Meu primeiro festival pornô

No PopPorn, festival de pornografia alternativa que acontece todos os anos em São Paulo desde 2010, repórter aprende sobre shibari e BSDM, acompanha performances sexuais e aprende como fazer seu próprio pornô

O suor verde das garrafas de Heineken escorria rapidamente pelas mãos dos visitantes e seguia desgovernado pelo delta das palmas para se misturar com o sulco corporal, criando uma mistura fina de sal e cevada, do qual os jeans dos rapazes e as saias das moças já estavam encharcados por serem usados como toalhas. Em duplas e trios, os presentes conversavam e ignoravam os pernilongos tontos e anêmicos que passeavam pelo calor abafado do lugar. De gole em gole, levavam as mãos molhadas às coxas e apertavam ansiosamente o tecido – ou a própria pele? – ao mesmo tempo em que os olhos voavam por cima dos ombros, talvez procurando o que eles esperavam encontrar.

 

“Quando eu paguei, valia 500 mil. Hoje vale o dobro!”, “Sem dúvida. O trabalho dele cresceu muito”, “Eu sou boa de buraco!”, “Quando eu voltei de Londres…”, “Eu vi uma camisa que você vai pirar”, “Com certeza isso te influenciou…”. As conversas enchiam os ambientes sem música enquanto os móveis de madeira, úmidos pela chuva de sexta-feira, secavam ao sol oblíquo das 14 horas e inundavam a sétima edição do festival PopPorn com o cheiro de madeira molhada.

Nas entranhas da Vila Madalena, o Centro Cultural Rio Verde recebia naquele sábado, 3 de junho, o único festival independente de pornografia da América Latina. Inspirado no Porn Film Festival de Berlim , o PopPorn é organizado desde 2010 por um coletivo de pessoas ligadas à indústria pornográfica alternativa. Idealizado pela produtora cultural Suzy Capó, a criadora do termo GLS no Brasil e falecida no início de 2015, o festival já está em sua sétima edição e além de filmes, considerados as principais atrações, traz workshops, performances artísticas, debates e uma feira de produtos da indústria do sexo.

Preliminares

Cheguei ao lugar por volta das duas da tarde. O espaço de recepção, uma antessala a céu aberto em formato hexagonal, estava pouco movimentado e quem passeava por ali apenas fazia uma pausa para os patrocinadores em seus estandes recheados de brindes. Ao lado da passagem ao próximo ambiente, um, dois, três pênis encaravam os recém-chegados, eretos e imponentes, presos a uma tábua lilás apoiada sobre um cavalete. Plástico sobre tela. Os três consolos de borracha eretos, com argolas coloridas penduradas, sensualmente convidavam à brincadeira. As risadas eram inevitáveis cada vez que uma argola era arremessada em direção aos órgãos e batia torta na madeira, emitindo um barulho agudo quando o plástico colorido alcançava o chão. Sigo o fluxo até o próximo ambiente, um pátio também a céu aberto que recebe os expositores e um pequeno pergolado que servirá de palco para os debates. O burburinho das conversas reveste a atmosfera comportada e bem vestida dos visitantes. Os seios despontam sem sutiã dos vestidos de verão e os bigodes encerados se movem rigidamente comentando alguma experiência magnífica ou algum filme sueco.

Na sala dos workshops, o curso de shibari, a arte oriental de amarrar pessoas, já havia começado e cerca de vinte alunos acompanhavam atentamente os ensinamentos do professor Toshi San. “Cabeça sobre o rabo, cabeça sobre o rabo”, repete seguidas vezes o mestre, com sua voz seca e calculista, se referindo as extremidades da corda e por onde elas devem passar. Mayanna Rodrigues, a mineira morena de coxas grossas e seios fartos, de blusa regata e minissaia preta, pés descalços e piercing no nariz, serve de modelo ao mestre e à sua audiência, presa nos nós que “não machucam nem cortam a circulação”. Ora em pé, com as mãos para trás, ora de bruços, com as pernas pro alto, as cordas ressaltam ainda mais suas curvas e ela parece saber disso. Imóvel, seu corpo é uma presa fácil aos olhos dos alunos que violentamente tentam se concentrar apenas nos nós. As bocas abertas, onde poro por poro a testosterona trava uma batalha sangrenta contra o pudor hipster, não emitem sequer um ruído, enquanto Toshi demonstra a próxima amarração no corpo de Mayanna. O ranger do assoalho intercala o protagonismo da cena com a fala do professor e durante alguns minutos, tudo o que se pode ouvir na sala é madeira rangendo e “cabeça sobre o rabo”. As alunas, por sua vez, se mostram extremamente práticas e atenciosas aos ensinamentos de Toshi e, chegado o momento de praticar em duplas, os rapazes são imobilizados mais depressa. A excitação seca chega ao ápice quando o professor ajeita os óculos de aros redondos e agradece a presença de todos e a colaboração corporal de Mayanna que, sob os aplausos dos pupilos, se move com graça e leveza sem amarras.

De volta ao pátio, o primeiro debate já estava pra começar. Cadeiras de plástico preto se voltavam em semicírculo para o pergolado e os debatedores tomavam seus lugares e seus microfones. Enquanto negociava o preço de um sabonete natural em formato de mamilo, feito de argila vermelha e gengibre, perdi os nomes e as apresentações dos debatedores. BDSM era a pauta. Três homens e uma mulher colocavam o bondage e o sadomasoquismo em discussão, explicando a distinção entre praticantes e entusiastas. O sol já ameaçava se esconder e, quanto mais o debate se aproximava do fim, mais os visitantes se inquietavam em seus assentos, em busca da excitação que a próxima atração poderia trazer. Para o próximo workshop, atriz e diretor prometiam discutir os rumos e os desdobramentos que as mídias digitais poderiam trazer à pornografia. Emme White, atriz e camgirl, sentada ao lado de Roy Louis Di Paul, diretor e proprietário do site pornô X-Plastic, dão início ao segundo curso do festival. Alguns dos alunos tinham participado das aulas de shibari, outros eram figuras novas. Depois das devidas apresentações, o microfone passa de mão em mão e lentamente o workshop vai se transformando em um bate-papo casual, uma espécie de café pornográfico entre intelectuais do meio. Dois jovens petulantes trazem uma dose de tensão para a conversa, interrompendo sistematicamente a atriz e o diretor, contrariando seus argumentos a qualquer custo. Um deles quer se tornar ator pornô e tenho a impressão de que seu rosto está atrapalhando o nascimento de suas acnes. Nessa quase broxada, saio da sala. E já era noite.

Lucas Estanislau

Oficina Pornô faça você mesmo com Mel Fire, Fabiane Thompson, Patrícia Kimberly e Emme White

Toda nudez será abençoada (ou vias de fato)

O sol já havia se posto e levado com ele uma camada de pudor e reserva que a luz neon e a as batidas eletrônicas de uma canção sexy agora rasgavam e pervertiam em saliva e tesão. A mineira Mayanna, morena mineira, agora havia se pintado e se vestido como uma coelinha da Playboy. Meia calça preta, salto agulha, espartilho branco e preto, gravata borboleta e uma tiara de orelhinhas de coelho. A maquiagem carregada em seu rosto ressaltava a saliência de suas tatuagens espalhadas pelo corpo todo. A música eletrônica reverberava timidamente pela potência que os alto falantes de um computador permitiam.

Agora Mayanna assumia o pergolado e o público, sentado no semicírculo das cadeiras de plástico, parecia agradecer mentalmente por não se tratar de mais um debate. Seu corpo começa a flutuar lentamente ao som de uma canção norte-americana e seu quadril parece avançar sobre a plateia, que agora é obrigada a se esticar em pé atrás das cadeiras ocupadas. As mãos suam como nunca e a cerveja parece ser insuficiente para saciar a ansiedade do público. Quando Mayanna começa a se despir, ouvem-se gritinhos modestos de excitação que são rapidamente reprimidos pelos olhares mais experientes daquela arte, que parecem não admitir aquele tipo de prática amadora. Alguns cruzam os braços, se reclinam o quanto podem nas cadeiras de plástico e apreciam os seios da morena, que agora respiram com vigor, livres do espartilho apertado.

Só de meias e salto agulha, agora Mayanna pega um microfone e pede algumas peças de roupa da sua plateia. Uma camiseta, uma calça, uma calcinha, duas, três, um sutiã, dois, começam a ser arremessados para a performer de cabelos negros. Entre um pouco de vergonha e muita excitação coletiva, a audiência gargalha cada vez que uma peça íntima é atirada ao palco. A morena agradece e pede que seu parceiro agora se junte a ela para finalizarem a apresentação. Ela lentamente retira os sapatos e a meia e aperta stop no computador para encerrar a música, enquanto um homem gordo, de cabelos raspados com apenas um longo dread lock escorrendo da parte de trás de sua cabeça, se aproxima do palco e começa a se despir. Agora homem e mulher estão nus e o público silencia para apreciar a performance humana do casal.

Mayanna senta em uma cadeira de madeira, seu quadril se esparrama para muito além das extremidades e o homem, de costas para a platéia, se deita aos pés da garota que lhe estende um consolo azul escuro. Ele acaricia gentilmente Mayanna que, com extrema leveza, joga o pescoço para trás e move o quadril para frente, buscando a posição perfeita. O braço direito do homem agora começa a se mover mais depressa e a língua da morena acaricia os próprios lábios, simbolizando uma independência afetiva. Suas mãos se erguem e buscam os mamilos rijos, alternando entre movimentos circulares e ligeiros puxões.

Nesse momento, quase se pode ouvir o ranger dentro das bocas secas da plateia, que permanece em silêncio, mas se eleva numa espécie de ereção coletiva. O cotovelo do rapaz agora se torna um pistão de motor, se movendo com vigor e precisão, movimentando todo o corpo de Mayanna em rápidos espasmos e jogadas de cabelo. Os gritos da garota vão ganhando corpo e duração, o misto de vogais vai se perdendo dando lugar apenas a um longo e vigoroso “A”. Suas pernas agora tremem e ela quase despenca da cadeira uma série de vezes, mas isso não faz com que o cotovelo pistão pare de funcionar, cada vez mais potente. Os cabelos desgrenhados, o suor de seu corpo, os dedos dos pés retorcidos, os gritos cortantes erguem o público em um mantra extremamente sensual. Algumas pessoas se levantam realmente das cadeiras, mas apenas alguns centímetros, para se sentarem logo em seguida e camuflarem a excitação. Quando Mayanna vai ao chão, de joelhos, entregue nos braços do assistente, a cadeira voa para trás e o barulho da madeira se mistura com o grito final da artista, que ajeita os cabelos e, numa pausa sincera, sorri. A plateia vibra com aplausos, gritos e assovios. Os que estavam sentados se levantam e gritam “bravo!”. Os que estavam em pé, parecem querer saltitar e aplaudem com as mãos estendidas para o céu. O semicírculo que reverenciou aquele orgasmo.

Um contra um: o gozo

Maiô de oncinha, vestidinho vermelho, body preto bem colado e muita pele. Quando as quatro garotas entram na sala para o último workshop da noite, o público está em êxtase e não espera menos do que elas podem dar. Mel Fire, Fabiane Thompson, Patrícia Kimberly e Emme White são as estrelas da noite. O Pornô faça você mesmo promete ensinar aos vinte alunos presentes técnicas de filmagem e luz para um bom filme pornográfico. Para tanto, o cinegrafista Rafael Nobre e o diretor Roy se juntam para desmistificar todas as técnicas e truques para um bom resultado nas filmagens. Mas as quatro garotas têm brilho e libido. Com elas na sala, as palavras dos dois especialistas ecoam em ouvidos vazios.

Uma nuvem espessa de suor e cerveja, evaporado dos jeans dos rapazes e das saias das moças, parece pairar sobre o teto da sala. Agora, não são apenas as mãos que suam, mas o corpo todo daquelas pessoas respirando e implorando silenciosamente por alguma “ação”. O calor vindo dos refletores acesos por Rafael é insuportável e os poros da audiência parecem se abrir cada vez mais na esperança de eliminar água e absorver o resto. Quando Roy chama as garotas, os saltos altos parecem bater no mesmo compasso dos corações. Finalmente.

O público se divide em quatro grupos e a proposta é que brinquem de roteiristas. A melhor história será encenada pelas experientes atrizes. Emme parece comandar o grupo, falando com mais força perante as demais. A história é escolhida por ela, onde Fabiane irá interpretar uma professora do sexo, que ensinaria as suas alunas como obter mais prazer. No meio da aula, ela seria “atacada” pelas alunas e o resto correria naturalmente. Quando assumem o palco, os flashes dos celulares não são capazes de competir com os potentes refletores e a pele das garotas fica iluminada por uma luz torpe amarelada. O grupo “diretor” tenta dar as coordenadas para o filme, mas as garotas riem tão alto que lentamente a dinâmica proposta vai se esvaziando. Porém quando os seios começam a aparecer e os toques se tornam mais intensos, ninguém parece se importar com qualquer proposta.

Fabiane, sentada numa cadeira, recebe as carícias das outras três e solta gemidos que terminam em gargalhadas. Pernas se abrem, braços se esticam, bocas se movem, tudo numa acrobacia sensual e descompromissada. Lentamente, as quatro se tornam um só corpo, movendo seus 16 membros num ritmo embalado e circular. O público calado assiste pelas telas àquele espetáculo humano, daquele que é agora um só organismo vivo que grita, arfa, engasga, geme e ri. E rapidamente, também se torna um único e gigantesco voyeur, que observa saliva, filma e cala. Vinte contra quatro. Um contra um.

 

Publicado originalmente na agência de notícias de Jornalismo da PUC

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