O futuro da carne vermelha

Para produzir 100 gramas de proteínas de um bife pode ser necessário mais de 120 m² de terra em um ano

Para produzir 100 gramas de proteínas de um bife pode ser necessário mais de 120 m² de terra em um anoFoto: Anderson Stevens

Se não diminuirmos nosso consumo de carne vermelha, não será possível alimentar a população mundial de 2050, estimada em 10 bilhões. E esta não é a única condição. Ainda é preciso diminuir odesperdício e tornar as terras agrícolas mais eficientes. Também a escassez não será a única consequência, já que a produção de gado de corte lança Gases de Efeito Estufa em excesso e utiliza hectares de terra em demasia. Uma pesquisa lançada pelo Instituto Mundial de Recursos (WRI) no último mês detalha o panorama e seus pesquisadores mostram como é possível reverter o quadro.

De acordo com a vice-presidente do WRI, Janet Ranganathan, precisaríamos aumentar em 56% a produção de alimentosmundial. “Se não fecharmos essa conta, os pobres são os que mais sofrerão. Porque o preço da comida vai inflacionar muito”, previu. O problema é complexo principalmente porque essa expansão precisa acontecer sem aumentar a quantidade de terras reservadas à produção de comida. “Não podemos trocar as savanas e florestas que restaram por terras agrícolas. Perderíamos a pouca biodiversidade que há hoje e emitiríamos mais gás carbônico”.

Os Gases de Efeito Estufa (GEE) precisam ser reduzidos em dois terços para que a mudança climática seja menor que dois graus Celsius. “Todos sofreremos, mas os pobres serão especialmente atingidos”, conclui a especialista. Para produzir 100 gramas de proteínas de um bife de carne bovina pode ser necessário mais de 120 metros quadrados de terra em um ano. Os mesmos 100 gramas de proteínas obtidos de ovos ou aves de capoeira, não se precisa nem de 10 metros quadrados, de acordo com pesquisas do mestre em Economia da Terra pela Universidade de Cambridge Joseph Poore.

Fazendas de crustáceos também ocupam pouquíssimo espaço para produzir 100 gramas de proteínas, menos até que nozes e legumes. Contudo, são campeãs, junto com o gado de corte, em emissão de GEE. “O desafio é tão grande que precisamos de uma abordagem integrada entre consumidores, produtores e os responsáveis por criar políticas públicas. Individualmente, a escolha do que você come faz muita diferença. Em geral, quanto menos carne e laticínios você comer, menor a sua ‘pegada ecológica’, que é quanto de água e terra você precisa usar para viver. Comer mais feijão, legumes, tofu e nozes reduzem significativamente seu impacto”, analisou Poore.

De acordo com o professor de Nutrição da Universidade de Oxford, Pete Scarborough, a carne nem sempre é necessária. “Ela pode ser uma fonte útil de proteínas e nutrientes para uma pessoa que está desnutrida. Mas quando comparamos alimentação balanceada, vegetarianos têm melhor saúde cardiovascular que as pessoas que comem carne, o que sugere que não precisamos de carne para sermos saudáveis”, argumentou. Mesmo assim, nem ele nem qualquer outro especialista sugere que a carne seja excluída do cardápio. Apenas que seja menos consumida

Alimentos alternativos podem suprir carências

Além de diminuir a pegada ecológica, quem decide reduzir a quantidade de carne bovina terá uma saúde melhor, caso seja orientado por um nutricionista. É possível ingerir os nutrientes essenciais existentes em um bife por meio de outros alimentos. A mudança de hábito reduz o colesterol, a incidência de doenças cardiovasculares e de câncer, melhora a absorção de vitaminas e minerais pelo organismo. Por fim, ainda melhora a imunidade. As vantagens são enumeradas pela coordenadora do núcleo de pós-graduação em Nutrição do Instituto de Desenvolvimento Educacional (IDE), Joyce Moraes.

“Nós comemos carne bovina porque gostamos, não porque é imprescindível. O brasileiro gosta muito de uma porção generosa de um bife, de usar muito sal. Mas os aminoácidos essenciais (os que o organismo humano não sintetiza sozinho) da carne bovina estão também no frango, no peixe, no ovo. Nutricionalmente, tanto faz comer qualquer um deles.” Quem desejar ir além e eliminar todos os alimentos de origem animal, por exemplo, terá ainda mais saúde. Mas precisa ser orientado por um nutricionista para não deixar nenhuma substância essencial de fora da dieta.

“Apenas a vitamina B12 é encontrada exclusivamente em alimentos animais. Por isso os veganos devem fazer uma suplementação dela”, explica Moraes. Em relação à proteína, a informação de que milho, ervilha e banana podem substituir todos os aminoácidos essenciais de um bife pode causar estranhamento. “Nosso corpo não tem necessidade de saber a origem do aminoácido e nem precisa que seja ingerido de uma vez. Tem apenas que recebê-lo durante o tempo de um dia. A pessoa pode comer milho no café, ervilha no almoço e lanchar banana. Só a quantidade é que deve ser calculada pelo profissional de nutrição. Independentemente da pesquisa da WRI, o gastroenterologista da UFPE Gustavo Lima já come carne vermelha apenas nos fins de semana. É normal ter à mesa frango e peixe, principalmente.

“O Instituto Nacional do Câncer sugere 300 gramas de carne vermelha por semana como ideal. Entidades americanas já falam em 45 g. A incidência em câncer de intestino é maior em locais com maior consumo de carne. No Rio Grande do Sul, maior consumidor, é de 20 casos por 100 mil habitantes. Em Pernambuco, 10. No Pará, onde se come mais peixe, é de 5”, mostrou. Na casa de Gustavo, estão tentando instituir o “dia sem carne”, mas ainda sem sucesso. “Minha esposa gosta muito de carne.” A tática de ser vegetariano por um dia na semana foi utilizada pelo estudante de contabilidade Matheus Felipe, 20, quando tentava se tornar vegano, uma guinada mais radical que a do médico.

“Foi gradual e muito tranquilo. Primeiro eu ficava um dia sem comer carne. Depois dois, três e, quando cheguei a ficar quatro dias, percebi que podia ficar sempre sem carne. Estou há um anos sem comer nada de origem animal”, contou. Acompanhado por nutricionista, percebeu queda na vitamina B12, mas ainda não tanto que precise de suplementação. “Algo que mudou com a nova dieta foi a minha disposição. Antes eu não tinha, agora faço musculação e até meu humor melhorou.”

Autor prevê mudança na ordem social

Épocas de grandes fomes têm sido uma constante na história da humanidade. Muitas delas registradas no livro “O que aconteceu na Terra”, de Christopher Lloyd, lançado em 2008. Na Irlanda do século 19, por exemplo, após três sucessivas perdas de colheitas de batata – a maior fonte de alimento do país – , cerca de um milhão de pessoas morreram. O cenário descrito é desolador: “Bando de mulheres e crianças pequenas eram vistos entre os campos de nabos, mães seminuas, na neve e granizo, emitindo exclamações de desespero, enquanto seus filhos gritavam de fome”.

Em entrevista à Folha, Lloyd cria uma imagem mental da fome que se estabelecerá no mundo em 30 anos, caso o panorama atual de produção e consumo não seja modificado. “A maioria dos humanos não se comporta racionalmente. A combinação de mudança climática e aumento população criará fome, enquanto o nível do mar aumenta e habitats se extinguem. Em vez de prover uma solução, a ciência vai exacerbar o problema ao crescer a desigualdade entre os que podem se beneficiar dela e os que não podem”, prevê. “Desculpe se soa um pouco sombrio – mas acredito que acontecerá uma revolução global. Nossa espécie sobriverá, mas com uma organização social diferente.”

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