“Com a judicialização da saúde, Estado age como um Robin Hood ao contrário”

Por Claudia Moraes

Ao determinar que o Estado forneça remédios que não são distribuídos pelo SUS, muitas vezes caros ou experimentais, o Judiciário está guiando, indiretamente, a política de saúde pública, fazendo com que a verba destinada para a área privilegie alguns no lugar da coletividade. A opinião é do procurador-geral do estado de São Paulo, Elival da Silva Ramos, que tem enfrentado esse problema diariamente.

hospital

O procurador tem o cálculo na ponta da língua: São Paulo gasta, hoje, mais de R$ 1 bilhão com o cumprimento de ordens judiciais na área de saúde. E analisando onde esse dinheiro foi investido, ele afirma que a judicialização é mais comum em regiões mais ricas, enquanto nas mais pobres, faltam hospitais e saneamento básico. Ou seja, o Estado é obrigado a agir como “um Robin Hood exatamente ao contrário”.

Ramos lidera a Procuradoria-Geral de São Paulo desde 2011, quando foi nomeado pelo governador Geraldo Alckmin. Ele já havia ocupado o cargo de 2001 a 2006, nomeado pelo mesmo governador. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ele afirmou que os precatórios continuam um problema para o governo, pois com a crise econômica, não poderão ser pagos sequer no longo prazo dado pelo Supremo Tribunal Federal (até 2020).

Atualmente, a PGE-SP atua em mais de 1,6 milhão de casos. A grande maioria das ações trata de execuções fiscais. E a partir do ano que vem, esses processos terão um novo aporte tecnológico para o cruzamento de dados de contribuintes.

Além da modernização e de parcerias com outros órgãos, Elival da Silva Ramos, que atua como procurador do estado desde 1980, acha que está na hora de novas contratações na procuradoria, que, atualmente, tem 130 vagas em aberto.

Leia a entrevista:

ConJur – Em março, foi feito um acordo da PGE-SP com o Ministério Público para a repressão de crimes tributários. Como se deu esse acordo? Qual tem sido o resultado?
Elival da Silva Ramos – Este não é um processo comum. Nós costumamos cobrar os devedores através de execuções fiscais, raramente com processo criminal. Nesses casos, houve indícios de prática de algum crime fiscal, sonegação ou fraude. Claro que são indícios, então nós já enviamos 96 expedientes para o Ministério Público. O MP realizou toda a parte deles de investigação. Eventualmente, em conjunto com a Polícia Civil, e já tem vários que estão em fase de denúncia. Nesta fase, a legislação prevê a possibilidade de o devedor efetuar o pagamento.

O Ministério Público suscitou uma dúvida: se esses casos comportariam um parcelamento.  Aparentemente, não comportam, porque são casos todos de substituição tributária. Há, nesse momento, um estudo, para saber se haveria alguma possibilidade de parcelamento ou não. Se não houver, ou o devedor paga ou vai ser denunciado.

ConJur –  Então a parceria continua?
Elival da Silva Ramos – Continua. o que foi ótimo, porque aproximou o setor de repressão a crimes tributários do MP da Procuradoria. Institucionalmente, não havia um trabalho em conjunto, agora foi formalizado. A ideia é que isso vá sendo alimentado de tempos em tempos. Nós quisemos esperar esse primeiro lote estar bem consolidado para poder avançar, mas certamente acho que até o final do ano deve vir um outro lote.

ConJur – E também teve uma cooperação técnica com o Tribunal de Contas do Estado?
Elival da Silva Ramos –
Nesse caso não são propriamente procedimentos de atuação, mas informações que eles nos passam sobre devedores. O tribunal de contas tem as contas de todos os municípios do estado. Então, às vezes, empresas que trabalham com o estado também têm recolhimento de impostos municipais e, com as informações delas, podemos melhorar nosso trabalho de busca pelos bens e localização de devedores, por exemplo.

ConJur –  Conseguem cruzar dados também?
Elival da Silva Ramos –
Essa é a grande ferramenta de combate à fraude, de maneira geral. Hoje, há empresas privadas que fazem esse trabalho, com grande eficiência, que costumam ser contratadas por bancos. Entramos em contato com essas empresas, com computadores de grande porte, e colocamos nosso orçamento para contratar esse tipo de serviço a partir do próximo ano. Hoje, a Procuradoria cruza dados sem a mesma eficiência que resultará desse sistema que está sendo contratado. Vamos contratar para o ano que vem o sistema mais moderno que existe no Brasil, talvez um dos mais modernos do mundo.

ConJur – Essa empresa nova, terceirizada, começa em 2017?
Elival da Silva Ramos – Exato. Hoje, com a crise fiscal, o Estado está cortando gastos ao máximo. O governador tem dado reiteradas declarações nesse sentido, mas essa foi uma exceção. Foi autorizado justamente pela importância para a recuperação de ativos.

ConJur– Muitos setores públicos estão reclamando do corte do orçamento. Qual foi o impacto que teve na Procuradoria?
Elival da Silva Ramos – Atrasos acontecem e isso prejudica o serviço. Há servi~ços que deixamos de contratar. Tivemos uma queda de arrecadação considerável. Quando temos um orçamento projetado e há uma queda de 10%, temos de cortar despesa de 10%. Então, existe o chamado contingenciamento. Esse contingenciamento foi de 25% este ano, e foi transformado em eliminação da despesa orçamentária. Às vezes, você contingência e depois libera. A Procuradoria, aliás, foi uma das poucas que teve alguma liberação de contingenciado, justamente para lidar com algumas dificuldades que a gente tinha, coisas importantes. Mas todos sofremos de alguma maneira, com menos carros alugados e contratos de forma geral.

ConJur– Depois das questões fiscais e tributárias, quais os assuntos que mais entram nas ações da PGE-SP?
Elival da Silva Ramos –
Até setembro, temos em andamento no estado 1.125.000 execuções fiscais, aproximadamente. É um dado relevante, quer dizer, mostra que o estado de fato é um dos principais litigantes em juízo, mas principalmente pelas execuções. Processos que não sejam execuções fiscais somam mais ou menos 500 mil, que é um volume também considerável. Fora execuções fiscais, os assuntos principais que são políticas públicas e ações envolvendo sistema carcerário. Em relação ao sistema carcerário há inúmeras ações sobre superlotação de presídios. Às vezes, questões envolvendo direito à educação. Hoje, no estado de São Paulo, todas as crianças têm acesso à rede, mas pode haver discussões sobre faixa etária, por exemplo.

Sem dúvida, das políticas públicas, a área com maior volume de ações é a saúde, porque são pedidos de medicamentos e procedimentos que não são autorizados pelo SUS. Em geral, as ações são pedidos de medicamentos ou procedimentos não previstos na lista e nos procedimentos autorizados pelo SUS. Quando surge uma coisa nova, como uma insulina importada, ou um procedimento novo, alguns sem registro na Anvisa, vem a discussão. Alguns são experimentais, outros não são autorizados pelo SUS porque têm um equivalente mais econômico. O Supremo ainda vai definir isso.

Depois das execuções fiscais e das ações área de saúde, vêm os processos sobre responsabilidade do estado pelas terceirizadas, depois, ações de servidores em geral, normalmente envolvendo gratificações de policiais militares ou de professores.

ConJur– O estado tem condições de pagar esses medicamentos que são liberados pela Justiça? Uma hora as contas podem não fechar e o estado quebrar?
Elival da Silva Ramos –
O Estado é inquebrável, por uma simples razão: toda a vez que ele paga uma conta, vem cobrar da gente, ou seja, do cidadão comum, aumenta a carga tributária. Por que o Brasil tem uma carga tributária alta? Esse é um dos temas que eu mais gosto de discutir do ponto de vista constitucional. É uma visão também de relação entre Executivo e Judiciário, que envolve separação de Poderes, o papel do Judiciário, a questão de orçamento e vários outros temas, em caráter multidisciplinar do Direito. Toda decisão tem um custo. Inclusive as administrativas. É preciso, primeiro, ter consciência desse custo. Em segundo lugar, envolvem escolhas. Quando o Judiciário manda fornecer insulina importada significa que, do orçamento da saúde, uma parte vai ser destinada para isso. Provavelmente, outras ações que não sejam ações compulsórias deixarão de ser feitas.

No Brasil, não temos a vacina da dengue e temos fornecimento de medicamentos altamente sofisticados em juízo, o que é contraditório. Fornecemos, por esse mecanismo judicial medicamentos que a Suécia, a Dinamarca, não fornecem. Mas não temos prevenção de doenças tropicais, coisas que somente a África subequatoriana tem. O Judiciário brasileiro parece não ter uma clara consciência disso, porque está fazendo uma escolha, pela qual os segmentos mais pobres da população não vão ter vacina.  É a doença da miséria, do subdesenvolvimento, que já podia ter sido eliminada. Mas investimos para cumprir decisão judicial. O CNJ tem ajudado bastante, tem feito vários fóruns nacionais sobre o assunto.

ConJur – Mas não vai ter dinheiro para tudo…
Elival da Silva Ramos –
No Supremo, os ministros estão demonstrando ter essa consciência que a maior parte dos juízes não tem. A legislação do SUS foi sendo aperfeiçoada e é das mais modernas do mundo. Ela prevê o seguinte: primeiro, toda doença, qualquer uma que você cite, que seja ordinária, seja extraordinária, tem uma resposta do sistema. Essa resposta leva em conta a efetividade do medicamento no procedimento e custo, como qualquer sistema público de saúde do mundo. Não vão fornecer tudo, mas alguma resposta, que seja compatível com nosso padrão de orçamento. Quando falavam da fosfoetanolamina, era pior, porque esse não tem nenhuma comprovação científica. Foram milhares de ações aqui em São Paulo, que atolaram o Judiciário.

ConJur – Como o Judiciário tem influenciado as políticas públicas?
Elival da Silva Ramos – Em política pública, o erro é um desastre, porque aquilo se multiplica. Por isso o controle judicial de políticas públicas é um grande tema. Nós temos nos envolvido, não só por defender o estado nas ações, mas institucionalmente para trabalhar o tema. Evitar que leis mal feitas sejam editadas, e de tentar transmitir ao Judiciário uma visão relevando elementos factuais, como, por exemplo, que aqui em São Paulo se gasta hoje mais de R$ 1 bilhão com o cumprimento de ordens judiciais na área de saúde. Quantos hospitais a mais não poderíamos ter? Quantas vacinas?

Quando pergunto qual é a região mais pobre do estado, todo mundo diz que é o Vale do Ribeira, todos os índices mostram. Esta é uma das regiões com o menor índice de judicialização na saúde. Qual é a região mais rica do interior do estado? É Ribeirão Preto, que é a de maior índice. Então, isso mostra que o Judiciário colabora para uma desigualdade no Brasil, porque ele passa a atender segmentos em melhores condições econômicas da população, que têm acesso à Justiça. E o pobre, que é aquele que também não tem acesso à Justiça em geral, porque ali não tem uma Defensoria Pública funcionando, os advogados não têm o mesmo nível técnico dos que atuam em outros lugares… E esse pobre fica sem aquele tratamento, vai ter menos esgoto tratado, vai ter menos vacina, não vai ter um hospital melhor. O Estado deixando de investir nessas áreas significa não atender o mais pobre. Está cumprindo ordem judicial para atender o mais rico. Então, é um Robin Hood exatamente ao contrário, que é promovido por essa judicialização.

ConJur – Como que a Procuradoria se organiza para aplicar as decisões do Supremo? No caso de repercussão geral, ou mesmo de recursos repetitivos?
Elival da Silva Ramos Primeiro avaliamos se cada repercussão geral tem impacto no estado. Se tiver, nós entramos como amicus curiae. Hoje, os estados têm um mecanismo de atuação conjunta que é o Colégio Nacional de Procuradores-Gerais. Uma coisa é eu dizer, por exemplo, que eu gasto aqui R$ 1 bilhão para medicamento, mas se eu somar o Brasil inteiro, todas as secretarias de saúde que me derem os dados, eu levo um número muito mais expressivo. Então, há uma atuação conjunta dos estados que é muito eficiente. Eles distribuem memoriais, procuram os ministros, servem de apoio técnico, mas isso não tira a possibilidade de o procurador geral ir lá e fazer o trabalho. Mas é uma forma de coordenar a atuação entre os estados.

ConJur – E como está a questão dos precatórios?
Elival da Silva Ramos –
O Supremo julgou pela inconstitucionalidade, por um voto, da emenda 62. Mas percebeu que o resultado do julgamento talvez fosse pior do que o que havia antes. O sinal maior disso é que eles deram um prazo enorme para cumprir, que não é comum. Eles julgaram em 2013, depois foram fazer a modulação em 2015 e deram cinco anos. Mas quando o Supremo dá um prazo desses, não imaginava que a partir de 2014 viesse a crise econômica, de não crescimento. A crise gerou a impossibilidade de cumprir até para 2020 e eles sabem disso. Aproveitaram os embargos que estavam pendentes para reabrir a discussão do prazo. Então, embora esteja, por enquanto, valendo cinco anos, é pouco provável que vá ficar os cinco anos.
Para cumprir como parte do Judiciário vê hoje o problema das políticas públicas, vamos constatar que o Brasil é um país inconstitucional, porque não tem PIB para fazer valer 100% da Constituição. Então, os nossos precatórios são parte desse dilema.

ConJur– Os procuradores que têm hoje são suficientes ou pode ser que abra concurso público?
Elival da Silva Ramos Tem que abrir concurso, mas é porque nós temos vagas no quadro hoje. Dos 1.030, nós temos mais de 130 vagas. Então nós temos cerca de 900 efetivamente em exercício. Eu tenho um pedido de autorização para concurso pendente que está aguardando melhorar a situação financeira, mas o estado precisa, em curto prazo, de mais procuradores.

 

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