O pornô lésbico faz história na salas comerciais de cinemas do Brasil

Longa argentino ‘As Filhas do Fogo’ torna-se o primeiro do gênero a ser exibido em mais de 20 salas comerciais no Brasil, retratando o prazer de mulheres fora do padrão da indústria

Cena do filme ‘As Filhas do Fogo’.
Cena do filme ‘As Filhas do Fogo’.

No altar de uma igreja no meio do campo, três corpos misturam-se em uma coreografia lenta, mas potente, que, às vezes, remete a um parto. Os jogos de luzes e sombras acentuam as curvas de coxas, barrigas e seios. A composição, registrada em plano aberto, lembra um quadro de Caravaggio. Não fosse por um detalhe: as mulheres sobre o altar praticam sexo explícito —beijam-se e se comem com mãos e línguas—, enquanto uma terceira observa a cena e masturba-se parada na porta do recinto.

De cenas como esta, explícitas, está composto o filme As Filhas do Fogo, da argentina Albertina Carri, que estreou nas salas comerciais dos cinemas brasileiros em meados do mês de março e fica em cartaz até a primeira semana de abril. O longa, um road movie que conta a história de três mulheres que começam uma jornada poliamorosa em busca de prazer, diversão e novas formas de relacionamento, circulou em diversos festivais internacionais (como o de Roterdã, San Sebastián e do Rio) e foi aclamado no Bafici (Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires), mas quase não chegou aos circuitos comerciais. Na Vitrine Filmes, que encarou a missão de trazê-lo ao Brasil, contam que algumas pessoas riam do propósito de distribuí-lo aqui e que seria “risível” se o filme estreasse em sequer uma sala comercial. Mas o sucesso de público foi tamanho que o “surubão de Ushuaia” —segundo uma crítica— chegou a mais de 20 salas do país.

Além das experimentações na sexualidade entre mulheres e da descoberta da sororidade, um dos temas centrais da produção é metalinguístico: o que faz um filme ser pornô? Violeta, uma das protagonistas, embarca nesse questionamento em busca de seu próximo projeto cinematográfico. “O problema nunca é a representação dos corpos. O problema é que como esses corpos se convertem em território e paisagem em frente à câmera”, responde a própria personagem.

A idealizadora e diretora Albertina Carri, de 44 anos, define sua obra como um “pornô lésbico feminista” ou, como prefere, “um gozo libertador”. Em entrevista ao EL PAÍS, ela conta que aproximou-se da pornografia desde que começou a fazer cinema, há mais de duas décadas, mas que essas produções nunca a convenciam por completo. “A pornografia convencional sempre visou a domesticação das mulheres, assim como as novela e a publicidade, que são como sucursais da pornografia. E o cinema pornográfico não apresenta grandes variações, é quase sempre mais do mesmo: corpos coisificados em busca de uma forma única de prazer: patriarcal, capitalista, genital, e, por fim, destrutivo, porque a qualidade do sujeito e da experiência transcendental se perde”, diz ela.

Foi de todos esses clichês que Carri quis fugir quando começou a imaginar, há 20 anos, As Filhas do Fogo. Em 2001, ela gravou o seu primeiro curta pornô, Barbie También Puede Estar Triste, rodado apenas com bonecas, e, pouco depois, fez outra produção com arquivos clandestinos de quando a pornografia estava proibida, durante os anos 1970, na ditadura argentina. Ficou a vontade de gravar com gente. “Queria trabalhar com pessoas que entendessem que esse filme é uma reivindicação da pornografia em termos de desejo e prazer, mas uma destruição total do gozo de corpos que são pensados como propriedade privada. O objetivo é visibilizar o desfrute de corpos que geralmente são condenados ao drama na narrativa cinematográfica, e poder contar outras formas de afeto, além das monogâmicas convencionais e heterossexuais”, explica.

Nessa busca, encontrou Disturbia Rocío, Mijal Katzowicz, Violeta Valiente, Rana Rzonscinsky, Canela M., Ivanna Colonna Olsen, Mar Morales, Carla Morales Ríos, Cristina Banegas e Érica Rivas. Para Carri, o elenco já é o filme em si: todas elas são feministas, algumas atrizes, outras, não, mas que não intimidaram-se à hora de usar vibradores, praticar sexo oral e compartilhar seus orgasmos com os espectadores. Longe dos estereótipos de loiras gostosas do cinema pornográfico, As Filhas do Fogo são mulheres gordas, baixas, altas, magras, com muito ou pouco peito, que têm pênis.

Cena de 'As Filhas do Fogo'.
Cena de ‘As Filhas do Fogo’.

A celebração desses corpos femininos, que desejam, amam e gozam é uma das essências do longa. Carri, que criou o primeiro festival internacional de cinema LGBT em Buenos Aires, em 2013 (chamado Asterisco), conta que, de todas as produções que chegam até ela, as que têm uma narrativa de homens gays tendem a ser mais positivas e alegres, enquanto as histórias lésbicas estão relegadas aos grandes dramas existenciais e, não poucas vezes, com finais infelizes. Ela é categórica: “Quis fugir desse discurso dramático. A gente não só vive e luta, também comemoramos, celebramos. E sem celebração, não há revolução”.

Consciente do “momento de crescimento de discursos de ódio tanto na Argentina quanto no Brasil”, a diretora comemora a boa acolhida que sua obra teve nas plateias do país vizinho. “É importante que as dissidências possamos encontrar-nos nas telonas, no cinema”. Para ela, afinal, a resistência, tanto ética quanto estética, é uma coisa só.

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