Leitura de romances homenageia o escritor José Saramago

O escritor português José Saramago (1922-2010) gostava de revisitar a história de seu país em seus livros, analisando-a de maneira irônica. Ele acreditava que a história é um processo vivo, que ainda está sendo construído, diferente dos antecessores Camões e Alexandre Herculano, que exaltavam o passado. Foi assim com Levantado do Chão(1980) e Memorial do Convento (1982), romances agora reeditados pela Companhia das Letras. Para celebrar, acontece na noite de terça (13) um encontro de escritores, no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação, que vão ler trechos das obras. Lá estarão os brasileiros Milton Hatoum, cronista do Caderno 2, e Andréa del Fuego, além do moçambicano Mia Couto e da espanhola Pilar del Río, presidenta da Fundação José Saramago e sua última esposa.

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“Os dois livros continuam com a mesma importância que tinham há 30 anos: são dois monumentos literários vigorosos nos quais se contam histórias distintas com um estilo hoje absolutamente reconhecível, na época uma grande surpresa”, atesta Pilar. “A saga dos Mau-Tempo, Blimunda, a passarola voando graças às vontades reunidas, a Inquisição, a imposição de um pensamento único, o peso da falta de liberdade, são assuntos que sempre interessam. Esses livros agarram: são de uma grande modernidade, possuem o alento dos clássicos.”

De fato, Levantado do Chão é um romance que se aproxima de uma reportagem ao mostrar o destino conflituoso das pequenas gentes e das grandes fomes que assolaram a região alentejana, devido à resistência ao regime que antecedeu a Revolução dos Cravos. Já Memorial do Convento é um livro de ficção histórica que se passa desde a Idade Média e avança até o século 20. Começa com a construção do Convento de Mafra, no reinado de D. João V. Depois de muita dificuldade, o rei e a rainha conseguem ter um herdeiro, na verdade, uma menina, Maria Rebeca, que se casa com um nobre espanhol.

Destaque ainda para o casal Baltazar e Blimunda. Eles se conhecem e se apaixonam num auto de fé da Inquisição, quando a mãe de Blimunda é acusada de bruxaria. O casal fica nove anos separado e se encontra em outro auto da fé em Lisboa. Só que, desta vez, quem está sendo queimado é Baltazar.

A atualidade da obra de Saramago revela-se cada vez com mais força – basta compararEnsaio sobre a Cegueira Ensaio sobre a Lucidez com a profunda crise moral que marca as nações europeias hoje. “Creio que os intelectuais, os pensadores, têm uma capacidade antecipatória extraordinária”, comenta Pilar. Fazia tempo que Saramago vinha reclamando um humanismo que nos libertasse da maldição de sermos considerados consumidores, e não cidadãos com todos os direitos. Ele tinha muita confiança nas capacidades cívicas de seus semelhantes, sempre que se decidissem a exercê-las. O mal é que, por negligência, covardia moral, comodidade ou por nos darmos por vencidos, preferimos ser cegos,podendo ser lúcidos e ativos. Como às vezes demonstra a parte mais viva da sociedade que irrompe sem programação, como ocorreu no Brasil recentemente.”

Pilar relembra ainda o interesse do escritor pela religião. “Ele não entrava nas crenças pessoais, que respeitava a ponto de declarar que, apesar de não ser crente, se o seu interlocutor tivesse fé, Deus passava a ser uma realidade para ele, mas a religião como poder, como forma de controlar os seres humanos”, afirma. “Em Evangelho Segundo Jesus Cristo, Saramago reflete sobre o poder e a culpa do ponto de vista ‘cristão’, de Jesus, figura pela qual tinha simpatia.

Não pelo Deus bíblico, com o qual torna a se encontrar em Caim, mas pela mediação de Jesus: aí o escritor trata Deus como Deus trata suas criaturas. E acaba pondo fim à história para que não exista uma humanidade ‘à sua imagem e semelhança, que queima cidades para que não haja gays, ou manda dilúvios universais, ou exige provas de amor horrorosas, como matar o próprio filho.”

Fonte: Estado de S. Paulo

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