

“Nós, da sinagoga da Hebraica de São Paulo, tivemos a sorte de utilizar a tradução do [poeta e tradutor] Haroldo de Campos [1929-2003], antes mesmo de ela ser publicada em livro”, relata ele. “Uma vez eu contei para ele [sobre a cerimônia] e, como ele estava trabalhando na tradução, acabou nos ofertando graciosamente, com muita amizade, para que utilizássemos em nossa sinagoga.”

A tradução de Haroldo de Campos saiu em Éden: Um Tríptico Bíblico.

Já no cristianismo, segundo explica Altemeyer, o texto não é tão difundido. “Católicos e evangélicos pouco conhecem o livro. Na Igreja Católica, ele entra nas leituras só duas vezes durante os 365 dias do ano”, aponta. “Ou seja: é um livro escondido. Ou ainda, recalcado.”

Para ele, contudo, o poema traz uma faceta da dimensão humana que não poderia ser ignorada nas Sagradas Escrituras. “Como coletânea bibliográfica — Bíblia —, o livro dos judeus e cristãos não poderia ficar sem essa literatura universal”, comenta. “Se há novela na Bíblia, com Jó, se há aventura, Sansão e Dalila, se há poemas e cânticos, nos Salmos, e história, festas, lutas e sangue, como deixaria de fora a sexualidade? É parte integrante da obra do Criador.”

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