Comunidade na Chapada vive há três séculos com casamento entre primos

André Uzêda
Comunidade na Chapada vive há três séculos com casamento entre primos(Foto: Acervo da família)

Povoado português de Mato Grosso, em Rio de Contas, virou atração turística pela história e relações entre parentes da família Mafra

A 1.500 metros de altitude, na região sudoeste da Chapada Diamantina, o dito popular de que “cunhado nem parente é” se desmancha no ar. Quase todos os 1,2 mil habitantes da comunidade portuguesa de Mato Grosso, em Rio de Contas, se ramificam da mesma árvore genealógica.

Há um costume, tão antigo quanto o próprio povoado, de primos se casarem entre si, perpetuando os laços de sangue. “Não se sabe dizer exatamente quando essa tradição começou. Atualmente, muitos casamentos já se estabelecem entre pessoas de outros locais, mas ainda há os que mantiveram o modelo familiar”, explica Ana Angélica Mafra, de 44 anos. Ela mesma se casou com seu primo de primeiro grau, Valdeck Mafra, de 59. Juntos têm uma filha, de 23.

A família Mafra é, justamente, o máximo divisor comum entre todos os descendentes lusos de Mato Grosso. Quando os recenseadores do IBGE percorrerem as ruas de pedra para aplicar questionários do Censo 2022, boa parte dos moradores indicará o sobrenome nos fichamentos — outros, também comuns, convergem à mesma origem, como “Freire”, “Oliveira” e “Silva”.

“A família Mafra é dominante. São portugueses que vieram no período do ciclo do ouro em Rio de Contas, ainda no século XVIII. Muitos já estavam no Brasil, nos garimpos de Minas Gerais, e migraram quando souberam da descoberta do metal nesta região”, conta Shirlene Mafra, doutora em Memória e Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

A descoberta do ouro aconteceu em 1710, durante uma expedição encampada pelo bandeirante Sebastião Raposo no leito do Rio Brumado. Antes, na área onde hoje é a cidade de Rio de Contas, havia um povoado de negros alforriados e fugidos chamado Pouso dos Criolos.

A cobiça pela riqueza trouxe rápido desenvolvimento à região, na qual, por ser um quilombo, vivia propositadamente isolada de outras freguesias. Em 1718, no ponto mais alto da Serra do Barbalho, foi erguida a comunidade portuguesa, inicialmente com o nome jesuíta de Santo Antônio de Mato Grosso.

Uma das hipóteses que explicaria o início da tradição para os casamentos consanguíneos seria um senso eugênico de preservação do sangue europeu para não misturar com o dos negros escravizados, trazidos para trabalhar no garimpo. Hoje, em Rio de Contas, existem também duas áreas quilombolas preservadas: Barra e Bananal — nenhuma delas mantém casamentos entre familiares.

Embora a tese do isolamento tenha força como suposição, não há comprovação histórica que a sustente à luz da ciência.  “Estas comunidades se relacionam de forma intensa há muito tempo, inclusive com ajuda mútua. Não há um sentimento de segregação, embora a gente entenda que, lá atrás, a escravidão era um ponto de separação. Hoje existe uma ressignificação muito forte e um sentimento de união e pertencimento de quilombolas e portugueses”, pontua Shirlene.

“Algumas das minhas melhores memórias são as grandes festas que aconteciam no povoado. E era sempre comum ver pessoas dos quilombos ali entre a gente, interagindo e participando das relações sociais”, completa o engenheiro elétrico José Roberto Mafra, 48 anos, hoje morando em São Bernardo do Campo (SP).

Seguindo o abecedário matrimonial, ele também se casou com uma parente, embora já tenha se divorciado. Saudosista do seu “lugar no mundo” mantém uma página no Facebook sobre Mato Grosso. “A energia elétrica só chegou lá em 1987. Desde então, muita coisa mudou com a chegada das influências externas. Algumas tradições portuguesas foram se perdendo e, hoje, por exemplo, enfrentamos problemas sérios de som alto que tiram a costumeira tranquilidade do lugar”, cita.

Tradição galega
A pesquisadora Nereida — também uma Mafra — tentou rastrear a origem do sobrenome em Portugal, durante a pesquisa para o doutorado. “Achei que encontraria muitas referências à nossa família por lá, mas foi uma decepção. Não existem famílias Mafras na cidade de Mafra. Não localizei também relações entre os habitantes com a migração para Rio de Contas”, pontua.

Em sua pesquisa, no entanto, Nereida encontrou fortes indícios de que os migrantes da Chapada podem ter vindo da Galícia — entre o norte de Portugal e o noroeste da Espanha, país do qual a região pertence.

“O fenótipo das mulheres de Mato Grosso é muito parecido com as galegas. Estatura mediana, pele branca, cabelo e olhos claros”, relaciona.

A comparação se estende a outras áreas, como a Arquitetura e a Linguística. “Existe um tipo de cerca de pedra que se encontra em nossa comunidade, que é muito semelhante ao confeccionado na Galícia. E é um formato muito próprio. Outro ponto é o tipo de português falado em Mato Grosso. A palavra ‘varrer’, por exemplo, é falado ‘barrer’. É uma forma do galego, em substituir o v pelo b”, diz.

Nereida também pontua a cultura do quintal. “Os galegos costumam plantar hortaliças em seus terrenos e, ainda hoje, é esse tipo de atividade desenvolvida em Mato Grosso”.

Parte do clã Mafra reunido (Foto: Acervo da família)

A comunidade portuguesa, essencialmente agrária, abastece tanto Rio de Contas quanto Livramento de Nossa Senhora com produção de tangerina (chamada por lá de laranja poncã), café e flores — os dois últimos, se intensificam no inverno.

Virou também ponto turístico pela preservação da arquitetura, do chão de pedra e, literalmente, pela hospitalidade familiar que oferece ao visitante.

***

Povoado tem incidência de doenças congênitas
Os laços consanguíneos misturados por três séculos trouxeram uma frequência de doenças autossômicas recessivas para a comunidade. Essas más formações acontecem quando há uma forte combinação de genes não dominantes de pais e mães, próprio em reprodução entre familiares.

“Os relacionamentos consanguíneos aumentam a chance de um casal ter filhos com condições genéticas recessivas. E, quanto maior o número de casamentos consanguíneos entre os ancestrais do mesmo lado da família em comum do casal, maior a chance. Quanto mais próximo for o grau de parentesco, maior a chance de filhos com condições genéticas recessivas. Por exemplo, no caso de primos de primeiro grau, o risco é maior do que para casal de primos de segundo grau”, explica Larissa Souza Mario Bueno, médica geneticista.

Entre os casos mais conhecidos destas doenças estão a fibrose cística, a anemia falciforme e a fenilcetonúria (quando o fígado não consegue processar tipos específicos de aminoácidos). No teste do pezinho é possível avaliar essas enfermidades.

“Eu e meu esposo só tivemos uma filha, que nasceu saudável, e tive medo de ter outros. A gente vê muitos casos de crianças com deficiências em Mato Grosso (comunidade de Rio de Contas). Nunca houve um estudo detalhado, mas muito se fala dessa relação”, conta Ana Mafra.

“Quando sabemos que os pais são portadores para uma única condição genética recessiva, o risco para filhos afetados por esta condição é de 25% a cada gestação. Hoje dispomos de testes genéticos para identificar variantes causadoras de condições recessivas, o que é especialmente útil para aconselhamento reprodutivo dos casais consanguíneos, permitindo o diagnóstico da condição de portadores mesmo antes de terem um filho afetado”, explica a doutora Larissa Bueno.

Fonte: Correio

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *