No mês com recorde de letalidade policial no Rio, só 17% dos mortos portavam fuzis

Alessandra olha para o grafite com o rosto do filho, Alan
Alessandra olha para o grafite com o rosto do filho, Alan Foto: Guilherme Pinto / Agência O Globo
Rafael Soares

Menos de 20% dos mortos pela polícia em julho de 2019 — mês com maior número de casos de letalidade policial na história do Rio — portavam fuzis. A partir de dados dos inquéritos abertos para investigar os crimes e informações divulgadas pela PM e pela Polícia Civil após as mortes, o EXTRA conseguiu determinar as circunstâncias em que 135 das 195 vítimas da polícia em julho foram mortas. Pistolas foram as armas mais frequentemente apreendida nesses casos: em 59% dos casos, os mortos foram acusados de portar o armamento. O levantamento foi publicado, inicialmente, na revista “Época”.

Depois de eleito governador, ainda em 2018, Wilson Witzel (PSC) sempre pregou uma “política de abate”, sintetizada em sua diretriz de que os policiais deveriam “mirar na cabecinha…. e fogo!” na direção de bandidos que portassem fuzis. No entanto, só com 24 dos mortos — 17% — foram encontrados fuzis. As outras vítimas portavam revólveres, granadas, espingardas e até armas de brinquedo. Com dois dos mortos, os agentes não apreenderam armas.

Parentes de algumas vítimas ouvidas pelo EXTRA, entretanto, negam que os mortos estivessem armados quando foram baleados. Alan Ladeira, de 18 anos, foi morto por policiais militares do 41º BPM (Irajá) durante um show de pagode no campo da favela Para-Pedro, na Zona Norte, na madrugada de 14 de julho. Após o crime, os PMs alegaram, na Delegacia de Homicídios (DH), que foram atacados a tiros quando chegaram no local e reagiram, apertando os gatilhos de seus fuzis 33 vezes no total. Em seguida, avistaram Alan caído. Por fim, os agentes dizem que “fizeram uma varredura no local” onde ele estava caído e afirmam ter encontrado uma pistola.

— Eles estão mentindo. Mataram um inocente. Meu filho não estava armado. Ele estudava e queria seguir carreira militar. Ia se apresentar ao Exército em outubro — diz a dona de casa Alessandra Ladeira, mãe de Alan, aluno do Colégio Estadual República de Cabo Verde, vizinho à favela.

‘Não estava armado’

Provas que fazem parte do inquérito que investiga o caso corroboram a versão da mãe de Alan. Filmagens feitas por frequentadores do evento mostram que o campo de futebol estava cheio quando os PMs chegaram. Houve correria, e a atração principal do evento, o pagodeiro Mr. Dan, teve que interromper o show em meio aos tiros. Uma testemunha ocular do crime — que também estava no campo onde acontecia o show de pagode — afirmou à DH que havia traficantes armados no local, mas eles “não atiraram nos policiais militares”.

A mulher diz que viu Alan ser atingido por tiros disparados por um “policial careca”. Segundo ela, o adolescente só estava com um copo verde, de plástico, na cintura: “Alan não estava armado”. Um exame não encontrou vestígios de pólvora em suas mãos.

Alessandra, mãe de Alan, passou a madrugada acordada e estava acordada quando, às 7h, um morador da favela bateu na sua porta e avisou que seu filho estava baleado. Ela ainda chegou a ver Alan caído num canteiro ao lado do campo onde acontecia o show.

— Nenhuma mãe deveria ver uma cena dessas. Quando vi ele no chão, comecei a passar mal. Até hoje, quero acreditar que é tudo mentira, que vou acordar e ele vai estar em casa — diz.

Moradores ainda tentaram socorrer o adolescente: colocaram-no numa Kombi para ser levado para um hospital. PMs interceptaram o veículo e determinaram que o adolescente fosse transferido para uma viatura. Atingido por quatro tiros, ele morreu antes de dar entrada no Hospital Carlos Chagas.

Em 60% dos casos, não houve perícia

Em 88% dos casos, as mortes aconteceram durante operações da polícia em favelas. Também houve casos em que os policiais realizavam ações de patrulhamento rotineiro e testemunharam roubos, e ainda ocasiões em que os criminosos foram mortos quando tentaram assaltar policiais de folga. Em 95% dos casos, policiais militares foram os responsáveis pelos disparos que balearam a vítima. Somente sete dos mortos foram atingidos por policiais civis.

Nas investigações dos crimes de 60% das vítimas, a Polícia Civil não fez perícia no local, já que as vítimas foram levadas para hospitais e as cenas dos crimes foram desfeitas. Em todos esses casos, os responsáveis pela investigação sequer visitaram posteriormente os locais onde os homicídios aconteceram.

PM, durante operação no Complexo do Alemão
PM, durante operação no Complexo do Alemão Foto: Fabiano Rocha / Fabiano Rocha

— A retirada das vítimas dos locais a pretexto de socorro é sistemática. Muitas vezes, as vítimas já estão mortas quando são removidas. Isso prejudica muito as investigações, que precisam reconstituir a cena do crime. Por isso, muitas vezes, solicitamos que a polícia vá ao local do crime, mesmo sem o corpo presente, depois do fato. É importante para entender a cena, no entanto quase nunca é feito — afirma o defensor público Daniel Lozoya, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio.

Levantamento

Ao menos 12 casos de mortes cometidas pela polícia do Rio, em um mês, apresentados como “confronto com bandidos”, têm indícios graves de que inocentes foram mortos por engano, segundo um levantamento publicado pela revista “Época”. A reportagem analisou todas as informações disponíveis sobre as 195 “mortes por intervenção de agentes do Estado” ocorridas em julho de 2019.

O levantamento mostra que, seis meses depois, nenhum policial foi denunciado à Justiça. Onze inquéritos já foram arquivados: a Polícia Civil concluiu que a versão apresentada pelos agentes é coerente, e a Justiça encerrou as investigações a pedido do Ministério Público. A maioria dos casos segue em aberto: 121 inquéritos, ou 80%, estão em andamento. Dados de 19 inquéritos não foram encontrados.

A PM foi procurada pelo EXTRA para comentar a acusação da família de Alan, de que o jovem estava desarmado quando foi morto por policiais do 41º BPM. A corporação, entretanto, não respondeu os questionamentos enviados.

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