Malu Fontes: Praias de Salvador sempre foram laboratório de comportamentos

Malu Fontes*

Vai do topless na Boca do Rio a micareta aquática no Porto da Barra

Em 1979, João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar, assumiu o governo e assinou a anistia, autorizando os exilados do regime a voltarem para casa. A anistia de 79 antecipava o tom dos anos 80.

O Brasil começava, assim, um ano antes, a viver sob os signos que marcariam os anos 80, a década que parecia colocar em prática ampliada o que havia sido um ensaio restrito aos adeptos da contracultura dos anos 60. Politizados e nem tanto pareciam transformar sexualmente o corpo em instrumento político, para além da voz, do texto.

Moralidade na areia
Se na década de 80 nos liberamos sexualmente, nas décadas de 90 e nos anos 2000 encaretamos. E tão diversos foram os motivos, embora a Aids tenha sido o maior deles, que não caberiam aqui. As imagens da Praia dos Artistas, na Boca do Rio, traduzem o abismo entre o comportamento das pessoas na praia nos anos 80 e hoje.

Não, não era todo mundo. Mas hoje não é daquele jeito em lugar nenhum. Qualquer mulher que, numa praia de Salvador, ouse tirar a parte de cima do biquíni em 2019 corre o risco de ver a polícia chegar. Alguém vai chamá-la para restaurar a moralidade na areia.

(Foto: Arquivo CORREIO)

Comer água
Poucas cidades brasileiras traduzem tão bem a expressão “nóis sofre, mais nóis goza” como Salvador. Para compreender o quanto isso é verdade, os dois cenários privilegiados de observação são o Carnaval e a praia. Há quem tenha teses geográficas para explicar as diferenças de comportamento entre as praias do Rio de Janeiro e as de Salvador. O carioca vai à praia para se exibir. O baiano, para “comer água”.

Para quem explica isso pelo relevo e pela topografia, os cariocas que se exibem na praia vivem a orla como o templo onde simultaneamente exercitam o corpo e exibem o resultado. O elemento determinante para a relação entre a praia, a malhação e a exibição seria o fato de as praias do Rio situarem-se no mesmo nível do calçadão, do asfalto, das avenidas que as margeiam. Em Salvador, as praias emburacam-se calçadas abaixo, o corpo sai da rua e desce para a faixa de areia lambida pelo mar lá embaixo. E lá embaixo, a maioria não está nem aí para quilos a mais e barrigas negativas.

Pink Money
O Carnaval passou por diversas transformações, mas os modos do povo de apropriar-se da festa continuam espantosamente vivos e revolucionários. Em camarotes, espremidas numa massa uniforme atrás da Baiana System, na Pipoca de Igor Kannário ou encostadas em qualquer placa de madeirite num beco em torno do isopor e do churrasquinho de gato, as pessoas reinventam todo dia formas de inclusão na alegria. Para além da problematização e teorização da exclusão, os pobres entram na festa e a fazem também sua.

Da morte das mortalhas e mamães-sacodes à camarotização, o Carnaval continua laboratório de produção de comportamento popular. Na sua esteira, as festas de Verão e toda a diversidade de ensaios, hoje com um público predominantemente gay. Se o pink money, local e turístico, deixasse de frequentar os ensaios musicais da moda da cidade, raríssimos aconteceriam.

(Foto: Arquivo CORREIO)

E, assim, o povo de Salvador e seu comportamento surfam sobre o tempo e fogem de enquadramentos. Os mais pobres sempre “dão a ideia”, com seus espetinhos e seu isopor, em qualquer lugar onde circule gente. Nas últimas décadas, é verdade que todo mundo correu para a segurança, o conforto e o ar-condicionado dos mega shoppings centers, mas não se confinou lá dentro.

Micareta aquática
Se em 1979 e no começo dos anos 80 os desbundados transformavam a Praia dos Artistas no metro quadrado mais liberal da orla de Salvador, de lá para cá o Porto da Barra nunca perdeu sua majestade quando o assunto é diversidade e tribos. Lá tem sempre de  tudo. Em janeiro de 2019, qual foi a lacração mais comentada da praia? A micareta produzida pelo DJ Maroca, dentro d’água, no Porto. Quanto mais a Sucom o encurralava, esperando-o na areia para confiscar o equipamento, mais a gambiarra sonora causava nas redes sociais, transformado-se em fenômeno do Verão.

Engarrafamento de gente
A cidade espraiou-se a perder de vista, primeiro em torno do Iguatemi e depois seguindo o espinhaço da Avenida Paralela, fundindo-se com o mar e Lauro de Freitas. Mas isso não fez com que a Avenida Sete perdesse a característica que continua a fazê-la ímpar: o engarrafamento de gente, sobretudo em vésperas de festas. Que venham os próximos 40 anos. Salvador e seu povo se dobram para não romper e continuam fazendo as melhores festas populares do país. A herança africana é o combustível essencial dessa engrenagem que, apesar do abismo social, das dores e da segregação, constrói essa festa que não acaba nunca.

(Foto: Arquivo CORREIO)

* Jornalista e professora

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