O lugar em que foram desvendados os segredos da anatomia humana

Pádua, na ItáliaDurante o século 16, Pádua, na Itália, estava na vanguarda de uma revolução científica

Pádua tem uma rica herança artística, religiosa e literária. É mais conhecida como cenário de A Megera Domada, de Shakespeare, e onde o artista italiano Giotto – o “Pai da Renascença” – pintou os famosos afrescos da Capela Scrovegni, com cenas bíblicas repletas de emoções humanas. O que é mais notável sobre esta cidade do norte da Itália, porém, é que ela é o berço da medicina moderna.

A medicina já vinha sendo estudada em Pádua – uma comunidade livre – havia séculos. A tradição foi mantida quando a Universidade de Pádua foi fundada em 1222. Renomado centro das ciências, a instituição gozava de uma autonomia sem precedentes e tolerância religiosa, mesmo depois de ter ficado sob o domínio da dinastia Carrara ao longo do século 14.

Quando Pádua foi conquistada pela República de Veneza em 1405, os venezianos mantiveram a universidade como principal centro educacional da República e a administraram sob o lema de Libertas docendi et investandi (Liberdade de ensino e pesquisa).

“A República entendeu que a universidade era uma oportunidade fundamental para promover uma cultura que celebrava o governo de Veneza”, explicou Fabio Zampieri, professor associado de história da medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Pádua. “Os melhores professores foram chamados de toda a Europa, atraídos pela garantia de liberdade de pesquisa. A fama dos melhores professores também atraiu os melhores estudantes locais e internacionais”.

Como resultado, a Universidade de Pádua se tornou o centro do que Zampieri descreve como “o Renascimento Científico”, parte do período mais extenso da Renascimento.

Universidade de PáduaFundada em 1222, a Universidade de Pádua foi o principal centro educacional da República de Veneza

Esta foi uma época de grandes mudanças. Enquanto a Idade Média dependia da teologia e do conhecimento adquirido pela leitura de livros teóricos, o período do Renascimento focou no método científico que se baseava em testes práticos e experimentação.

Zampieri continuou: “Durante o Renascimento, Galileu ensinou matemática aqui e divulgou seu novo método quantitativo, que também influenciou profundamente a medicina. William Harvey – o primeiro a descrever a totalidade do sistema circulatório do sangue humano – foi estudante de medicina em Pádua. Santorio Santorio – professor da universidade – inventou o termômetro. Giovanni Battista Morgagni – professor de anatomia daqui – fundou a moderna anatomia patológica no século 18. O primeiro transplante de coração humano na Itália foi realizado em Pádua em 1985.”

Palazzo Bo

Uma caminhada de 15 minutos me levou da estação de trem de Pádua até o Palazzo Bo, no coração da cidade. A sede histórica da Universidade de Pádua, o Palazzo Bo é o lugar onde a medicina finalmente recebeu a abordagem sistemática de que precisava para se transformar em uma ciência moderna. No passeio, pude sentir o eco de palestras vibrantes e descobertas científicas e médicas inovadoras que ocorreram aqui.

Ao entrar no monumental pátio decorado com os coloridos brasões heráldicos de antigos alunos, parei por um momento. É onde, no século 16, Andreas Vesalius realizou sistemáticas dissecações de cadáveres em um teatro anatômico temporário perante uma multidão de 500 pessoas ou mais.

Universidade de PáduaMuitos cientistas famosos passaram pela Universidade de Pádua, incluindo Galileo Galilei

Nascido em Bruxelas, Vesalius chegou a Pádua em setembro de 1537, onde concluiu o doutorado em medicina em dezembro do mesmo ano. Ele se tornou imediatamente presidente do Departamento de Anatomia e Cirurgia da universidade – cargo que ocupou até o início da década de 1540.

Durante seu tempo na Itália, Vesalius escreveu sua obra revolucionária De Humani Corporis Fabrica Libri Septem (Sobre o tecido do corpo humano em sete livros, em tradução livre), publicada em 1543. Os sete livros explicaram o funcionamento de nossos corpos em detalhes sem precedentes, com ajuda de ilustrações meticulosas executadas pelo estúdio do artista Tiziano Vecelli, em Veneza, sob a orientação próxima do próprio Vesalius.

Primórdios da medicina

Os médicos gregos Herophilus e Erasistratus realizaram dissecações sistemáticas de corpos humanos na primeira metade do século 3 a.C. na Escola de Medicina Grega em Alexandria, no Egito. No entanto, os escritos sobre suas descobertas foram perdidos no grande incêndio que devastou a biblioteca de Alexandria – o maior centro científico e cultural do mundo antigo.

A dissecação humana caiu em desgraça na Grécia e em Roma, tornando-se um tabu cultural tão grande no século 2 d.C. que Galeno, o mais famoso médico do Império Romano, não teve outra escolha senão dissecar animais em sua volta para entender o corpo humano. Isso levou a vários erros em seus achados e, como não havia uma maneira aceitável de refutá-los, as suposições de Galeno persistiram como conhecimento médico por mais de 1.400 anos.

pátio do Palazzo BoAndreas Vesalius realizou dissecações de corpos humanos no pátio do Palazzo Bo

Só no final da Idade Média é que isso começou a mudar. Por volta de 1300, as dissecações humanas foram introduzidas como um valioso exercício de ensino para estudantes de medicina. No entanto, as dissecações não eram uma ocorrência comum, e os anatomistas apenas orientavam os procedimentos lendo textos de Galeno, deixando a dissecação real para um cirurgião. Não foi até Vesalius que as pessoas realmente começaram a questionar o conhecimento existente do corpo humano.

Dissecação

“Vesalius revolucionou o ensino da anatomia executando a dissecação. Vesalius comentou sobre o cadáver à sua frente, colocando assim pela primeira vez o corpo humano como o livro da natureza no centro da pesquisa anatômica”, explicou Zampieri. “Ele também revolucionou o conteúdo da anatomia, demonstrando que Galeno nunca dissecava corpos humanos e que os animais que ele dissecava apresentavam muitas diferenças anatômicas do homem”.

No Tecido do Corpo Humano em Sete Livros causou bastante agitação no mundo da medicina do século 16, e foi duramente contestado pelos mais ilustres professores médicos e praticantes galenistas da Europa Ocidental. Vesalius se sentiu excluído e abandonou sua carreira acadêmica. Mas sua partida não impediu o avanço da ciência médica na Universidade de Pádua. Anatomistas e médicos como Gabriele Fallopio (que primeiro descreveu as trompas de Falópio) e Bartolomeo Eustachi (que foi o primeiro a estudar com precisão a anatomia dos dentes) passaram o bastão do conhecimento adiante. Hoje em dia, retratos desses luminares da medicina moderna adornam o Salão da Medicina, no Palazzo Bo.

Fabio ZampieriFabio Zampieri: ‘Vesalius revolucionou o ensino da anatomia

Pouco mais de 50 anos após Vesalius realizar dissecações em um teatro anatômico temporário no pátio da universidade, a primeira estrutura permanente do mundo projetada para dissecações anatômicas públicas foi erguida dentro do Palazzo Bo entre 1594 e 1595, ao lado do Salão da Medicina.

O guia conduziu nosso grupo à “cozinha” – uma sala com paredes de cor escura, onde os cadáveres seriam preparados para as dissecações. Nós atravessamos a porta do teatro anatômico, e paramos no ponto em que era colocada a mesa de dissecação.

Na penumbra, eu podia imaginar as seis fileiras estreitas nas quais até 250 estudantes de medicina e outros espectadores se reuniam. Não havia assentos, nem espaço para fazer anotações e, inicialmente, nem janelas. Em forma de funil e lindamente esculpidas em madeira, as fileiras concêntricas, que se expandiam gradualmente, tinham balaustradas altas para garantir que os espectadores, se desmaiassem, não caíssem e atrapalhassem a dissecação. Alunos, professores, aristocratas, dignitários visitantes e até senhoras nobres compareceriam às dissecações à luz de velas. Uma orquestra de violino tocava na última fileira para tornar a atmosfera menos nauseante.

Tabus

Cada corpo seria dissecado durante vários dias no inverno (no hemisfério norte), tradicionalmente durante a temporada de carnaval – um período licencioso em que a moral e os bons costumes eram relaxados, e as dissecações poderiam ser realizadas apesar dos tabus ainda existentes ao seu redor.

Várias emoções afloraram no grupo enquanto ouvíamos o guia descrever o que acontecia onde estávamos. Os mais sensíveis apertavam os olhos e pareciam um pouco desmotivados. Um cirurgião que viajou do Canadá especialmente para ver este santuário da medicina não se cansava de ouvir as histórias sobre o primeiro teatro anatômico permanente do mundo.

teatro anatômicoO primeiro teatro anatômico permanente do mundo foi construído no Palazzo Bo no final do século 16

Depois de visitar o Palazzo Bo, aventurei-me na cidade, onde vários outros locais destacam a influência de Pádua na medicina moderna. Dirigi-me para o Museu de História da Medicina, que conta com centenas de artefatos e dezenas de exibições interativas para narrar a complexa história de como chegamos a entender e tratar o corpo humano. De lá, cruzei os pórticos de Pádua, passei pela Basílica de Santo Antônio até chegar ao jardim botânico da universidade.

Fundado em 1545 e agora Patrimônio Mundial da Unesco, o jardim botânico foi vital para os estudos de botânica dos estudantes de medicina – particularmente pelo poder terapêutico das plantas. Muitas novas espécies botânicas foram introduzidas na Itália através deste belo lugar, incluindo girassóis, batatas e gergelim, além de jasmim e lilás.

Segundo Zampieri, os europeus devem agradecer a esse jardim botânico pelo café. “É fato que a primeira menção na Europa do café foi no trabalho [do século 16] De Medicina Aegyptiorum, de Prospero Alpini, que era o diretor do jardim”.

jardim botânico da Universidade de PáduaO jardim botânico da Universidade de Pádua foi fundado em 1545 para ajudar os cientistas a estudar o poder de cura das plantas

Ao sair do jardim botânico, pensei no que Herbert Butterfield, professor de história e vice-chanceler da Universidade de Cambridge, escreveu em seu livro The Origins of Modern Science 1300-1800 (As Origens da Ciência Moderna 1300-1800, em tradução livre), publicado em 1959: “Visto que qualquer lugar poderia reivindicar a honra de ser a sede da Revolução Científica, a distinção deve pertencer a Pádua”.

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