Coronavírus acelera o futuro e gera mudanças no comportamento; o que dizem especialistas

Por: Anamaria Nascimento/Mariana Moraes

 (Foto: Tarciso Augusto/Esp.DP)
Foto: Tarciso Augusto/Esp.DP

Mudanças que demorariam décadas para acontecer tornaram-se uma realidade apressada por causa da pandemia do novo coronavírus. Consciência maior em relação às formas de consumo, trabalho remoto, eventos virtuais, ensino híbrido. As transformações impostas pela Covid-19 não devem ficar no passado quando o problema de saúde pública for superado. Nada será como antes, dizem especialistas. Como será o mundo pós-pandemia? O Diario ouviu filósofos, sociólogos, psicólogos e cientistas políticos para entender os novos cenários que estão surgindo com o enfrentamento à doença.

Doutor em neuropsiquiatria e ciências do comportamento e coordenador do mestrado em psicologia da saúde da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), Leopoldo Barbosa, afirma que situações adversas têm potencial gerador de mudança. “A pandemia afetou a todos. Muitas pessoas já estão mudando, especialmente aquelas que vivenciaram perdas de perto. Esse momento repercute na valorização de questões que não eram percebidas como importantes antes”, diz.

Leopoldo Barbosa afirma que situações adversas têm potencial gerador de mudança. (Foto: Vitor Lima/Divulgação)
Leopoldo Barbosa afirma que situações adversas têm potencial gerador de mudança. (Foto: Vitor Lima/Divulgação)

Festas com grandes aglomerações, visitas em maternidades e comemoração mensal para bebês reunindo a família devem ser costumes que serão repensados. “Há questões culturais muito fortes, mas já há uma mudança em relação a essas questões. As cidades já estão sendo pensadas em outros formatos, assim como o transporte público. As vidas privadas também estão passando por transformações. As pessoas estão repensando sobre para onde vão e o que vão fazer. Estamos vivendo transformações que demorariam décadas para acontecer”, pontua Leopoldo.

O chefe do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e psicanalista Érico Andrade ressalta que é fundamental pensar sobre as mudanças geradas pela pandemia levando em consideração questões de gênero, classe social e raça. “A forma como você se constitui socialmente gera relações diferentes com este momento. Há uma só pandemia, mas vários mundos. Não há uma unidade no que diz respeito às consequências da pandemia e aos modos como as pessoas vão vivenciá-la”, afirma.

Para quem vive em contextos de vulnerabilidade social e econômica, questões como falta de emprego, morte e sobrevivência serão mais urgentes. “Há pessoas que sempre viveram em condições de emergência, em desfavorecimento material. Esse tipo de construção política (de auxílio) deve ser mantida, deve ser perene. Não pode acabar (no pós-pandemia)”, pontua. Em relação às pessoas que podem fazer trabalho de forma remota, essa é uma tendência que deve ser fortalecida, segundo Érico. “Deve haver também um incremento nessas formas de trabalho. A comunicação também deve continuar ganhando força no digital, como tem sido neste momento”, enfatiza.

Érico observa ainda que tem surgido uma noção maior de que a existência humana não pode ser dissociada da natureza. “Somos, apesar da evolução tecnológica, vulneráveis a um vírus, que precisa do corpo humano para ser transmitido. Precisamos ter muito cuidado e atenção quanto à nossa relação com a natureza. Somos a natureza”, diz.

A pandemia da Covid-19 deve servir como um novo marco histórico, segundo a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz. “(O historiador Eric) Hobsbawm disse que o longo século 19 só terminou depois da Primeira Guerra Mundial. Nós usamos o marcador de tempo: virou o século, tudo mudou. Mas não funciona assim, a experiência humana é que constrói o tempo. Ele tem razão, o longo século 19 terminou com a Primeira Guerra, com mortes, com a experiência do luto, mas também o que significou sobre a capacidade destrutiva. Acho que essa nossa pandemia marca o final do século 20, que foi o século da tecnologia. Nós tivemos um grande desenvolvimento tecnológico, mas agora a pandemia mostra esses limites”, disse, em entrevista ao portal Universa.

Repensando o carnaval

Célio Gouveia, da organização do Elefante, diz que carnaval em 2021 é incerto. (Foto: Tarciso Augusto/Esp.DP)
Célio Gouveia, da organização do Elefante, diz que carnaval em 2021 é incerto. (Foto: Tarciso Augusto/Esp.DP)

As ladeiras cheias e o calor do carnaval de Olinda parecem cada vez mais distantes dos foliões. Com a proibição de aglomerações e a falta de previsão para uma vacina que proteja contra a Covid-19, o evento da cidade, que nasceu ainda no início do século 20, pode não acontecer em 2021. Um dos blocos mais tradicionais da Marim de Caetés e dono de um dos hinos mais emblemáticos do carnaval Pernambucano, o Elefante de Olinda trabalha com a possibilidade de adiamento da festa. Caso isso aconteça, será a primeira vez que a troça não tomará a Rua do Bonfim desde a sua fundação, em 1952.

“A gente não sabe ainda se vai ter carnaval ou não. Mas se tem uma coisa que podemos adiantar é que esta indecisão já inviabiliza muita coisa. O processo de botar o bloco na rua vem de antes, nesta época do ano nós já deveríamos estar finalizando as camisas para colocar à venda em setembro e outubro, para arrecadar dinheiro e pensar em toda logística, toda a parte financeira para participarmos das prévias e do carnaval. Todo este processo leva tempo. Mesmo que por algum milagre surja a vacina e tenha carnaval na data certa, toda essa indecisão já atrapalha a parte de captação de recursos”, diz o designer e fotógrafo, Célio Gouveia, que, há três anos, participa da organização do clube.

De acordo com a Prefeitura de Olinda, em 2020, cerca de R$ 8 milhões foram investidos no carnaval, 70% proveniente da iniciativa privada e 30% dos cofres públicos do município. A ocupação da rede hoteleira, à época, chegou a 98%, resultado maior dos que os 96% apresentado em 2018 e 97% em 2019. Apenas no período momesco, 100 mil empregos diretos e indiretos foram criados. Pelo menos 3,6 milhões de pessoas aproveitaram a festa, entre eles 400 mil turistas estrangeiros, que movimentaram R$ 295 milhões no total. Ainda segundo os dados levantados pela administração da cidade, uma pesquisa de satisfação foi realizada com 2 mil foliões, 92% deles aprovaram o carnaval da cidade e, desses, 98% afirmaram que voltariam para a festa, que pode ser cancelada no próximo ano.

“Trabalhamos muito com a ideia de não haver carnaval, com o adiamento dele. Pensamos que, enquanto não houver, a gente pode e deve, tanto o Elefante quanto outras agremiações, fazer uma articulação para arrecadar recursos para auxiliar as pessoas que trabalham com o carnaval. Se realmente não houver a festa, será uma situação muito difícil para quem depende do período”, afirma Célio. “Quando percebemos que a pandemia iria durar muito, pensamos o que poderíamos fazer para movimentar o Elefante e ajudar uma galera que está precisando bastante, os músicos e outras pessoas que trabalham com o carnaval, como porta-estandartes e ‘faixeiros’, que perderam a renda de uma hora pra outra. Decidimos então criar um projeto, que acabou na sexta-feira (31), chamado Jornada de Frevo, um evento online que contou com palestras, discotecagens e shows. Cobramos um ingresso solidário, para quem pudesse pagar, a arrecadação servirá para ajudar essas categorias que pararam com cestas básicas. Esperamos ajudar as pessoas que precisam, pessoas que nos fazem tão felizes durante o carnaval.”

Para Célio, a parada, caso aconteça, não conseguirá esfriar o amor pela festividade. “O sentimento sobre o carnaval tradicional continua bem vivo, principalmente em Olinda, onde a população realmente vive aquilo. As pessoas decoram as casas com as cores do Elefante, vão às prévias e falam sobre isso”, comenta o organizador, que também não acredita em menos investimentos por parte do poder público nos anos após Covid-19. “Acho muito difícil que eles abram mão. O carnaval é um investimento do estado. O dinheiro que entra é coberto pelos próprios foliões e pelos turistas. É uma festa que dá lucro, que vende o estado para o turismo. Não tem porque cancelar algo assim. Agora algumas coisas têm que ser revistas. O estado gasta muito com artistas de fora do que com as próprias pessoas que fazem o carnaval aqui, do que com as agremiações do estado. As Vassourinhas do Recife, por exemplo, está com a sede acabada e o Batutas de São José não conseguiu sair este ano. Se for pra adiar, se for pra não ter carnaval, que o poder público consiga suprir a demanda. Consiga, de alguma forma, fazer com que esses profissionais da cultura mantenham sua renda.”

Na última quinta-feira, o secretário de Turismo de Pernambuco, Rodrigo Novaes, afirmou que precisa de um prazo maior para visualizar um cenário com uma definição melhor sobre a pandemia do coronavírus e responder sobre o carnaval, mas que uma reunião será realizada na próxima segunda-feira (3) para garantir a viabilidade econômica do evento. O que se sabe é que o estado não poderá realizar a festividade como de costume, caso não seja aprovada e disponibilizada uma vacina para a Covid-19.

“Alguns estados anunciaram o adiamento do carnaval, nós temos nosso prazo e nosso planejamento, não queremos falar disso agora porque ainda é cedo para a realidade de Pernambuco”, disse o secretário. “Para o poder público, teríamos até dezembro para falar sobre isso, mas a gente compreende que o carnaval envolve todo um setor que precisa de resposta. Então não vamos aguardar até dezembro, a gente precisa dar uma sinalização antes. Marcamos uma reunião com representantes do setor de eventos para entender qual é a data possível que eles têm para não comprometer os eventos que eles têm planejado”, pontuou.

Novas crenças e valores?

 (Foto: Bruna Costa/Esp.DP)
Foto: Bruna Costa/Esp.DP

Uma das principais tendências apontadas para o cenário de pós-pandemia é a revisão de crenças e valores. Seremos melhores enquanto sociedade? Segundo a psicóloga mestra em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora do Centro Universitário Tiradentes (Unit-PE), Letícia Souto, as possíveis mudanças vão passar por uma escolha ética. “Não sei se sairemos melhores, mas, certamente, diferentes. É muito arriscado dizer que iremos melhorar”, enfatiza.

“Talvez, a única saída que a gente encontre para passar por isso e após termos passado seja uma saída coletiva. Essa questão ética é uma escolha, mas uma escolha coletiva. Um pequeno detalhe, a escolha de não sair de casa, as atitudes individuais têm implicação no todo, no coletivo. Nessa crise sanitária, política e econômica, somos mais do que impulsionados, forjados à necessidade de tentar pensar eticamente e agir eticamente. E essa nova ética é diferente da que está posta atualmente”, afirma a psicóloga.

A psicóloga Letícia Souto diz que as possíveis mudanças vão passar por uma escolha ética. (Foto: Arquivo Pessoal)
A psicóloga Letícia Souto diz que as possíveis mudanças vão passar por uma escolha ética. (Foto: Arquivo Pessoal)

Exceto para os que negam a realidade, as mudanças serão inevitáveis. “A não ser para os que estão fingindo que o problema não existe, já há algo que mudou. Ainda que se tenha uma vacina, esse controle não virá por absoluto. Pelo menos não no médio prazo. Algo do desconhecido já atravessou os sujeitos e isso tem desdobramentos no nosso comportamento. Somos diferentes e singulares em nossa constituição, então esses desdobramentos serão diferentes. Um mesmo estímulo vai ser percebido de diferentes maneiras e vamos dando sentido a ele. Não é de se estranhar, portanto, que haja uma diversidade grande nos posicionamentos e atitudes neste momento”, diz Letícia.

A doutora em ciência política e professora do curso de direito do Unit-PE, Maria Carmen Chaves, acredita que já está havendo e continuará existindo um cuidado com o outro. “A atenção e o cuidado com o próximo, quando tudo isso passar, vai ser maior do que antes. Mesmo sem o contato físico, há um cuidado maior com o outro. Esse olhar mais cuidadoso, preocupado com o coletivo, vai ser um resultado no pós-pandemia”, observa.

No curto prazo, Maria Carmen considera que abraços e o contato físico mais próximo será menos comum. “Essa é uma necessidade humana, então acredito que, no médio prazo, esse afeto físico volta”, comenta. Para o médio prazo, ela imagina que manifestações culturais serão transformadas. “Não consigo visualizar um carnaval no próximo ano ou grandes festas acontecendo. A maioria das pessoas terá medo desses encontros em multidões”, diz. “No longo prazo, os principais resquícios serão no sentido de reorganizar a vida social e econômica, que está completamente desestruturada neste momento. Esse talvez seja o efeito mais complexo e danoso da pandemia”, completa.

Mercados estão se reinventando  

A cerimonialista Priscila Borba atua há 11 anos com grandes eventos em Pernambuco. (Foto: Rodrigo Castro/Divulgação)
A cerimonialista Priscila Borba atua há 11 anos com grandes eventos em Pernambuco. (Foto: Rodrigo Castro/Divulgação)
“Esse período de pandemia, a princípio, foi assustador. Nosso último evento foi no dia 14 de março. Desde lá, não fizemos nenhuma festa presencialmente. Mas também não paramos em nenhum momento. Continuamos atendendo online, fazendo reuniões e indicações de fornecedores. Tentamos estimular os clientes para que continuem planejando e contratando seus fornecedores. Não queremos que eles desistam dos sonhos deles e que continuem planejando, para que os eventos sejam adiados e não cancelados”, diz a cerimonialista Priscila Borba, que, há 11 anos, trabalha com grandes eventos em Pernambuco.

As atividades econômicas foram paralisadas desde o dia 20 de março e não constam no Plano Estadual de Convivência com a Covid-19. Assim, ainda não há previsão para a volta de eventos no estado, situação que gera ansiedade em quem trabalha na área. “Assim que começou a pandemia, o mercado de eventos estava voltando ao normal e saindo da crise que tinha nos afetado, e afetou todo o país. Estávamos nos reconstruindo, as empresas estavam tomando fôlego novamente, após um período de crise de quase um ano e meio. E aí, veio a pandemia. Acho que o mercado de eventos foi um dos mais afetados. Fomos os primeiros a parar e creio que seremos os últimos a voltar”, recorda Priscila. “Está tendo toda uma ação dos fornecedores de eventos para que o governo do estado se posicione e que a gente tenha uma data de volta, pelo menos. Se vai ser esse ano ou só quando liberar a vacina. Nossos clientes precisam deste retorno para se reagendar, adiar o evento ou manter. Minha empresa tem mais de 20 eventos planejados ainda neste ano, de setembro a dezembro, eles estão aguardando para saber se serão liberados ou não.”

Com uma empresa formada por duas sócias e uma equipe de 13 pessoas, sendo 12 freelancers e uma contratada, Priscila precisou usar o momento para se reinventar. “Lançamos vários projetos durante este período de pandemia. Colocamos nossa nova marca no ar, lançamos uma página no Pinterest, playlists no Spotify, abrimos mais abas no nosso site, entramos no Telegram e realizamos várias lives com fornecedores do ramo. Estamos usando a pandemia para trazer conteúdos interessantes para o mercado e para a nossa empresa”, pontua.

A empresária também sabe dos obstáculos que terá que enfrentar quando o período pós quarentena chegar e espera pelo protocolo estadual para regulamentar o funcionamento de empresas como a sua. “É difícil, a gente sabe que eventos foram feitos para comemorar. São momentos de alegria em que as pessoas querem se abraçar, se beijar, dançar juntos, beber, comer. Ficamos receosos em como isto pode acontecer com tantos protocolos de segurança. Ao mesmo tempo a gente espera que esse protocolo saia e que a volta venha de forma segura para os clientes e fornecedores”, diz Priscila. “Sabemos que é uma doença séria e que muitas regras de segurança terão de ser obedecida, mas sabemos também o quanto é preciso essa volta. Há muitos fornecedores, muitos terceirizados, que dependem dos eventos para sobreviver. Falo de garçons, técnicos de som, músicos, das nossas cerimonialistas e seguranças. A grande maioria são trabalhadores terceirizados que só recebem quando há eventos”
Apesar das dificuldades, Priscila espera que as inovações que colheu durante a quarentena perdurem. “Nós nos renovamos, trouxemos projetos novos para o mercado e a nossa empresa, conseguimos ler muito, estudar muito, sobre como seria essa volta. Treinamos nossa equipe, apresentamos protocolos de segurança para nossos assessores e cerimonialistas, como a importância do distanciamento, o uso de álcool e máscaras. Pedimos também para evitar o contato, coisa que é tão importante no cerimonial. Estamos nos adaptando aos eventos presenciais, quanto à forma remota, buscamos aplicativos para que pudéssemos atender os clientes com maior praticidade. Reuniões online, planilhas, apresentações, vídeos. Tudo para que nossos clientes não fossem atingidos por essa nova realidade.”
Após receber da Associação Brasileira de Empresas de Eventos no Estado (Abeoc-PE) um plano de protocolo para Eventos MICE (Meetings/Encontros, Incentives/Incentivos, Conferences/Conferências, Exhibitions /Feiras), o secretário de Turismo, Rodrigo Novaes, afirmou que o setor de eventos será flexibilizado de forma escalonada. De acordo com o mesmo, casamentos e eventos sociais podem voltar, com público limite de 50 pessoas, em outubro. Outras alterações na liberação devem acontecer apenas em 2021. “Os eventos sociais serão os primeiros e estamos estudando para ver se conseguimos reabrir em um mês, como casamentos e festas de 15 anos. Depois tem os congressos híbridos, que possam reunir poucas pessoas e mesclar com a questão virtual”, explicou.
Fonte: Diário de Pernambuco

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