Como um engenheiro se transformou no correspondente que imortalizou a voz e a luta dos soldados brasileiros na 2ª Guerra

Hallawell na BBC
‘Como era muito espontâneo e falava bem, fez teatro uma época no Brasil, achavam que ele podia trabalhar na BBC’ | Foto: BBC Archive

Quando tomou a decisão de se mudar para a Grã-Bretanha, o gaúcho e filho de ingleses Francis Hallawell, que vivia no Rio de Janeiro, mal sabia que em poucos anos se tornaria o “Chico da BBC”, o único correspondente de guerra a gravar as vozes dos pracinhas brasileiros.

Assim como muitos integrantes da comunidade britânica na cidade e no país, queria colaborar com o esforço de guerra do Reino Unido, um dos poucos inimigos da Alemanha nazista na Europa a resistir às tentativas de invasão pelas tropas de Hitler.

Ele era engenheiro e trabalhava na Metropolitan-Vickers, uma empresa inglesa que fabricava de locomotivas a equipamento elétrico industrial – como torres e geradores – e que fora contratada para eletrificar os trens da Central do Brasil.

“Ele já tinha uma certa idade, 29 anos, quando se ofereceu para lutar na infantaria inglesa, e não foi aceito”, conta à BBC Brasil Rose Esquenazi, professora da PUC-RJ, pesquisadora sobre TV e rádio no Brasil e autora de O Rádio na Segunda Guerra: no ar, Francis Hallawell, o Chico da BBC.

“Como era muito espontâneo e falava bem, fez teatro uma época no Brasil, achavam que ele podia trabalhar na BBC.”

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Além disso, falava inglês – chegou a estudar por um tempo em um internato na Inglaterra – e português com fluência.

Nos arquivos da BBC, não foi possível encontrar registros de atividades de Hallawell na Seção Brasileira, que completa 80 anos neste mês, até seu envio ao front, em 1944. Mas Esquenazi conta que ele fez um programa no estilo de séries de aventuras sobre guerra dirigidas ao público infanto-juvenil chamado As Aventuras de Fred Perkins, um personagem “intrépido” que lembra um pouco o famoso repórter Tintim.

Francis Hallawell e o general Zenóbio da Costa, em outubro de 1944
Hallawell (à esq.) gravando depoimento de um dos comandantes da FEB, general Zenóbio da Costa, em outubro de 1944 | Foto: BBC Archive

“Na história, Fred Perkins monta um miniaparelho de rádio com o poder de transmitir ao vivo as suas aventuras”, diz Esquenazi.

“Tratava-se de algo inimaginável nos anos 40, antes dos satélites, transistores e chips. O personagem embarca em um avião construído por um amigo e vai até a Alemanha, onde um avião inimigo derruba seu teco-teco. Fred cai em solo alemão, é ameaçado de morte e acaba na antessala de Hitler, ouvindo seus ataques histéricos. Na prisão, Fred é salvo por uma bomba inglesa atirada de um avião da RAF (Força Aérea Real, na sigla em inglês). Assim ele consegue fugir.”

E em um caso típico de vida imitando a arte, Hallawell acaba seguindo passos parecidos aos do personagem ao receber a missão de cobrir a campanha dos soldados brasileiros na Itália.

Missão secreta

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Quando já trabalhava na BBC em Londres, Hallawell se casou com uma funcionária da casa, a belga Julienne, que, entrevistada por Esquenazi, disse que todos os arranjos em torno dessa missão eram “secretos”.

“Eles tinham acabado de se casar, estavam apaixonados, e ele dizia que estava proibido de dar detalhes. Ele recebeu treinamento em algum lugar. A viagem para a Itália era perigosíssima.”

Em julho de 1944, Hallawell se juntou ao grupo de cerca dez correspondentes brasileiros que passaram a acompanhar a FEB, com quem manteve uma relação profissional próxima.

Em depoimento prestado à BBC Brasil em 1995, ele conta que além de gravar reportagens em áudio sobre os pracinhas, tinha de enviar pelo menos uma crônica por dia – que era enviada pelo telex do Exército americano e lida por um locutor durante a transmissão de Londres para o Brasil.

Francis Hallawell
‘Chico da BBC’ usava um aparelho que gravava sons diretamente em discos | Foto: BBC Archive

“Eu tinha, por semana, cinco ou seis dos melhores jornalistas me dando todos eles alguma coisa todos os dias… Em pouco tempo, eu tinha um estoque em Londres de uns dez, quinze programas para eles irem colocando no ar. Nós fazíamos crônicas e, se acontecesse alguma coisa especial, a gente passava por telegrama.”

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Entre esses correspondentes estavam Rubem Braga (Diário Carioca), Joel Silveira (Diários Associados), e Egydio Squeff (O Globo). A crônica, o texto em primeira pessoa descrevendo acontecimentos do cotidiano de forma mais leve, uma mescla entre o texto noticioso e a literatura, acabou dando o tom das informações escritas que vinham do front, em boa parte por causa da forte censura a que os correspondentes eram submetidos.

Vários estudos acadêmicos dão conta da influência da censura – do Exército e do Departamento de Imprensa e Propaganda, seja na Itália ou no Brasil – sobre o material enviado pelos correspondentes.

O próprio Joel Silveira alerta o leitor, em seu livro Histórias de Pracinha: Oito Meses com a Força Expedicionária Brasileira, que “se não tem visto reportagens minhas com prisioneiros tedescos (alemães), a culpa é exclusivamente da censura. Material é que não falta”.

Nos programas com as reportagens de Hallawell essa influência é nítida. As referências a derrotas ou aos horrores da guerra são raras.

Além dos correspondentes, ele teve a preciosa ajuda do jovem engenheiro de som inglês Douglas Farley, da BBC, que operava a unidade móvel de gravação – uma ambulância convertida – e o aparelho que a realizava, um Midget Disc Recorder, que gravava os sons captados por um microfone diretamente em um disco especial de alumínio coberto por um laque especial de acetato.

“Foi projetado pelos engenheiros da BBC especialmente para seus correspondentes na linha de frente”, contou Hallawell em seu depoimento em 1995.

“Constituía-se de uma caixa, pesando uns quinze quilos, muito parecida com aquelas vitrolas portáteis que nos anos 1920 e 1930 a gente levava para piqueniques. Havia uma manivela para dar corda e uma bateria para o microfone e o gravador. A gravação era feita num disco virgem e não era possível ouvir o que a gente tinha gravado mais do que duas vezes, para não inutilizar o disco.”

Quando gravados, esses discos eram transportados “de jipe” para Florença, uma “viagem de mais ou três horas”, e de lá, levados pelo malote do Exército Americano para Roma, ao sul, cidade na qual eram irradiados para Londres, onde eram novamente gravados e preparados para entrar nas transmissões para o Brasil.

Francis e Juliene Hallawell
Hallawell se casou em Londres com belga Julienne, que conheceu na BBC | Foto: Arquivo Pessoal

Na época, essa era a única forma de gravar e transmitir áudio da frente italiana para o Brasil. Por isso, as gravações colhidas por Hallawell tem um valor tão especial para a história dos pracinhas.

“As pessoas queriam que a guerra acabasse, e o Chico trazia as informações lá do front, onde estavam os filhos, os maridos e os noivos”, diz Esquenazi.

O “Chico da BBC” era um bom comunicador, tinha jeito no microfone e empatia com os entrevistados. Para a pesquisadora, apesar do sotaque inglês, sua voz, quando surgia no rádio, “tinha certa intimidade com o ouvido do brasileiro”.

De volta para casa

Com o fim da guerra, Hallawell retornou ao Brasil, mas nunca mais trabalhou como jornalista. Voltou à Metropolitan-Vickers e foi seu gerente-geral no Brasil de 1953 a 1968.

Mas antes, em 1947, lançou um livro, Scatolettas da Itália – scatolettas, ou escatoletas, era o nome dado a caixas dadas pelo Exército americano aos pracinhas contendo alimentos enlatados, chocolates e cigarros; depois, elas eram usadas como moeda de troca com civis italianos.

A obra reúne sete crônicas suas e outras 37 escritas por colegas correspondentes e usadas pela BBC, com capa e ilustrações de Carlos Scliar, cabo da FEB que depois se tornaria um conhecido pintor no país, e prefácio do diretor-geral da BBC na época, William Haley.

Capa de 'Scatollettas da Itália'
Livro publicado por Hallawell em 1947 reúne 44 crônicas escritas por correspondentes de guerra na Itália | Foto: Arquivo pessoal

Em 1999, aposentado e morando com a esposa em um chalé em Petrópolis (RJ), ele foi entrevistado pela equipe que fazia o documentário A Cobra Fumou, baseado em depoimentos de ex-combatentes e correspondentes, como Joel Silveira.

Em entrevista à BBC Brasil, o diretor do filme, o cineasta Vinícius Reis, contou ter encontrado “um senhor amável e generoso”, mas que parecia não ter se libertado ainda – talvez por ter mudado completamente de área de atividade nos últimos 60 anos – das amarras impostas pela censura nos tempos da guerra.

“Um pesquisador do filme tinha encontrado com ele antes, e disse que ‘o Francis é ótimo, tem muita história para contar’. Era para ele ser um personagem do filme. Quando cheguei para entrevistá-lo, ele estava super à vontade. Mas assim que liguei a câmera, ele tinha um roteiro pronto sobre o que queria falar. Era uma fala dura, institucional. Parecia uma propaganda, um texto que tinha de ser aprovado por algum censor. Acabou ficando fora do filme.”

Antes, em 1963, o “Chico da BBC” tinha prestado um tocante depoimento à Seção Brasileira da BBC para a ocasião de seus 25 anos, lembrando os seus oito meses de correspondente de guerra, trabalho que via como uma “ponte” entre os combatentes na Itália e suas família em um país ansioso por notícias.

“Tive a oportunidade de sentir de perto o quanto valia esse contato entre homens de frente e famílias na retaguarda, uma verdadeira ponte falada de anseios, expectativas e emoções… Iniciava-se ali, através de palavras, gestos e expansões, certa maneira nova de amar o Brasil.”

Francis Hallawell morreu em Petrópolis, em 2004.

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