Com garrafa a até R$ 700, mercado de cachaça está em alta na Bahia

Fernanda Santana
Cachaça tem origem genuinamente brasileira e cresce no mercado nacionalCachaça tem origem genuinamente brasileira e cresce no mercado nacional (Nara Gentil/CORREIO)

Produção da bebida no estado envolve de pequenos produtores a turismo; aprenda a reconhecer cachaça de qualidade

Toda boa cachaça começa pelo coração. Na destilação da cana-de-açúcar, surgem a cabeça, a primeira fração, e a cauda, um líquido amargo. Ambas não servem. No meio do processo, estará o coração, a parte central do destilado e que deve ser soberana nesta bebida que surgiu nos engenhos, visitou de senzalas a salões nobres e virou um dos símbolos da cultura brasileira.

Depois de mais de um ano com restrições de funcionamento a bares e restaurantes, os principais canais de escoamento da cachaça, a bebida do coração, resiste. A Bahia tem o quinto maior público consumidor dela, segundo o Instituto Brasileiro da Cachaça, que criou, em 2009, o Dia Nacional da Cachaça, celebrado nesta segunda-feira (13).

“A gente teve um ano muito complicado. A covid-19 trouxe uma série de desafios como um todo. Para as bebidas alcoólicas, e cachaça, particularmente”, pontua Carlos Lima, diretor executivo do Instituto.

Agora, com a reabertura da maior parte desses espaço, produtores e apreciadores da cachaça aguardam um novo momento.

O avanço da produção de cachaça é medido por termômetros como a safra de cana-de-açúcar, matéria-prima bebida. Em 2019, conforme o Levantamento Sistemático da Produção Agrícola do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a Bahia produziu 5,1 toneladas de cana. Dois anos depois, estima-se para a safra deste ano um total de 5,4 toneladas.

Em média, 20% desse total é direcionado à produção artesanal de cachaça e também para  açúcar mascavo, rapadura e melado.

A produção dessa bebida faz parte de uma engrenagem que movimenta desde a agricultura familiar a ambientes privativos onde se vende uma garrafa de cachaça de 750 ml por até R$ 700 – o tamanho das garrafas varia de 600 ml a um litro. É o caso da Quintanda do Baianinho, cachaçaria localizada em Salvador, onde há também espaço para rótulos mais simples, pelo preço de R$ 35.

Para Messias Rocha, advogado e economista que criou a Quitanda há seis anos, a cachaça é “democrática” e “traz sempre um referencial, uma história”, o que a diferencia das demais bebidas e agrega valor ao produto.

“No meu caso, é uma história de um hobbie que virou negócio. Com meus pais e tios, nas viagens em família, sempre voltávamos com uma garrafa de cachaça”, conta.

Há três grupos de bebidas alcóolicas: as fermentadas, como as cervejas, os vinhos e saquês; misturadas, e, por último, fermento destiladas, como o whisky, a vodka, o gim e ela, a cachaça. As cachaças são resultado da fermentação e, depois, da destilação (separação do álcool e da água) do caldo de cana. Primeiro, na fermentação, microorganismos chamados “leveduras” convertem a garapa (sumo da cana) em álcool.

Esse produto, chamado de vinho, é aquecido em alambiques para, só então, surgir a cachaça, “uma bebida que só pode ser chamada assim quando produzida no Brasil” – explica o doutor em Engenharia de Alimentos e mestre em Tecnologia das Fermentações Benjamin de Almeida Mendes – e se  apresentar teor alcoólico de 38% a 48% a cada 100 ml.

Durante a feitura da cachaça, um cheiro adocicado, com fundo alcoólico, se espalha pelos galpões.

No fim, a bebiba pode ser envelhecida anos a fio, em barris de madeira como a Amburana, Jequitibá e Eucalipto, que agregam sabor à bebida. Seja como for, falar de cachaça é remeter ao Brasil

“Há indicações geográficas para as bebidas e a cachaça é uma indicação geográfica. Aguardente pode vir de qualquer lugar do mundo. Já a cachaça tem que ser produzida no Brasil, é associada ao nosso país”, conta Benjamin, que também é presidente da Associação Baiana dos Produtores e de outros Integrantes dos Negócios da Cachaça de Alambique (Abapoinca).

O registro de “indicação geográfica” é conferido a produtos ou serviços característicos de seu local de origem. Conquistado esse título, há ganho em reputação, valor intrínseco identidade e, claro, valor de venda para o exterior. Desde 2001, a cachaça é considerada uma bebida brasileira, após reconhecimento do Governo Federal.

Bahia é quinto maior consumidor de cachaça do Brasil, segundo IBRAC (Foto: Roberto Abreu/Divulgação)

Mas, apenas em 2016, o Comitê Executivo de Gestão (Gecex) da Câmara de Comércio Exterior (Camex) aprovou o regulamento de uso da indicação geográfica (IG) da cachaça. “Cachaça”, portanto, passou a ser um termo que só pode envelopar as garrafas da bebida produzida e regulamentada no Brasil. Da cachaça, faz-se até turismo.

Em Salvador, um dos points de degustação de cachaça é o Cravinho, rota obrigatória para alguns visitantes. Em 2014, o diretor de fotografia Cled Pereira, 36, foi apresentado ao  local por um amigo e, desde então, sempre que vem à cidade, vai até lá. “Adoro o cravinho e jatobá, e a experiência de estar nos bares especializados na cachaça. São espaços com muita personalidade”, defende.

As grandes produtoras

No início dos anos 2000, Luiz Fernando Galletti chegou a Ilhéus, vindo de São Paulo, com intenção de mais qualidade de vida, e uma ideia: produzir uma cachaça para tomar com os amigos. Formado em Química e Ciência da Computação, Luiz já tinha interesse pela alquimia das cachaças, mas nunca tinha estudado o assunto. “Depois de fazer um curso, em Minas Gerais, troquei o hobbie por uma produção legalizada”, lembra Luiz.

Anualmente, são produzidos nos alambiques da fazenda, que se estende por uma área de 30 hectares e emprega dez funcionários, de 40 a 50 mil litros da cachaça Rio do Engenho. “Nosso avanço, aqui na Bahia, é em qualidade”, opina Luiz. Na fazenda dele, depois do processo de destilação do álcool, as cachaças são postas em barris de metais – são as cachaças de prata – por quatro meses – ou de madeira, por um ano ou mais.

“Trabalhamos com cachaças de alta qualidade, é um mercado com poucos produtores, mas muita qualidade”, diz.

As principais regiões produtoras de cachaça no estado são Chapada Diamantina, Oeste, Extremo Sul e Recôncavo. Na Bahia, há 25 produtores registrados para produzir cachaça, segundo o Ministério da Agricultura. A produção encontra condições ideais em regiões mais altas, com climas mais bem definidos e um pouco de frio, elenca Benjamin de Almeida Mendes.

O estado da Bahia é o décimo do país em registros formais. O primeiro é Minas Gerais, com 397. No Brasil, são 955 ao todo. Os números, claro, não  incluem a informalidade.

A Abapoinca estima 1,4 bilhão de litros produzidos formalmente no país, contra 2 bilhões na clandestinidade, o que gera um rombo na arrecadação de impostos e possíveis problemas na qualidade do produto. O Ibrac aponta que o mercado informal tenha ficado ainda maior durante a pandemia.

Uma forma de diferenciar a cachaça de boa qualidade, que prezou pelo coração, é o que a garganta sente após o primeiro gole da bebiba, ensina Luiz.

As cachaças clandestinas costumam utilizar os três subprodutos da destilação da cana.  “É a cachaça de bica corrida, sem seleção. Tomou uma cachaça e a garganta ficou machucada? Para quem não conhece nada de cachaça, é um sinal que não é de boa qualidade”, aconselha o produtor.

Cachaça, a bebida da dor e do prazer

Quando, como e onde a tradição da cachaça surgiu no Brasil ainda não é consenso. Mas as discussões apontam para as direções sudeste – em São Paulo – e nordeste – em Pernambuco ou em um engenho em Porto Seguro, na Bahia – entre 1520 e 1530. “Mas ainda não estamos falando de cachaça e sim de casas de cozer para produzir o açúcar, não se tinha sequer alambiques para produzir a cachaca”, aponta Benjamin.

O historiador Luís da Câmara Cascudo escreveu “onde moí um engenho, destila um alambique” e assim ocorreu no Brasil que se transformou o país da cachaça.

Na produção do açúcar mascavo, melado de cana ou melaço, o caldo de cana é fervido e origina uma espuma farta, em que se concentra “a sujeirinha do caldo da cana”. “Essa sujeirinha, você tira com uma espumadeira e recebe dois nomes especiais: tiborna ou esborro”. Luiz Gonzaga preferia tiborna e a utilizou ao compor “Capim Novo”.

Esse material – tirbona, esborro ou vinho – era misturado à comida dos porcos para adocica-la. Entre os africanos escravizados, a tiborna também virou costume. “E assim surge a história da cachaça no Brasil, quando essa tiborna começa a ser aquecida em alambiques improvisados”, explica Benjamin.

Os escravizados tiravam da cachaça força para aguentar as situações degradantes de trabalho ou alegria para momentos festivos. Era a bebida da dor e do prazer.

A tal ponto chegou a produção de cachaça que, diz Benjamin, 500 litros dela passaram a ser moeda de troca na compra de escravizados. No Brasil, devido à origem, a cachaça foi envolta em discursos de discriminação. Sobre as pessoas jogadas à marginalidade, no fim da escravatura, rapidamente surgiram termos de cunho pejorativo como “cachaceiro” e “pé de cana”. Romper com esse estereótipo racista e mostrar que a cachaça também pode ser aliada da moraderação, é, dizem produtores, uma das missões deles.

Os senhores mais ricos também tomavam cachaça, e “sempre lucraram muito com ela, mas a tomavam envergonhadamente”, escreve a especialista em Turismo, Cultura e Lazer Patrícia Cristina Leite Feitosa. O preço barato da bebida, aliado à história, segundo ela, fizeram da cachaça, ao longo do tempo, uma companhia do brasileiro e uma bebida do coração.

Salvador terá exposição de cachaça

Nos próximos sete dias – de 13 a 20 – a Quitanda do Baianinho realiza, em parceria com o Salvador Shopping, a exposição Semana Baiana da Cachaça, com mostra de grandes rótulos e o objetivo de abordar a importância social, cultural e econômica do maior destilado do Brasil. A ação pode ser visitada gratuitamente no Espaço Gourmet – Piso L1 e é a primeira do Brasil durante a pandemia. O maior evento de exposição de cachaça, a Expocachaça, não ocorreu no ano passado e está prevista para novembro deste ano.

Um dos destaques é a exposição da Cachaça Salinas, natural de Minas Gerais, que desde 2018 é considerada a capital mundial da bebida.

A cachaça começou a ser produzida na cidade mineira depois da chegada dos primeiros fazendeiros que seguiram os rastros da pecuária. Alguns deles chegaram da Bahia entre 1880 e 1890, passaram a desbravar as redondezas e reservar áreas de suas fazendas para o plantio de cana. A mostra ainda exibe itens históricos de Salinas.

Na Semana Baiana da Cachaça, o público também conhecerá mais sobre a tradição e cultura da Cachaça de Alambique na Bahia e no Brasil. Além da bebida, serão apresentados produtos ligadas ao universo da agricultura familiar, como geleias, rapaduras, pimentas e mandioca da região do Recôncavo Baiano e produzidos por cooperativas ligadas ao universo da agricultura familiar.

O crescimento da produção da cachaça genuinamente nacional é destaque no Brasil e, no exterior, e representa cerca de 80% do segmento de destilados. A produção de cana-de-açúcar no Brasil, somente para a fabricação de cachaça, chega a 10 milhões de toneladas por ano, em uma área cultivada de aproximadamente 125 mil hectares.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *