O fim trágico da Menina sem Nome

Túmulo de garota encontrada morta em praia do Recife atrai peregrinos e curiosos ao Cemitério de Santo Amaro

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Túmulo da Menina sem Nome atrai muitos visitantes no Dia de Finados / Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem

Túmulo da Menina sem Nome atrai muitos visitantes no Dia de Finados

Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem

A famosa Menina sem Nome, cujo túmulo é um dos mais visitados do Cemitério de Santo Amaro, na área central do Recife, e a quem se atribuem graças, não foi morta por afogamento, jamais sofreu violência sexual e não conseguiu se defender do seu agressor.

Devotos atribuem a ela graças alcançadas. Falam de cura para doenças e de proteção para a família. No local, depositam bonecas e doces. Também há diversas placas com agradecimentos, alguns anônimos, e o espaço onde são depositadas as velas está sempre quente, demonstrando que as visitas não são só restritas ao dia 2 de novembro.

A garota foi encontrada morta na manhã do dia 23 de junho de 1970, na Praia do Pina, Zona Sul da cidade. Estava com as mãos amarradas para trás e sem roupas. Em volta de seu pescoço, havia uma outra corda. O caso teve grande repercussão no Estado à época, mobilizando as forças policiais na caçada ao assassino.

Durante 45 anos, a versão corrente foi de que ela havia sido violentada e jogada, ainda com as mãos atadas, na areia da praia. Também se ventilou a possibilidade de afogamento. O ofício de remoção de corpos número 891, de 1970, assinado pelo delegado Josenaldo Galvão, dá conta de que, na manhã do dia 23 de junho, foi encontrada na Praia do Pina uma garota de cor parda, aparentando 8 anos. Estava com as mãos amarradas por trás do corpo e com um laço no pescoço. O laudo do IML relativo ao caso traz uma profusão de fotos da vítima, as primeiras a vir a público desde o trágico caso. São oito fotografias, todas nas revelações originais. As imagens dão rosto à Menina sem Nome e a mostram ainda amarrada, sobre a mesa da perícia. Os detalhes das marcas no pescoço e na face também são mostrados nas fotos. A expressão de desolação no rosto da menina denuncia o sofrimento provocado pelo agressor antes de sua morte.

O documento informa que às 14h do dia 23 de junho foi realizada a necropsia, na sede do Instituto de Medicina Legal. O laudo ajuda a elucidar parte do mistério que envolve a garota: ela não foi estuprada nem morreu por afogamento. A causa mortis, de acordo com o perito Nivaldo Ribeiro, que assina o laudo, foi asfixia por sufocação. “A asfixia foi produzida por meio misto, constricção incompleta do laço no pescoço e aspiração de grãos de areia”, diz o texto. Um indicativo de que ela foi amarrada e sufocada com a face na areia da praia.

De acordo com o laudo, a morte ocorreu entre 20h e 21h do dia anterior ao que ela foi encontrada. “A vítima não apresentava lesões de defesa”, prossegue o perito, o que demonstra que ela foi amarrada antes de ser morta. O documento descarta a tese de abuso sexual. De acordo com laudo, o hímen da garota estava intacto e não havia quaisquer lacerações no ânus.

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Fotos do IML do corpo encontrado amarrado, mas sem sinal de violência sexual

Há, inclusive, fotografias do exame sexológico realizado pelos peritos do IML. Foram encontradas três lesões superficiais na face e no tórax, feitas, de acordo com o perito, “para torturar ou atemorizar a vítima”. Havia, no estômago da garota, alimentos ainda não digeridos, como feijão e farinha de mandioca, indicando que ela teria se alimentado pouco tempo antes de ser atacada.

Por fim, o legista explica que “houve um lapso de tempo de sobrevida entre a constricção do pescoço pelo laço e a morte, possibilitando a remoção do corpo para o local onde foi encontrado”. O cadáver da Menina sem Nome foi encontrado pelo vendedor Arlindo José da Silva, conhecido como Galego, e por um empregado dele, o garoto Osvaldo Ulisses do Nascimento, de 11 anos. Arlindo foi o primeiro preso como suspeito do crime, pois a polícia encontrou em sua casa, dois dias depois, uma calça suja de sangue. Arlindo foi incriminado pelo depoimento de Osvaldo, que afirmou tê-lo visto com cordas no dia anterior ao crime, e que ele teria confessado que “procurava uma mulher para passar a noite”.

Arlindo foi solto menos de uma semana depois do crime, quando os policiais prenderam o mecânico Geraldo Magno de Oliveira, 22. Ele confessou o assassinato da garota. Em seu depoimento, Magno conta que sempre via a menina perambular sozinha pelo Pina, e que teria lhe oferecido a quantia de 5 cruzeiros para que ela passasse a noite com ele. O assassinato, segundo o mecânico, ocorreu porque ela o teria chamado de “vigarista” e “velhaco” por não ter entregue o dinheiro, como havia sido combinado. O mecânico se disse arrependido de ter cometido o crime e falou que preferia morrer a ficar conhecido como assassino de uma criança.

Ainda em 1970, durante a primeira audiência com o então juiz Nildo Nery dos Santos – que chegou à presidência do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) em 2000 – Magno negou a autoria do crime e deu depoimentos contraditórios, alegando inclusive ter sido vítima de coação e tortura por parte dos policiais. O desembargador aposentado Nildo Nery, que afirmou não ter dúvidas de ter sido Geraldo Magno o verdadeiro assassino na Menina sem Nome. “Lembro como se fosse hoje do dia em que ele confessou, com detalhes, o crime. Pela riqueza de informações, tudo remetia a ele”, completa. Nildo Nery informou que Geraldo Magno foi assassinado na prisão, na Ilha de Itamaracá, Região Metropolitana do Recife, antes de ser julgado.

Ou seja, vão ficar duas grandes lacunas no caso: uma é o fato de o réu confesso não ter chegado a receber a sentença da Justiça e, portanto, não ter cumprido a pena pelo assassinato. A outra: a identidade da menina, que continua sem nome.

 

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HISTÓRIAS DE VIOLÊNCIA

Os detalhes dessas e de muitas outras histórias estão vindo à tona devido a uma pesquisa conduzida pela historiadora Carolina Cahu, do Arquivo Público de Pernambuco. Há dois anos ela e uma equipe de cinco pessoas se debruçam sobre os arquivos do Instituto de Medicina Legal (IML) do Estado. O material estava largado desde 2004 em um galpão no pré-dio anexo do Arquivo Público, na Rua Imperial, no bairro de São José, Centro do Recife. São laudos das mortes ocorridas no Estado entre os anos de 1925 e 1979, além de exames sexológicos, toxicológicos e de lesão corporal. Caixas e mais caixas de papéis que relatam de que forma terminou a vida de milhares de pessoas ao longo dos anos. Os documentos estão sendo higienizados, catalogados e digitalizados para consulta pública no futuro. O trabalho é fruto de parceria do Arquivo Público com a Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe).

Os documentos também revelam dados sobre o perfil dos homicídios no Estado. Em toda a década de 1960 foram contabilizados 867 assassinatos. Em termos absolutos, esse número equivale a apenas quatro meses de mortes violentas no Pernambuco de hoje. Mas o perfil das vítimas nos anos de 1960, por exemplo, não é tão diferente do dos dias atuais: são majoritariamente homens, de cor parda ou preta, entre 18 e 40 anos, e a maioria por arma de fogo. Maioria das mortes se dava por um ou dois tiros, geralmente na região do abdome.

A pesquisa expõe facetas intrigantes dos costumes do povo pernambucano na primeira metade do século passado. Era grande, por exemplo, a quantidade de mulheres, principalmente jovens, que se matavam bebendo inseticida ou ateando fogo ao próprio corpo. O número de suicídios femininos tinha relação com desilusões amorosas atreladas ao papel, até então submisso, que a mulher desempenhava na sociedade.

“Muitas eram internadas no Hospital Ulysses Pernambucano após o fim dos relacionamentos e tentavam se matar”, conta Carolina. “Também é surpreendente a quantidade de afogamentos e atropelamentos por trens no Recife”, afirma a historiadora Carolina Cahu. Já nos anos de 1950 foram registrados laudos de pessoas mordidas por animais marinhos, mas nenhum que indique se tratar de ataque de tubarão.

Até 1966, o Instituto de Medicina Legal de Pernambuco não recebia todos os corpos do Estado, apenas os que as autoridades recomendavam para necropsias. Naquele ano, uma lei estadual tornou obrigatório o envio de todos os cadáveres ao IML. Foi quando os laudos começaram a ser feitos de forma mais consistente e sistemática. “É muito difícil dimensionar os casos até antes da lei. Havia muita subnotificação”, informa.

Na segunda metade dos anos de 1970, a curva de homicídios aumentou em Pernambuco. É quando chegou o tráfico de drogas, que, como toda atividade ilegal, traz um contingente armado para garantir seu funcionamento. O ano de 1977 fecha com 246 homicídios registrados pelo IML, algo alarmante para a época. A população do Estado era de cerca de sete milhões de pessoas, o que resulta em um índice de 3,5 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes. Quase 40 anos depois, a taxa é de 39 assassinatos para cada 100 mil pessoas.

“É nessa época que começam a aparecer com frequência os laudos de exames toxicológicos, mas ainda não é possível identificar com clareza a relação com o crime organizado”, explica a historiadora. Vale ressaltar que os anos de 1970 corresponderam ao período mais duro da repressão militar, onde eram comuns assassinatos que terminavam em “identidade desconhecida” da vítima. (JC)

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