Em meio à covid-19, garimpo avança e se aproxima de índios isolados em Roraima

Maloca da comunidade Moxihatëtëma, formada por diveros telhados de palha voltados uns para os outros, com o centro aberto, em maio a clareira na florestaMaloca da comunidade Moxihatëtëma, subgrupo yanomami que vive em isolamento voluntário

Imagens de satélite mostram que garimpeiros estão ampliando suas operações dentro da Terra Indígena Yanomami, em Roraima e no Amazonas, mesmo durante a pandemia do novo coronavírus.

Segundo um boletim produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA), que monitora a atividade na região, houve um aumento de 3% na área degradada por garimpeiros no território yanomami em março em comparação com fevereiro.

Em uma das frentes, as escavações passaram a ocorrer a cerca de 5 quilômetros de uma roça recém-aberta por um subgrupo yanomami que vive em isolamento voluntário e jamais recebeu qualquer vacina.

Indígenas são considerados especialmente vulneráveis à pandemia por conta de costumes que tendem a facilitar a disseminação de doenças respiratórias e da ausência de hospitais em seus territórios.

No caso de indígenas isolados, os riscos são ainda maiores, pois vários desses grupos não têm qualquer memória imunológica contra outros vírus que podem ser levados por forasteiros e que poderiam agravar um eventual surto de covid-19 nas comunidades.

Na última terça-feira, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) divulgou que um jovem yanomami contraiu covid-19 – é o primeiro caso registrado entre a etnia.

O rapaz, que foi levado para a UTI de um hospital em Boa Vista, vive em uma comunidade na região do rio Uraricoera, onde há circulação intensa de garimpeiros.

Maior terra indígena do Brasil

Na fronteira do Brasil com a Venezuela, o território Yanomami é a maior terra indígena do país, com área equivalente à de Portugal. Nele vivem cerca de 26 mil membros dos povos yanomami e ye’kwana, distribuídos em 321 aldeias.

Rico em depósitos de ouro, o território é cobiçado por garimpeiros desde a década de 1970. Desde então, várias doenças levadas por não indígenas assolaram o grupo.

Segundo o boletim do ISA, os novos focos de garimpo degradaram 114 hectares (o equivalente a 114 campos de futebol) de floresta na Terra Indígena Yanomami em março.

As regiões que tiveram maior incremento nas escavações foram as de Hakoma e Parima, “que até então não pareciam ter uma atividade tão intensa”, segundo o boletim.

Garimpo na Terra Indígena YanomamiNovos focos de garimpo degradaram 114 hectares (o equivalente a 114 campos de futebol) de floresta na Terra Indígena Yanomami em março

“Este aumento é especialmente preocupante nesse momento de ameaça de contágio de covid-19, pois nessas regiões estão localizadas comunidades com menos contato com a sociedade nacional, onde as pessoas, possivelmente, possuem sistemas imunológicos mais sensíveis a este tipo de enfermidade”, diz o documento.

O texto também faz um alerta sobre o avanço de garimpeiros na região da Serra da Estrutura, onde um subgrupo yanomami vive em isolamento voluntário, sem contato com outras comunidades.

Em março, imagens de satélite detectaram uma nova roça atribuída ao grupo isolado em um local que fica a cerca de 5 km de uma frente de garimpo ativa na região do rio Novo.

Os autores do boletim dizem acreditar que a roça esteja associada justamente à tentativa de fundação de uma nova aldeia perto da zona de garimpo.

“É possível que essa aproximação seja, inclusive, intencional, visando manter uma relação de troca com os garimpeiros, o que na história de contato dessa sociedade sempre resultou em tragédia para ambos os lados”, diz o boletim.

Os autores do texto estimam que haja 10 mil garimpeiros no território. Eles afirmam que até agora não houve qualquer sinal de diminuição nas atividades de garimpo na região por conta da pandemia do novo coronavírus.

A BBC News Brasil questionou a Funai, a Polícia Federal e o Exército sobre o avanço de garimpeiros no território yanomami, mas não obteve respostas.

Imagem de satélite em março de 2020 mostra focos de garimpos no rio MucajaíImagem de satélite em março de 2020 mostra focos de garimpos no rio Mucajaí

Os três órgãos fizeram várias operações contra o garimpo na região nos últimos anos.

Em uma das iniciativas mais recentes, em janeiro de 2019, um sargento do Exército teve parte da mão decepada ao tentar interceptar um barco que transportava garimpeiros pelo rio Uraricoera.

O piloto jogou a embarcação contra o sargento, que se feriu com a batida. O piloto conseguiu fugir.

Apesar das repetidas operações, os autores do boletim do ISA afirmam que os garimpeiros jamais deixaram o território.

Vários focos de garimpo operam em áreas com pistas de pouso clandestinas. Essas pistas conseguem garantir a chegada de alimentos e combustível para os garimpeiros mesmo quando forças de segurança realizam bloqueios nos rios da região.

Cercados pelo garimpo

Conhecidos como moxihatëtëma thëpë, os indígenas isolados ameaçados pelos garimpeiros pertencem a um subgrupo yanomami monitorado pela Funai há quase uma década. Estima-se que o grupo tenha hoje cerca de 120 integrantes.

Nos anos 1990, houve relatos de confrontos que opuseram os moxihatëtëma a garimpeiros e a outras comunidades yanomami nas regiões dos rios Catrimani, Mucajaí e Apiau.

Chegou a se especular que o grupo tivesse sido extinto por conta dos conflitos e de doenças, até que sobrevoos identificaram as malocas e roças da comunidade em 2011.

Nos últimos anos, o grupo vinha se afastando de uma frente de garimpo na região do rio Mucajaí. Os indígenas seguem se deslocando na mesma direção, só que agora se aproximam de outra frente no rio Novo.

Histórico de epidemias

Em O papel político das epidemias: o caso yamomami, de 1993, a antropóloga Alcida Rita Ramos diz que cerca de mil indígenas – ou 14% da população da etnia em Roraima na época – morreram por conta de doenças no auge da invasão garimpeira, entre 1987 e 1990.

Uma década antes, a construção da rodovia Perimetral Norte na região também expôs as comunidades a epidemias. Entre 1974 e 1975, segundo Ramos, doenças infecciosas mataram 22% da população de quatro aldeias yanomami atingidas pelas obras.

Imagem de satélite em março de 2020 mostra focos de garimpo no rio UraricoeraImagem de satélite em março de 2020 mostra focos de garimpo no rio Uraricoera

“Dois anos depois, mais 50% dos habitantes de outras quatro comunidades sucumbiram a uma epidemia de sarampo”, diz a antropóloga. Entre os cerca de 130 indígenas que viviam no rio Apiaú, só sobreviveram 30.

“Desgarrados, acabaram abandonando a área e juntaram-se a outras comunidades. Em fevereiro de 1992, o que fora suas terras era agora uma gigantesca área de queimadas de mais de 30 mil hectares transformados em projeto de colonização regional.”

Em outra região, os 60 remanescentes de um grupo de 102 indígenas “se dispersaram, abrindo caminho para uma intensa ocupação por colonos brasileiros do que fora terras suas”. “Alguns desses yanomami vivem hoje como agregados nos sítios desses colonos”, escreveu a antropóloga.

Apelo às autoridades

Em post publicado em 27 de março no Facebook, a Hutukara Associação Yanomami, principal organização indígena da região, divulgou fotos recentes de garimpeiros na região do rio Mucajaí.

“Eu quero chamar a atenção das autoridades não indígenas. Na nossa Terra Indígena Yanomami (está) cada vez mais aumentando os garimpeiros ilegais, esses garimpeiros ilegais estão entrando nas comunidades e não são examinados por médicos”, diz o post.

A Hutukara cobrou as autoridades a bloquear as seis principais rotas de acesso às comunidades: os rios Uraricuera, Mucajaí, Ajarani, Catrimani, Demini e Marauiá.

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