Como partido de Evo Morales renasceu nas urnas após ter caído em desgraça na Bolívia

Marcia Carmo

Luis Arce, presidente eleito da Bolívia
Luis Arce, do partido Movimento ao Socialismo (MAS), venceu as eleições na Bolívia com 55,1% dos votos

A eleição do ex-ministro da Economia, Luis Arce, para a Presidência da Bolívia, no domingo (18/10), não teria ocorrido se o pleito tivesse sido realizado na data original da eleição, em 3 de maio, apontavam as pesquisas de opinião do período.

Em cinco meses, entre maio e outubro, o partido Movimento ao Socialismo (MAS), de Arce e do ex-presidente Evo Morales, voltou a recuperar terreno até vencer com 55,1% dos votos, no primeiro turno da eleição. O opositor Carlos Mesa, da Comunidade Cidadã (CC), recebeu 28,83% dos votos, segundo a apuração total das urnas, divulgada nesta sexta-feira.

Com a eleição de Arce, a votação do MAS foi ampliada e voltou a ser similar ao resultado da primeira eleição de Evo, em 2005, quando ele recebeu 54,4% dos votos.

Em relação ao pleito de outubro de 2019, que foi anulado, o MAS cresceu cerca de oito pontos percentuais. No ano passado, Evo recebeu 47,07% dos votos e Mesa 36,51%. Apoiadores de Evo ressaltam que ele teria sido eleito e chamaram a anulação da votação de “golpe”.

Seus opositores tinham denunciado uma suposta fraude. Ao se candidatar para o quarto mandato seguido, ele desrespeitou o resultado do plebiscito de 2016 quando o “não” a sua nova candidatura venceu o “sim”, por margem apertada de votos. Houve um recurso ao Judiciário, no entanto, e a candidatura foi autorizada.

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A possibilidade de fraude nas urnas foi descartada por verificações internacionais.

Durante um ano, entre outubro do ano passado e a eleição deste ano, a Bolívia viveu uma ebulição política e foi governada pela presidente interina Jeanine Áñez, que inicialmente parecia ter chances de ser eleita. Primeiro, ela disse que não seria candidata, depois lançou candidatura e, com a imagem desgastada, acabou desistindo da corrida eleitoral.

Guinada eleitoral

No período de cinco meses, entre maio e o dia da votação, no dia 18, o Movimento ao Socialismo deu sua guinada eleitoral. Os adiamentos da eleição para o Palácio presidencial Quemado, anunciados por Áñez, acabaram beneficiando o MAS. Num ano de pandemia do novo coronavírus, o pleito foi adiado, primeiro, para o dia 17 de maio, depois para 6 de setembro e, por último, foi realizada domingo passado.

Em maio deste ano, apontou a pesquisa da empresa Ciesmori, de La Paz, Luis Arce tinha 25% das intenções de voto, Áñez, 26%, e Mesa somava apenas 12%.

Arce e Evo Morales, em foto de arquivo
Arce foi ministro de Evo Morales e, para críticos, seria uma “marionete” do ex-presidente

O que aconteceu entre a possibilidade de derrota ou difícil eleição, em maio, e a ampla vitória de outubro? Que fatos provocaram o crescimento do MAS?

Em entrevista à BBC News Brasil, o analista político José Luis Galvez, diretor da empresa de pesquisas Ciesmori, de La Paz, que antecipou e acertou a ampla vitória de Arce no levantamento de boca de urna, disse que “vários motivos” explicam a mudança do cenário eleitoral na Bolívia em cinco meses.

Em maio, Jeanine Áñez, disse Galvez, disputava o primeiro lugar das intenções de voto com o MAS. Em setembro, um mês antes da eleição, após seu apoio minguar 17% em meio ao desgaste da sua gestão, ela anunciou que desistia da sua candidatura. E chegou a dizer que a oposição deveria “se unir para evitar o retorno da ditadura de Evo”.

O que aconteceu?

“Os eleitores passaram a ter a percepção de que a corrupção passou a ser maior no governo de Jeanine Áñez, que tinha prometido o contrário do que se viu. O uso abusivo de aviões (oficiais) e a denúncia de corrupção na compra de respiradores (para tratamento de coronavírus) foram alguns dos fatos decisivos para o eleitorado”, disse Galvez.

O analista boliviano disse que com o caso dos respiradores, a reputação de Áñez e de seu governo “desmoronou de vez”. Além de superfaturamento, os respiradores não funcionavam para tratamento de covid-19, segundo as denúncias que levaram à queda do ministro da Saúde da gestão de Áñez.

“Existe um consenso no eleitorado boliviano de que o governo de Jeanine Áñez não deu certo e cometeu abusos de corrupção e de poder. Os que esperavam que esse governo de transição levaria o país para uma mudança, viram que essa mudança não existia”, disse.

No ano passado, contou, mais de 60% do eleitorado boliviano afirmou, em uma pesquisa realizada pela Ciesmori, que já tinha votado alguma vez no partido de Arce e de Evo. De fato, na terceira eleição seguida de Evo, em 2014, ele recebeu cerca de 60% dos votos.

Jeanine Áñez, presidente da Bolívia
Após popularidade despencar, a presidente interina Jeanine Áñez desistiu da candidatura

Opção para indecisos

No cenário atual de crise econômica histórica no país, provocada pela pandemia, pela queda nas vendas de gás e nas incertezas políticas, Arce passou a ser visto como a melhor opção entre os indecisos.

Com respaldo de Evo, ele foi o responsável pela estabilidade econômica, com forte redução nos índices de pobreza, durante os 13 anos de gestão do MAS e recebeu elogios até do Fundo Monetário Internacional (FMI) pela responsabilidade fiscal.

Seu perfil levou os indecisos a optarem por sua eleição. A última pesquisa antes da votação, que foi realizada dez dias antes do pleito, mostrou que 27,8% dos eleitores diziam que votariam em branco, nulo ou não sabiam em quem votariam, contou Galvez.

O quadro sugeria a possibilidade de segundo turno, segundo diferentes analistas políticos e econômicos. “O MAS tinha chances de vencer, mas achávamos difícil uma vitória no primeiro turno. Foi uma surpresa”, disse o analista econômico Javier Gómez, da consultoria Centro de Estudos para o Desenvolvimento do Trabalho e Agrário (Cedla, na sigla em espanhol), de La Paz.

‘Carnívoros x Veganos

Na visão de Galvez, da Ciesmori, a ampla vantagem do MAS foi resultado “dos erros” da oposição. “A oposição, além de fragmentada, não soube atrair o eleitorado. Muitos, que não são eleitores do MAS, optaram por Arce, pelo o que ele fez na economia, e porque, na reta final da votação, o opositor Luis Fernando Camacho transmitia a perspectiva de violência”, disse Galvez. Camacho recebeu 14% dos votos no país.

Mas sua votação foi concentrada, principalmente, em Santa Cruz de la Sierra, na fronteira com o Brasil. Este departamento é o motor econômico do Produto Interno Bruto (PIB) e, geralmente, avesso às escolhas de La Paz, o rosto mais visível da cultura indígena boliviana.

Insatisfeitos com o resultado, eleitores de Camacho realizaram protestos, acusando fraude na votação e convocaram novas manifestações para este fim de semana.

Além dos problemas da oposição, da crise econômica, da violência, outro fato contribuiu para a eleição do MAS, o fato de Mesa ser quase “apático” diante da virulência política.

“Em uma das pesquisas, ouvi dos eleitores uma definição sobre Mesa que não esqueci: ‘É uma briga de carnívoros e Mesa não é nem vegetariano, é vegano’. E isso não o ajudou. Também favoreceu ao MAS”, disse o analista da Ciesmori.

Definido como conciliador e paciente, Arce disse que fará um governo de “união”. Terá desafios como os eleitores insatisfeitos com o retorno do MAS e o equilíbrio dentro do próprio Movimento ao Socialismo, do qual seu vice, o ex-chanceler David Choquehuanca, e o ex-presidente Evo Morales fazem parte.

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