Crianças órfãs, as vítimas invisíveis do feminicídio no México

Mais de 23.000 menores perderam a mãe na última década no país latino-americano

Jonathan, filho de uma vítima de feminicídio, com sua prima na casa da família.
Jonathan, filho de uma vítima de feminicídio, com sua prima na casa da família.TERESA DE MIGUEL

Na madrugada de 4 de junho de 2018, Karen Yunuen Ruíz Meza vestiu as roupas adequadas para o escritório e foi trabalhar, como fazia toda segunda-feira, deixando a filha de dois anos, Keyla Aneliesse, aos cuidados dos avós. “Ela nunca voltou”, conta sua mãe, Flor Ángel Meza. A moça de 22 anos foi encontrada três dias depois, morta por sufocamento, no quintal de Edson R.E., seu ex-companheiro e pai da menina. Os avós imediatamente pegaram Aneliesse e deixaram a comunidade de Tizayuca, no Estado central de Hidalgo. Um ano após a tragédia, com o pai da pequena foragido, a família ainda vive escondida, sem apoio do Governo.

Aneliesse é uma entre milhares de crianças que ficaram órfãs pela onda de feminicídios no México, país onde 10 mulheres são assassinadas por dia. Embora a lei obrigue, até o momento não há um registro público, nem uma política federal de atendimento sistemático para garantir o seu bem-estar. Especialistas estimam que pelo menos 3.600 crianças ficaram órfãs em 2018 e mais de 23.000 na última década. Muitas delas não só perderam as mães nas mãos de pais ou padrastos, mas também testemunharam o crime. “São vítimas esquecidas do feminicídio. Estão ao desamparo”, resume María de la Luz Estrada, coordenadora do Observatório Cívico Nacional do Feminicídio (OCNF).

“Mamãe ainda não voltou do trabalho?”, perguntava Aneliesse nas primeiras semanas. “Não sabíamos o que dizer”, lembra com pesar a avó, que pediu para dar a entrevista em um shopping center localizado a mais de três horas de onde ocorreu a tragédia. Lá, a garotinha corre, sorriso radiante, se embrenhando no playground entre escorregadores, casas coloridas e copos que dançam. Os avós dizem que ela é sempre assim, “alegre”, mas sabem que carrega uma dor não resolvida. “Não tenho mãe, não tenho pai. Estou sozinha. Vocês são meus avós, vocês não são meus pais”, lhes disse a menina de três anos.

A família recebeu apenas três sessões de terapia, diz Meza, e então o arquivo do caso ficou para trás após uma mudança na equipe. E apesar de eles precisarem não só de orientação psicológica, mas também de comida, assistência médica e ajuda para a tramitação da tutela da menina. “Há muitas coisas, não sei por onde começar. Todo mundo nos ignora”, diz a avó. Os avós temem especialmente não poder cuidar dela no futuro. “Não somos mais jovens e não somos eternos.”

Nadine Gasman, chefe do Instituto Nacional da Mulher (Inmujeres), reconhece que a situação das crianças órfãs é “um problema de emergência nacional e urgente” no México e indica que o Governo federal fará um censo e criará uma política nacional de atenção integral –econômica, psicossocial e educacional– a partir de uma perspectiva de gênero. Para isso, uma série de equipes técnicas está revisando nos 32 Estados desde junho quem são as vítimas colaterais dos feminicídios perpetrados em 2019.

Familiares de Nazaria Iraís Simón Aguilar, vítima de feminicídio, ao lado de seu túmulo.
Familiares de Nazaria Iraís Simón Aguilar, vítima de feminicídio, ao lado de seu túmulo.TERESA DE MIGUEL

Uma estimativa inicial indica que mais de 3.300 crianças ficaram órfãs até maio. O número decorre da multiplicação dos feminicídios e os homicídios dolosos contra as mulheres –1.500 segundo o cadastro da Secretaria Executiva do Sistema Nacional de Segurança Pública (SESNSP)–, pela taxa de natalidade de 2,21 filhos por mulher, segundo a Pesquisa Nacional de Dinâmica Demográfica (ENADID). Seguindo essa lógica, no ano passado mais de 8.100 ficaram órfãos. Algumas mulheres assassinadas não tinham filhos, mas outras tiveram até cinco, portanto, mesmo estimativas para baixo, que considerem um filho por mulher, resultam em mais de 3.600 órfãos em 2018.

“O mais preocupante é que não sabemos com quem estão, se recebem atenção, se vão para a escola”, alerta a pesquisadora María Salguero, que desde 2018 registra os órfãos em seu mapa do feminicídio. A Lei de Acesso das Mulheres a uma Vida Livre de Violência ordena garantir-lhes serviços legais, médicos e psicológicos, como vítimas indiretas. Mas, na prática, a resposta é desigual e deficiente nos Estados, concordam especialistas. As crianças ficam geralmente aos cuidados dos avós, que precisam arcar sozinhos com o luto e a educação dos pequenos em uma idade avançada. E muitas vezes, num contexto de extrema pobreza.

Há poucas exceções. A Comissão Executiva de Atenção às Vítimas (CEAV) do Estado do México, entidade vizinha à capital mexicana, concedeu programas integrais de assistência a 270 crianças órfãs. A CEAV em nível federal, a mais de 180. Mas esta é apenas uma pequena fração das vítimas, já que as comissões atuam em sua jurisdição e a pedido de uma instância oficial ou familiar. O mesmo vale para as Procuradorias de Proteção às Crianças.

Crianças ao desamparo legal

“Ficamos sozinhos com nossa morta, nosso órfão, nossa dor, e nada acontece”, diz Sandra Soto, advogada que já representou 100 queixas perante a Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH) por inação do Governo em casos de menores em orfandade por feminicídio. Soto se tornou ativista depois que sua irmã foi assassinada em janeiro de 2017, deixando órfão um menino de três anos de idade. Ela então começou o grupo no Facebook “Os machos nos matam no México”, que tem 200.000 seguidores.

Keyla Aneliesse em uma sala de brinquedos para crianças.
Keyla Aneliesse em uma sala de brinquedos para crianças.TERESA DE MIGUEL

Soto observa que normalmente a custódia não é processada e as crianças são deixadas em “desamparo legal”, por isso é necessário modificar a lei para facilitar o processo para a família materna. “Como você acham que uma avó, uma mulher idosa cuja filha acaba de ser assassinada, pode ter forças para ficar andando pelos tribunais civis?”

A vulnerabilidade das crianças órfãs por feminicídio é acentuada em um contexto de impunidade e violência constantes, em um país com 40.000 desaparecidos e 250.000 assassinatos na última década, afirma Juan Martín Pérez García, diretor da Rede pelos Direitos da Criança (Redim). Há uma “incapacidade” do Estado para protegê-los, apesar das boas intenções de alguns funcionários públicos e outros trabalhadores. O corte do orçamento de 16% para a infância, desde o início do Governo de Andrés Manuel López Obrador, acentua a crise, diz ele.

A proteção aos órfãos da violência é, portanto, matéria pendente no México, como em grande parte da América Latina, a região mais letal para as mulheres fora de uma zona de guerra. Embora tenha havido avanços com a criminalização do crime de feminicídio, a região ainda tem que lutar contra a impunidade e dar proteção integral às vítimas indiretas, diz Gasman, que liderou a campanha UNA-SE, das Nações Unidas na América Latina e Caribe, pelo fim da violência contra as mulheres. Os países onde as ONGs mantêm estatísticas, como Argentina, Paraguai e Honduras, registram dezenas de milhares de crianças órfãs na última década.

No México, mais de 23.000 mulheres foram mortas nos últimos dez anos. E a violência está aumentando. O país atingiu em maio o preocupante recorde de 10 mulheres vítimas de homicídios por dia, segundo registros da SESNSP. “São milhares e milhares de crianças que tiveram seu futuro roubado. De um momento para o outro, destruíram sua vida”, diz Soto. E depois, o Estado as deixou sozinhas. “Continuam nos matando e as gerações desamparadas continuam crescendo.”

O PESO DA IMPUNIDADE

As crianças órfãs suportam a perda violenta da mãe e também, na maioria dos casos, a dor de um crime não resolvido. Esse é o temor da família de Nazaria Iraís Simón Aguilar, uma professora de ensino médio e taxista de 34 anos que foi morta em setembro de 2017, deixando um menino de 10 anos, Jonathan.

De acordo com a investigação, Iraís foi estuprada e assassinada por três adolescentes quando os levava em seu táxi nas imediações de San Jerónimo Tecuanipan, no Estado de Puebla. As provas na cena do crime teriam sido perdidas por causa dos erros dos especialistas, diz a família, e por isso os investigadores liberariam um dos presos para obter uma confissão. O Ministério Público de Puebla não respondeu a repetidas consultas sobre este acordo judicial.

“Ela sempre se esfolou para criar seu pequeno, que está doente do coração, tem um sopro. Agora fazemos o mesmo”, conta Marlen Simón, irmã da vítima. São uma família de professores e agricultores por tradição, com poucos recursos. Acompanham a causa sem descanso enquanto cuidam de Jonathan, sem nenhum apoio do Governo. Marlen sente que o desamparo do Estado se repete indefinidamente. “Se eles não se importam com nada, nem com minha irmã, nem com as outras mulheres assassinadas, menos ainda se importam com meu sobrinho.”

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