Doente terminal em ‘Bom sucesso’, Antonio Fagundes diz como gostaria de morrer: ‘Em cena, seria maravilhoso’

Qual foi a última loucura de amor que você cometeu? Dias atrás, enquanto gravava o capítulo em que Alberto, seu personagem em “Bom sucesso”, era agredido e batia com a cabeça durante um assalto à sua mansão (foi ao ar no sábado, dia 14), Antonio Fagundes precisou permanecer deitado no chão por mais de meia hora, para que a direção fizesse a marcação da cena com os outros atores. O veterano não perdeu tempo: sacou seu atual livro de cabeceira e ficou ali, deitado, saboreando cada página.

— Alguém da produção foi gentil e me trouxe uma almofadinha para apoiar a cabeça — acrescenta ele, sorrindo, diante da prova cabal de sua paixão pelos livros: — Eu aproveito cada segundinho que tenho para ler. Agora, tenho focado na biografia de Carmen Miranda, escrita por Ruy Castro, para um musical infantil com Amanda Acosta que estou produzindo. Normalmente, leio dois livros por semana. Como esse é grande, intercalo com outro, sobre João Caetano, de autoria de Décio de Almeida Prado. O sujeito dá nome a teatro, praça, rua, mas ninguém sabe quem é!

Eu aproveito cada segundinho que tenho para ler

Antonio Fagundes, ator

Curiosamente, o papo com Fagundes aconteceu num prédio vizinho ao Teatro João Caetano, no Centro do Rio: o Real Gabinete Português de Leitura. A convite do EXTRA, o ator visitou a belíssima biblioteca, com cerca de 350 mil obras de autores portugueses, e se encantou com o que viu.

— Quando viemos aqui da primeira vez, estava em reforma. Tudo coberto, lustre no chão… Não tivemos a dimensão desse lugar. Isso aqui é um presente, a coisa mais linda! — exclamou o ator, na companhia de sua outra paixão, a também atriz Alexandra Martins, intérprete da enfermeira Leila na novela das sete.

Era uma quinta-feira, dia de o casal pegar a ponte aérea para São Paulo, onde encena a peça “Baixa terapia” de sexta a domingo. Às segundas-feiras, os dois retornam ao Rio, onde também têm residência, para gravar “Bom sucesso”. A convivência 24 horas por dia é considerada um prazer por ambos, que garantem: as rusgas no relacionamento ficam restritas ao campo da ficção.

— A implicância é só de Alberto com Leila, nós nos damos muito bem! Tem casal aí que está feliz da vida, viaja junto e se separa uma semana depois. Nossa parceria segue firme, dá certo há 12 anos — afirma Fagundes, trocando cúmplices olhares com a mulher, de 40, que conheceu durante as gravações do seriado “Carga pesada”, em 2007, e com quem se casou, discretamente, há quatro anos.

Criei o hábito de viajar com meus filhos. Uma vez por ano, ou a cada dois anos, nos reunimos todos e passamos um mês conhecendo lugares pelo mundo

Antonio Fagundes

Também a relação mal resolvida de seu personagem com os filhos, Nana (Fabiula Nascimento) e Marcos (Romulo Estrela), não encontra ecos na vida real. O pai da administradora de restaurantes Dinah, de 39 anos; do publicitário Antonio, de 38; da comunicadora Diana, de 37; e do ator Bruno, de 30, conta que costuma reunir “as crianças” com frequência, num clima harmônico e festivo:

— A gente sempre combina de sair para jantar depois da peça. Toda semana estamos juntos, é uma relação gostosa. Também criei o hábito de viajar com meus filhos. Uma vez por ano, ou a cada dois anos, nos reunimos todos e passamos um mês conhecendo lugares pelo mundo. É delicioso!

No último dia 18 de abril, Alexandra e seu quarteto de enteados planejaram uma celebração pelos 70 anos de vida de Fagundes. Avesso a festas, o patriarca foi surpreendido pela reunião de aproximadamente 40 amigos num restaurante em São Paulo.

— Não gosto de festas de aniversário porque acho que você acaba trabalhando mais do que aproveitando. Mas essa surpresa foi ótima, fizeram um grande jantar com gente querida. A gente quase fechou o restaurante! — lembra, satisfeito, entregando que ainda quer se dar de presente uma viagem ao Japão: — Estive lá há uns 40 anos, mas foi rápido, passei uns cinco ou seis dias na região de Tóquio. Prometi que voltaria um dia. Já se passaram décadas e eu ainda não consegui.

Não gosto de festas de aniversário porque acho que você acaba trabalhando mais do que aproveitando. Mas essa surpresa foi ótima, fizeram um grande jantar com gente querida

Antonio Fagundes, ator

A nova e redonda idade, ele conta, não provocou grandes mudanças em seu modo de enxergar a vida e sua inevitável e temida finitude.

— Eu brinco que sempre tive nostalgia da velhice. É um momento bom da vida, quando você já adquiriu algum conhecimento e está mais calmo. Sei que não adianta ter pressa, meu futuro está diminuindo — reflete o veterano, que na pele de Alberto vive o drama de ter uma doença terminal: — Como diz o livro “A morte é um dia que vale a pena viver” (da médica Ana Claudia Quintana Arantes, consultora da novela), o importante é viver intensamente enquanto se estiver por aqui. Se vai ter mais um dia ou seis meses de vida, ninguém sabe. Às vezes, você é jovem e acha que ainda tem muito tempo pela frente, puro engano. E tem idoso com décadas de vida para curtir. Então, “carpe diem” (aproveite o dia)!

Se pudesse, Fagundes só faria um pedido: que sua morte não viesse acompanhada de dor.

— Queria ter dignidade e conforto até o dia do meu fim. A pior coisa não é a morte em si. Ela chega, você encerra. Ruim é o sofrimento que te leva a ela. Morrer dormindo seria ótimo; morrer em cena, maravilhoso! O público ficaria assustado, é claro… Mas, como Moliére, eu entraria para a história (conta-se que o dramaturgo francês morreu no palco, em 1673, protagonizando sua última peça).

Eu brinco que sempre tive nostalgia da velhice. Sei que não adianta ter pressa, meu futuro está diminuindo

Antonio Fagundes, ator

Agnóstico (ou “ateu covarde”, como ele define o termo), o ator diz não acreditar em vida após a morte (“Acho que temos a sorte de estar passando por aqui”), mas exalta o livro maior do cristianismo:

— A Bíblia é fabulosa! Uma obra com três mil anos de existência… As pessoas, geralmente, só a encaram de maneira religiosa. É uma pena, porque deixam de enxergar o valor literário que tem. São histórias fantásticas, contadas de forma econômica e poética. Por isso, resiste tanto tempo. Eu já a li algumas vezes, não sei quantas ao certo. Tenho esse costume de ler a mesma obra várias vezes, e sempre é diferente. Você descobre nas entrelinhas o que ainda não tinha percebido.

Dono de uma editora na ficção, Fagundes tem um acervo particular à altura do exibido em “Bom sucesso” — as equipes de arte e cenografia adquiriram 30 mil livros, para seis cenários.

Depois que leio, aquele livro passa a fazer parte da minha vida. E, se gosto muito, a primeira coisa que faço é comprar cinco ou seis iguais para distribuir entre amigos

Antonio Fagundes, ator

— Tenho uma biblioteca grande em casa, de dois andares. Devem ser, em média, dez mil obras. Mas não há exemplares raros nem autografados. São só para leitura mesmo, não sou um bibliófilo (colecionador de livros raros e preciosos) — explica o carioca, contando que não costuma emprestar seus pertences: — Depois que leio, aquele livro passa a fazer parte da minha vida. E, se gosto muito, a primeira coisa que faço é comprar cinco ou seis iguais para distribuir entre amigos. Aprendi que muita gente gosta de pedir emprestado porque não devolve. Então, eu já me adianto: “Toma, é seu, nem precisa devolver”.

Foi assim, recentemente, com a atriz mirim Valentina Vieira, a Sofia de “Bom sucesso”. Sem netos na vida real, Fagundes se encantou com o gosto de sua parceirinha de cena pela leitura e tratou de cultivar o hábito na menina.

— A gente conversa bastante nos intervalos das gravações. Um dia, falamos sobre (o escritor francês) Júlio Verne, e ela ficou toda interessada. Então, comprei “Vinte mil léguas submarinas” e a presenteei, mas logo percebi que se tratava de um romance difícil para ela. Depois, lhe dei “A Bela e a Fera”. Em uma semana, Valentina leu o livro. Ela é uma graça! — conta ele, lembrando que se apaixonou pela leitura aos 6 anos, quando teve mononucleose e, de repouso forçado, começou a “devorar” gibis.

O Estado não tem que se meter. A responsabilidade pela educação das crianças e dos jovens é exclusivamente dos pais

Antonio Fagundes, sobre a censura na Bienal do Livro a uma HQ

Ao frisar que livros abrem mentes para o mundo, o artista considera abusivo e absurdo censurá-los, como fez a Prefeitura do Rio na Bienal neste mês:

— O Estado não tem que se meter nisso. A responsabilidade pela educação das crianças e dos jovens é exclusivamente dos pais. Se os instruírem bem, poderão colocar em suas mãos o livro que for, que vão saber o que fazer. Se o prefeito queria chamar atenção para o evento, conseguiu. Agradecemos a ele pelo recorde de vendas.

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A VIDA É UM BEST-SELLER

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Listamos sucessos da literatura e pediu a Fagundes que relacionasse tais títulos a sua própria vida. Leitor voraz, ele não teve dificuldade alguma: “Gabaritei. Já li todos esses livros!”.

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‘Cem anos de solidão’ (Gabriel García Márquez, 1967)

“Schopenhauer (filósofo alemão)dizia que você pode ter 15 anos, ser rico e bonito, mas, se não tiver saúde, sua vida será muito ruim. Já aos 100 anos, pobre e feio, mas saudável, vale a pena. Adoraria me tornar um centenário saudável. Quanto à solidão, é boa, é diferente de ser solitário. Ficar quietinho num canto quando se quer é uma maravilha! O solitário não tem escolha”.

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‘Livro do desassossego’ (Fernando Pessoa, 1982)

“Este paisinho em que a gente vive atualmente está tirando a tranquilidade de muita gente. Inclusive, de quem apoia (a situação). Eu estou bastante inquieto, desassossegado”.

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‘Sentimento do mundo’ (Carlos Drummond de Andrade, 1940)

“O problema não é só aqui, acontece no mundo todo. Os americanos chamam de ‘backlash’. Tivemos décadas de progresso social, psicológico e filosófico; conquistamos certa civilidade e direitos humanos; começamos a debater igualdade em profundidade. Agora, veio a era do refluxo, da vingança do que foi sufocado nesse tempo. Espero que o refluxo do refluxo chegue logo, senão vamos amargar. Meu ‘sentimento do mundo’ é de inquietude”.

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‘O estrangeiro’ (Albert Camus, 1942)

“Não tenho vontade de ir embora. Quando viajo, às vezes brinco: ‘Olha que bonitinho, está pra alugar!’. Dez minutos depois, digo: ‘Tem muita coisa pra ser feita no Brasil’. Cultura é vida! Se você vai para um país onde não foi criado, será um estrangeiro, por mais que se adapte, fale o idioma, ganhe dinheiro. Culturalmente, o lugar onde foi criado não sairá de você”.

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‘1984’ (George Orwell, 1949)

“Naquela época, a gente tinha resistência democrática. Ser censurado nos estimulava a falar a mesma coisa de outra forma, para que não percebessem. Não paramos de produzir na ditadura. A década de 1980 inteira foi muito produtiva para mim. Foi quando tive a Companhia Estável de Repertório (cia. de teatro), em São Paulo; fiz muito cinema e novela importante”.

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‘O homem invisível’ (H. G. Wells, 1897)

“A vigilância só é terrível para quem se expõe demais. Não me incomodam os olhares voltados pra mim, quando simpáticos. Mas já dei autógrafo em velório de amigo! Isso não dá…”.

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‘O homem sem qualidades’ (Robert Musil, 1943)

“Defeito pior do que autoritarismo não existe. Empatia é qualidade rara. Não sou autoritário, sou um bunda mole. Meu defeito é a teimosia. É uma boa, às vezes, porque corro atrás, batalho até conseguir o que quero. Mas vira defeito quando vejo que não está dando certo e continuo. Volto atrás, não sou orgulhoso, mas demoro”.

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‘Amor de perdição’ (Camilo Castelo Branco, 1862)

“Atualmente, ficar mais de uma semana junto com alguém já é amor de perdição. Eu e Alexandra estamos há 12 anos!”.

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‘A divina comédia’ (Dante Alighieri, 1320)

“Sou um cara de riso fácil. Acho um perigo você definir uma pessoa por uma primeira impressão. Se derem um tempo e pesquisarem mais, vão ver que no dia em que me acharam antipático talvez eu estivesse com uma dor insuportável na coluna. Não é que tudo seja relativo, mas é preciso contextualizar. Com algumas pessoas, em certas situações, devo ter parecido sisudo”.

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‘A metamorfose’ (Franz Kafka, 1915)

“Seguramente, eu me transformei muito e vou continuar mudando, se Deus quiser. Estou vivo, né? Tem uma frase (do escritor e historiador britânico Tony Judt) que eu adoro: ‘Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião’”.

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‘O iluminado’ (Stephen King, 1977)

“Com certeza, sou um cara de sorte, até por ter nascido na classe média. Não fiz parte de uma família rica, mas tive acesso a livros, teatro, cinema, museus. Isso forma cidadãos com mente mais aberta. É um privilégio, sim”.

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‘Na minha pele’ (Lázaro Ramos, 2017)

“Se tem uma coisa que está à flor da minha pele é a paixão pelo meu ofício. As pessoas costumam me chamar de workaholic, mas a verdade é que amo tudo o que me disponho a fazer. Pra mim não é trabalho, é prazer. Eu não estaria aqui (concedendo esta entrevista) se não fosse por prazer. Não faria sentido. Se estivessem na minha pele, as pessoas descobririam que sou um apaixonado convicto”.

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