‘O samba nasceu aqui, mas a Bahia não cuida bem dele’, diz Edil Pacheco

Em entrevista ao bahia.ba, compositor baiano, que completa 50 anos de carreira, reafirma a necessidade da luta pela defesa do samba na Bahia

André Carvalho
Foto: Antonio Brasiliano
Foto: Antonio Brasiliano

 

Sua obra revela a leveza de um povo sofrido, de rara beleza, que vive cantando. De profunda grandeza é sua música: procurando alegria em praças, largos, quintais e botequins. Da Bahia para todo o Brasil.

Completando 50 anos de carreira neste ano de 2019, o baiano Edil Pacheco tem sua trajetória artística marcada pela defesa intransigente do samba no meio fonográfico e é considerado um dos grandes responsáveis pela fixação do ijexá como gênero musical brasileiro.

Suas criações, eternizadas em gravações de intérpretes como Clara Nunes, Jair Rodrigues, João Nogueira, Gilberto Gil, Gal Costa, Agepê e Alcione, entre tantos outros, refletem a alma musical de um Brasil profundo.

Composições pontilhadas de brasilidade, forjada ainda na infância em Maragogipe, quando, ao romper da noite, esperava a mãe apagar o candeeiro para pular a janela e ir “bahiar” com o samba de roda do Recôncavo.

Lá se vão cinco décadas desde que Eliane Pittmann gravou “Fim de tarde”, parceria com Luiz Galvão, dando início a uma caminhada de sucesso, que o colocou como um dos sambistas mais gravados do País – estima-se que o maragogipano tenha mais de 250 composições registradas (“eu acho que é até mais”, acredita ele).

Edil Pacheco conversou com a reportagem do bahia.ba em duas ocasiões para a realização desta entrevista. A primeira delas, na Pituba, bairro onde mora, em um longo bate-papo regado à cerveja, e a segunda no restaurante Viola Vadia, na Boca do Rio, depois uma suculenta rabada.

Ele falou, entre outras coisas, sobre sua infância em Maragogipe, a chegada a Salvador, o início da carreira artística, a amizade com Ederaldo Gentil e João Nogueira e o Dia do Samba na capital baiana. Aos 74 anos, segue defendendo com unhas e dentes o samba, que, para ele, precisa ser mais bem cuidado na Bahia. “É uma luta, rapaz”.

Com a palavra, Edil Pacheco:

bahia.ba — O que você ouvia na sua infância? O que tocava na sua casa quando você era criança lá em Maragogipe? Quais são as primeiras referências que você tem de música?

Edil Pacheco — As primeiras referências que eu tenho é de quando eu morava em uma avenida lá em Maragogipe e nos finais de semana tinha muito samba de roda. Aqueles sambas que praticamente não tinham instrumentos de harmonia. Era só palma batida na mão, prato e faca, atabaque e muita voz. E eu esperava minha mãe dormir, pulava a janela da minha casa e ficava lá escutando. 

.ba — Era de dia ou de noite que aconteciam esses sambas?

EP — De noite. Nessa época não tinha luz em casa. Poucos lugares tinham luz. Ainda era na base do candeeiro. Eu me lembro que eu começava a ler gibi e aí minha mãe, em determinado horário, dizia: “Tem que apagar o candeeiro para não gastar o gás”.

Logo depois, quando começou a ter luz lá em casa, a gente não tinha rádio, mas o tio Antônio tinha. Tio Antônio era um curandeiro lá de Maragogipe, que fazia uns curativos, fazia cirurgia, tomava conta. E a única casa que tinha rádio era a dele. E eu me lembro que todo sábado, no final de tarde, eu ia para lá. Eu ia para lá ouvir a Rádio Nacional. Ouvia Luiz Vieira, Luiz Gonzaga, Orlando Silva, Marinês, Vicente Celestino…

.ba — Criança ainda?

EP — Criança.

.ba — Isso era o quê? Anos 40?

EP — Eu nasci em 45, então era nos anos 50. Foi aí que eu comecei. Quando eu vim para Salvador, eu fui morar com minha irmã, Joselita, na Liberdade. Morava na Liberdade, na rua do Céu. E ela e o marido dela gostavam muito de Roberto Silva, tinham aquela coleção “Descendo o Morro”. Eu ouvia muito aquilo. Era fã do Roberto Silva. Gostava dos sambas de Cartola, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, escutava muito Custódio Mesquita. A minha formação foi essa aí.

Me lembro uma vez, quando eu ainda morava em Maragogipe, que um candidato a deputado chamado João Doria [pai do atual governador de São Paulo] foi lá para fazer um comício. E Luiz Vieira era o mestre de cerimônias. O cara fazia o discurso no coreto da praça e a cidade toda assistia, mas para ver, na verdade, Luiz Vieira. E ele cantava “Menino de Braçanã”, “Estrela Miúda”, aqueles sucessos todos. E logo que ele desceu do coreto eu me aproximei dele.

Muitos anos depois, ele veio fazer um programa aqui em Salvador chamado “Eu show Luiz Vieira”. Era na televisão em Itapuã. E ele me encarregou de tomar conta dos artistas locais. Ele trazia estrelas da música brasileira e eu colocava um baiano para fazer o encontro. Foi aí que eu comecei a compor, que eu comecei fazer música.

Nesta época, eu morava em um pensionato. E nesse pensionato morava um jornalista chamado Fernando Vita. Foi Vita quem me incentivou a começar a compor. Aí, eu comecei a fazer umas músicas, sem nenhuma intenção. Foi ele quem me apresentou Eliane Pittmann, que foi quem gravou minha primeira música. Mas eu já conhecia a turma toda dos baianos, Moraes Moreira, Luiz Galvão. Inclusive, minha primeira música foi com Galvão, “Fim de Tarde”. Tínhamos um grupo chamado Função.

.ba — E você se lembra de ter escutado Batatinha e Riachão na rádio Sociedade?

EP — Batatinha tinha um programa chamado “Vamos acordar”, que era produzido por J. Luna. Começava às seis da manhã. Me lembro dele cantando “Jajá da Gamboa”. Foi a primeira vez que eu ouvi falar de Batatinha. Riachão era sucesso na rádio. Eu cheguei a ver programa de auditório na Rádio Sociedade ali na rua Carlos Gomes com o Riachão. Já era sucesso. Foi escutando a Rádio Sociedade que comecei a ouvir falar de Batatinha, Riachão e Panela.

.ba — Como foi sua vinda a Salvador?

EP — Eu vim para Salvador pela primeira vez para servir o Exército, mas o meu irmão conseguiu me encaixar no “excesso de contingente” e eu acabei voltando para Maragogipe. Depois, meu irmão arrumou um trabalho para mim numa pastelaria lá no Pau Miúdo. O dono era um português, porco pra caramba, e eu só fiquei lá uma semana. E voltei, de novo, para Maragogipe.

Aí voltei para Salvador mais uma vez para trabalhar em outra pastelaria, no Largo 2 de Julho. Isso era por volta de 1963, antes do Golpe, ainda. No Golpe, eu já estava trabalhando com o meu tio em uma empresa de transportes. E, paralelamente, eu fui fazendo música.

.ba — Como conheceu Batatinha, mestre?

EP — Batatinha eu conheci quando ainda trabalhava ainda na pastelaria. Foi em um evento que teve no Pelourinho. Ele estava com uma cantora paulista chamada Tuca, uma menina que cantava muito bem, cantava bonito. E ele me convidou para acompanhá-lo em um show chamado “Eu sou, tu és, ele é: gente”.  Aí, durante o período de ensaio, tinha uma deixa de um texto, que Vieira Neto, que era o produtor,  disse: “Preciso botar uma música aqui para essa deixa”. E o Batatinha me pediu para fazer: “Faça, vou dizer que é minha”. Aí mostrei para Batatinha e ele adorou a música. Daí ele mostrou a música para Vieira Neto: “O que você acha?”. E ele adorou. Então, Batatinha disse: “A música não é minha, é dele”. Chamava “Experiência própria”. Depois fiz outra, chamada “Protetor do samba”. E fui fazendo mais música.

Aí nasceu uma amizade boa. Batatinha também me levou para o teatro Vila Velha, onde existia naquela época um programa chamado “Improviso”. Toda sexta-feira, a partir de meia-noite. Iam todos os artistas aqui da área, os consagrados: Tom Zé, Antônio Carlos Jocafi, Walter Queiroz, Walmir Lima, Batatinha, Maria Creuza. Era o pessoal que fazia música naquela época. Então foi aí, levado por Batatinha, que comecei a me interessar pela coisa.

.ba — E seu contato com Escolas de Samba aqui em Salvador? Como foi? Com Ederaldo Gentil?

EP — Eu morava no Largo Dois de Julho. Tinha um apartamento lá e emprestava sempre a Ederaldo. Então, nós tínhamos uma ligação muito forte. Nós almoçávamos juntos, ele era relojoeiro.

.ba — Vocês eram muito amigos, né?

EP — A gente tinha uma ligação, tinha um negócio. A ponto da gente ir para o Rio de Janeiro, eu bancando tudo. Peguei o carro, chamei ele, ele não botou nada, só para ir em minha companhia, mesmo. Então, a gente combinava assim, por exemplo: vamos comer moqueca de arraia na casa de fulano hoje. Aí, eu passava lá, pegava ele. Então, era assim. Ele tomava a chave do meu apartamento emprestado para levar as namoradas pra lá. Uma amizade grande mesmo, era meu irmão.

Ederaldo Gentil Edil Pacheco
Edil Pacheco e Ederaldo Gentil: parceria de samba e de vida –  Foto: Acervo pessoal

 

.ba — Ele era muito ligado com o lance de Escola de Samba.

EP — Aí, ele já era enturmado. Já estava fazendo as coisas no Filhos do Tororó. E eu estava chegando. E ele me perguntou:”Vamos fazer um samba?”. Teve um ano que ele fez oito sambas.

.ba — Porque ele tinha brigado com o Tororó.

EP — É. Teve um ano que ele fez para todas as concorrentes do Tororó. E três foram feitos comigo.

.ba — Foi sua estreia aí?

EP — Foi minha estreia.

.ba — As Escolas para as quais vocês fizeram os sambas você lembra?

EP — Filhos da Liberdade, Unidos do Canela e Juventude do Garcia. No Garcia, foi o “Samba, Canto Livre de um Povo”, que ele gravou. Lá, nós ganhamos. Nas outras não teve concurso. Acontece que a Juventude do Garcia já era uma escola poderosa, junto com a Diplomatas de Amaralina, e tinha que ter concurso. Só que nós ganhamos o concurso e teve o maior problema porque eu não era da escola. E ainda era branquelo. Inclusive teve um buxixo na imprensa. Aí eu disse que nunca mais eu ia fazer o samba enredo.

.ba — E os sambas do Canela e da Liberdade você não lembra?

EP — Não lembro. O da Canela, eu me lembro que o tema era “Branca de Neve e os Sete Anões”.

.ba — Aí, nunca mais se meteu com Escola de Samba depois disso.

EP — Nunca mais quis. Por isso mesmo.

.ba — “Alô madrugada”, parceria sua com Ederaldo, foi um grande sucesso, não?

EP — Foi. Essa história é boa. Uma vez, Tião Motorista me ligou. “Russo…”. Ele me chamava de Russo. “Russo, o Jair Rodrigues vem aí para fazer um show e eu quero mostrar umas músicas para ele. Você me dá uma força, me acompanha?”. “Pois não”. Ai ele passou lá no pensionato, me pegou, ficamos esperando Jair sair do programa de televisão que ele estava gravando e fomos para o Hotel Costa Azul. Paramos na porta do hotel e ficamos cantando alguns sambas. Dali a pouco, Jair me pergunta: “Você não faz nada, não?”. “Faço”. “Canta o seu aí”. Aí eu cantei uma. Ele: “Cante outra”. Eu cantei. E ele disse: “Vou gravar essa”.

.ba — “Alô Madrugada”?

EP — Não. “Ana”. Uma música minha e de Cid Teixeira. “Ana dos olhos bonitos/ quem fez bonito os olhos seus/ Ana dos olhos bonitos/ Queria os seus olhos nos olhos meus”. Naquela linha meio Chico Buarque. Aí, Jair disse: “Vou gravar essa”. Um mês depois, eu peguei o carro e  fui para o Rio. E chamei Ederaldo Gentil. Eu tinha um Fusca 65. “Gentil, eu vou para o Rio de Janeiro, o Jair Rodrigues vai gravar minha música, não quer ir comigo não?”. “Vambora”.

.ba — E foram de Salvador para o Rio de Fusca.

EP — De Fusca. Chegamos lá, fizemos contato com Jair. Ele disse: “Vou gravar aquela sua música”. Essa música não era com Ederaldo, não. E eu tinha mostrado “Alô Madrugada”, mas ele não prestou atenção. Aí chegamos lá no apartamento dele, no Leme. Estava toda a cúpula da Polygram lá. E ficamos conversando. “Canta aí a música que vou gravar”, ele disse. “Canta outra aí”. Aí eu cantei “Alô madrugada”. E ele: “Vou mudar, quero gravar essa”.

Aí, os caras da Polygram perguntaram pra gente: “Quanto é que vocês querem?”. O Jair, naquela época, estava estourado com “Irmãos coragem”, estava estourado o disco, tudo estourado. Aí eu cheguei para o editor, que era meu amigo, Zé Loureiro, e disse: “Não, pode deixar, eu só quero tirar umas fotos aqui para levar para a Bahia dizendo que a gente está assinando o contrato”. O cara botou quatro fotógrafos. Eu assinando o contrato de uma música. Um aqui, um aqui, um aqui e um aqui. Mandou as fotos. Dinheiro eu não quis.

.ba — Foi o primeiro sucesso de Ederaldo também?

EP — Foi o primeiro sucesso de Ederaldo. E teve um detalhe que quando saiu o disco, eu fiquei chateado. Porque veio Edmílson de Jesus Pacheco e Ederaldo Gentil Pereira. Não veio o nome artístico da gente.

.ba — Em 1963, você participou do grupo Função. Como foi isso?

EP — Esse grupo foi ideia de um jornalista chamado Cid Seixas Fraga. Quem eram os personagens? Batatinha, eu, Tião Motorista, Galvão, Moraes Moreira, Teresa, Celeste e um grupo chamado Ecléticos, que tinha a mesma formação dos Beatles. Eu era considerado bossanovista, Batatinha fazia aquele samba com pitada de blues. E depois chegou Ederaldo Gentil. Quem pediu para Ederaldo Gentil se incorporar ao grupo Função foi o jornalista Anísio Félix. Então, Ederaldo Gentil começou a fazer parte do grupo. Então, o começo foi esse aí. Sem nenhuma pretensão mesmo de fazer música para ganhar dinheiro.

.ba — E aí, pouco depois teve esse contato Eliane Pittmann né?

EP — Eliane Pittmann foi o seguinte. Eu morava no pensionato com meu amigo jornalista Fernando Vita. E ele ficava me dizendo: “Rapaz, tem uma cantora aí que é muito boa”. E, na época, estava sendo realizado aqui na Bahia as filmagens de “Capitães de Areia”, uma produção francesa. E Eliane Pittmann fazia parte do elenco.

Ela estava para gravar um disco, estava bem na mídia, e anunciou que ia gravar um disco novo, que queria gravar sambas de compositores baianos. Aí Vita falou: “Vamos lá mostrar para mulher, que as suas músicas são boas”. Eu relutei um pouco, mas ele acabou me convencendo. Aí fomos lá e cantei duas músicas para ela. Ela gravou as duas, mas só saiu uma. Porque a outra a censura pegou.

.ba — “Fim de tarde” e “Passatempo”?

EP — Isso.

.ba — E “Passatempo” a censura cortou…

EP — A censura cortou. E o disco saiu com 11 músicas.

.ba — E não foi regravada depois?

EP — Não. Não foi regravada depois, não. A música é minha, de Batatinha e de Cid. Mas saiu só “Fim de tarde”, que fiz com Galvão. Aí foi meu batismo.

Foto: Divulgaçãp
Edil Pacheco com os baluartes do samba baiano Ederaldo Gentil e Batatinha – Foto: Acervo pessoal

 

.ba — Em 1972, você musicou uma peça de teatro.

EP — Quincas Berro D’água. De Jorge Amado. A primeira encenação foi no teatro Vila Velha. Alta produção. Com direção de João Augusto, que é meu parceiro na música “Ensinança”. E também é parceiro de Gil em “Roda”. João Augusto era diretor do teatro. A primeira encenação de Quincas Berro D’Água foi ele quem dirigiu.

.ba — Você musicou a peça toda?

EP — Eu fiz uma música das cinco que entraram na peça. Fizeram as músicas eu, Dorival Caymmi, Gereba, Fernando Lona. Nós quatro. Aí Nara Leão gravou uma, MPB-4 outra…

.ba — Você gravou também?

EP — Eu gravei, foi a primeira vez que eu gravei cantando.

.ba — E depois, em 1975, você fez um show com Batatinha e Ederaldo, “O samba nasceu na Bahia”.

EP — Isso aí aconteceu o seguinte. Primeiro, nós tínhamos feito “Nosso samba simplesmente”. Aí não era com Batatinha. Era eu, Ederaldo e Cida Passos, uma cantora baiana. Fizemos esse show. Depois, no ano seguinte, nós montamos “E o samba continua”. Também com Cida e Ederaldo. Era ali no Pelourinho, embaixo, no subsolo, um teatro maravilhoso. E quando nós começamos a fazer, era para ser coisa de duas semanas, mas acabamos ficando um tempão.

Aí, então, nós chamamos Batatinha e montamos “O Samba nasceu na Bahia”. Chamamos Perfelino Neto, chamamos professor Cid Teixeira, fizemos uma pesquisa e levamos para o teatro um grupo que existia aqui no Nordeste de Amaralina, que cultuava ainda aquela coisa da chula, do samba de roda, com aquelas violas que eles mesmo faziam. Que foi um trabalho que o Fred Dantas depois até trabalhou nesse contexto, só que ele não teve muito elemento como nós tivemos.

Esse show era aberto com este grupo de Nordeste de Amaralina, com aquelas violas, com aqueles instrumentos que eles mesmo usavam. Isso deu uma polêmica a ponto de o Pasquim vir para cá. Baixou aqui uma equipe do Pasquim na época para cobrir e conversar sobre essa polêmica sobre onde o samba nasceu.

.ba — Já tinha aquela polêmica lá atrás, né?

EP — Exatamente. Aí veio o Sergio Cabral, o Ziraldo, veio o Paulo Francis, veio o Albino Pinheiro, veio Tarso de Castro. E esse show nós levamos um três meses fazendo. “O samba nasceu na Bahia”. Foi um negócio maravilhoso.

.ba — Nos anos 70, você produziu o álbum “Samba da Bahia”, com Riachão, Batatinha e Panela. 

EP — “Samba da Bahia” tem uma história muito interessante. Eu era Relações Públicas da Philips no começo dos anos 70. E aí, montaram um show no Rio de Janeiro com Riachão, Panela e Batatinha. Uma temporada. E este show foi gravado com a intenção de virar um disco. E Riachão dia sim, dia não, falava: “Malandro, cadê o disco?”. E eu respondia: “Tá vindo”. Aí comecei a cobrar o pessoal da Philips. Até que o Roberto Menescal mandou a fita de rolo. “Edil, escuta aí”. E eu não gostei muito da qualidade técnica, não. E ele botou na minha mão, né? Então, eu disse: “Não, essa bomba não está na minha mão”.

.ba — E não estava legal mesmo?

EP — Não estava. Aí eu mandei para Paulinho da Viola. “Se Paulinho assinar embaixo a gente bota, se Paulinho não assinar, a gente não bota”. E Paulinho não assinou.

.ba — Paulinho não tinha nada a ver com a gravadora, foi só um consultor ali.

EP — Isso, foi um consultor. Ouviu a fita e disse que estava ruim. E Riachão ali, me cobrando. Aí eu falei para o Menescal: “Menescal, é o seguinte, a gente tem que gravar o disco. O Riachão está me atormentando com essa história”. Daí eles mandaram uma mesa de som e dois gringos. E eu fiquei encarregado de produzir o disco.

Na verdade, nos créditos aparece Paulinho Lima como produtor. Mas Paulo Lima nem veio aqui, ele foi o cara que articulou. Eu saio no disco como arranjador, mas eu fui arranjador e produtor. Fui eu que produzi. Nós gravamos no Teatro Vila Velha, de noite, que tinha mais silêncio. Teve até um dia que um grilo apareceu e não conseguimos gravar. Enfim, gravamos esse disco “Samba da Bahia”, que tem Riachão, Panela e Batatinha. É um disco lindo.

Com os Bambas de Sampa: “Só quero ficar cantando com essa turma” – Foto: Antonio Brasiliano

 

.ba — Mestre, um de seus maiores sucessos, para não dizer o maior, foi “Ijexá”, gravado por Clara Nunes em 1982.

EP — Em 1979, ela gravou “Apenas um adeus” e depois, em 1981, gravou “Coração valente”. Então, ela já vinha em uma sequência de gravações de músicas minhas quando gravou “Ijexá”. O “Apenas um adeus”, que é meu e do Roque [Ferreira], tem até uma história que o Paulinho Pinheiro, que na época era casado com Clara, colocou um verso no samba. “As noites são cumpridas no passo da manhã/ façamos as feridas o nosso talismã”. Foi ele que botou.

E o “Ijexá” foi o seguinte: teve um aniversário de João Nogueira, na casa dele no Recreio, uma casa grande, lotada de gente. A Clara não estava lá, mas Paulinho foi. Era um sábado. Aí o violão rodou, rodou. E quando era lá pras quatro da manhã, o violão chegou na minha mão e eu cantei o “Ijexá”. Quando eu cantei “Ijexá”, eu senti um negócio diferente. Aí, quando foi no outro dia, às 10 da manhã, a Clara me liga: “Oi, vem pra cá”. Ela fabricava vodka e fazia pra mim. “Já fiz sua vodka”. Então, almoçamos eu, Clara, Paulinho, Mauro Duarte, o Bolacha, que sempre estava lá. Aí, lá pelas tantas, ela disse: “Vou gravar um disco novo, canta suas músicas aí”.

E eu escondendo meu negócio, porque eu fiz o “Ijexá” para eu mesmo gravar. Porque estava fazendo um disco. Eu ia gravar aquele afoxé, que era como nós chamávamos os ijexás na época. Ainda não havia esse esclarecimento. Modéstia à parte, fui eu quem esclareci isso para a música brasileira.

Pois bem, conversa vai, conversa vem, cerveja, vodka, coisa e tal. Dali a pouco, ela diz assim: “Isso é bonito, mas você ainda não cantou o que você cantou ontem no aniversário do João, não. Paulinho me disse que você cantou um negócio diferente. Canta aí”. E eu cantei. Aí quando eu terminei de cantar, ela olhou para mim e disse: “Eu posso gravar isso aí?” E eu respondi: “É sua”.

E essa música é um divisor de águas para mim. Sabe por quê? Eu investi pra caramba. Quando eu fui para o Rio de Janeiro, eu gastei meu dinheiro todo. Vendi carro, vendi telefone, Moraes Moreira me emprestou dinheiro… Aí veio “Ijexá” e, graças a Deus, e eu retomei tudo.

.ba — E tem uma história legal a composição dela, não?

EP — Aí foi o seguinte: eu comecei a fazer essa música no Rio e terminei de fazer em Maragogipe. Mas ficou um trechinho no meio só com a melodia, sem letra. E aí, lá em Maragogipe, eu ficava, às vezes, a manhã inteira olhando para cima, na varanda. E minha sogra: “Menino, você vai enlouquecer”. E eu procurando. Isso durou um tempo, não foi um dia só, não. Até que determinada noite eu acordei a madame, Ana Maria, cutuquei ela e mandei ela escrever: “Revela a leveza de um povo sofrido, de rara beleza, que vive cantando, profunda grandeza”. Aí, ela: “Pô, que bom, uma parceria minha e sua”. E eu digo: “Nada disso, é só minha”.

.ba — E o pessoal veio atrás de você.

EP — Aí, começou. Graças a Deus.

.ba — Aí, você teve a ideia de compor sobre outros blocos de afoxé.

EP — Foi. Alcione gravou “Afreketê” e “Ara-kêto”, Agepê gravou “Ilê Ayiê” e Roberto Ribeiro gravou “Olodum”.

.ba — Tudo com Paulo César Pinheiro.

EP — Tudo com ele. E aí, um dia ele me ligou, dizendo que a gravadora queira fazer um disco, mas só tínhamos cinco músicas. Essas que Clara, Agepê, Alcione e Roberto Ribeiro tinham gravado.

Foto: Antonio Brasiliano
O sambista baiano completou 50 anos de carreira neste ano de 2019 – Foto: Antonio Brasiliano

 

.ba — Essa ideia da gravadora tinha a ver com aquela série de sambas do Mauro Duarte e do Paulo César Pinheiro sobre Escolas de Samba?

EP — Exatamente. O gancho era esse.

.ba — Porque eles fizeram de várias Escolas de Samba do Rio, começando com “Portela na Avenida”.

EP — Era para sair essa produção também, mas esse disco não chegou a ser feito. E a Philips gostou mais do projeto de cá. Aí o Paulinho veio pra Bahia…

.ba — Vocês já tinham cinco músicas prontas e precisavam fazer outras.

EP — Tínhamos quarenta dias para fazer outras cinco para fechar o disco. Uma mordomia total aqui, tudo pago pela gravadora. Quando ele chegou… Três horas depois que ele chegou a gente já tinha três prontas. No outro dia fizemos mais uma. Aí ficou faltando uma. E eu disse: “Essa nós não vamos fazer agora”.

.ba — “Vamos curtir um pouco”.

EP — Aí só no fim que fizemos a última.

.ba — E como foi que te despertou essa coisa de compor ijexás? 

EP — Em 1980, eu acho, eu comecei a pensar em fazer um disco. Eu tinha feito “Pedras Afiadas” em 1977 e comecei a pensar em fazer um novo disco. Aí, pensei:  “Vou fazer um afoxé”. E comecei a compor “Ijexá”, que todo mundo conhece por “Filhos de Gandhi”. A palavra “Oju Obá” eu vi num muro, passando de carro na Vasco da Gama.

Depois, eu fiz uma pesquisa na Secretaria de Cultura, fiz um levantamento dos blocos afros. E foi aí que eu fui descobrir que todo mundo falava que o afoxé era um ritmo, era conhecido como um gênero musical, e vim descobri que não era. Descobri que o ijexá é o ritmo e os afoxés são as entidades. Então, foi um divisor de águas. Eu fiz para gravar, mas a Clara me pediu e eu não pude negar.

.ba — E “Filhos de Gandhi” foi seu primeiro ijexá?

EP — Não, antes teve uma música chamada “Olhos de Nanã”. Jair Rodrigues gravou essa música bem antes, mas eu também não sabia que era ijexá, só vim me tocar depois.

.ba — Quando você fez “Olhos de Nanã” você já tinha essa coisa com os ijexás de escutar os Filhos de Gandhi? Do Gil? De onde veio essa coisa?

EP — Acho que foi bem antes do Gil.

.ba — Mas vem de onde, então? Dos Filhos de Gandhi? Do Carnaval da Bahia?

EP — É, exatamente.

.ba — Talvez tenha sido você quem levou o ritmo do ijexá para a indústria cultural, não?

EP — O Gil também fazia. Agora, eu não sei se o Gil já sabia que o ijexá era o ritmo ou o toque. Até hoje eu vejo alguns artistas dizerem: “Vou cantar um afoxé”.

.ba — O afoxé é o agrupamento.

EP — O afoxé é a entidade.

.ba — É como se fosse a Escola de samba, o bloco. E o ijexá é a batida, o ritmo.

EP — O afoxé é a Escola de Samba e o ijexá é o samba-enredo, pronto.

.ba — Que vem do candomblé.

EP — Exatamente. É o toque de chamamento de Ogum. Tá entendendo? É isso aí que é o ijexá. Hoje, eu faço questão de falar em “ijexá” e não “afoxé”. De alguma forma, serviu para colocar o ijexá como gênero caracterizado na música brasileira, como tem outros tantos.

.ba — Queria falar um pouco do disco “Pérolas Finas”, tributo a Ederaldo Gentil, que você produziu.

EP — O “Pérolas Finas” é o seguinte. O Ederaldo estava com aquele problema de depressão. E o pessoal, acho que o Carlinhos Brown, junto com a Timbalada, chegou a gravar alguma coisa dele. E a irmã dele disse que isso melhorou a cabeça dele. Aí, conversei com alguns amigos meus, José Cerqueira, que era da Brasken, e nós conseguimos o dinheiro e fizemos o disco. Um disco maravilhoso, modéstia à parte.

.ba — Maravilhoso, mesmo.

EP — Ficou legal. Um disco à altura que Ederaldo merece.

Foto: Antonio Brasiliano
Pacheco foi um dos responsáveis pela fixação do ijexá como gênero musical – Foto: Antonio Brasiliano

 

.ba — Você também produziu o disco “Do Lundu ao Axé”. 

EP — O “Do Lundu ao Axé” é uma espécie de continuação de “O samba nasceu na Bahia”. Eu andei um período fazendo uns trabalhos com o Paulinho Boca, meu parceiro Paulinho Boca, e pensei em fazer um disco falando do samba da Bahia. Mas Paulinho pensou em uma coisa mais abrangente. Na hora, veio a ideia: “Do Lundu ao Axé”. Isso aí foi definitivo. “Do lundu ao Axé”.

Esse disco levou uns quatro ou cinco anos para a gente fazer porque foi se desdobrando, muitas pesquisas e tal. E eu tenho um débito com Vicente Barreto, que nós esquecemos de colocar “Morena Tropicana” nesse disco. Mas eu ainda penso em fazer um documentário, um vídeo, alguma coisa. E jogar o “Morena Tropicana”, do Vicente Barreto, que é uma música maravilhosa. E aproveito a oportunidade para pedir desculpas a ele.

.ba — Teve mais algum disco que você produziu?

EP — Eu produzi o disco “Para ver o meu povo sambar”, de Walmir Lima. Tinha 25 anos que ele não gravava um disco. E eu consegui, juntamente com o professor Paulo Dourado. Arrumamos de gravar o CD dele e fizemos esse disco, que tem um samba da gente que a Marrom gravou agora, “Santo Amaro é uma flor”.

.ba — E você tinha me dito certa vez que Ivete Sangalo ia gravar “De amor é bom”.

EP — Ia gravar, não. Gravou.

.ba — E saiu?

EP — Não. Isso é importante você colocar na matéria.

.ba — Não saiu no disco?

EP — Não, cortaram. Cortaram porque queriam me dar 5% de 18,5% que eu tinha direito. A Universal. A Universal tirou minha música do disco de Ivete Sangalo, porque queria me dar 5% de 18,5% que eu tenho direito e eu não quis. Aí eles tiraram. Isso é um terror, rapaz. Perdi uma grana, viu, velho? Mas também não abri mão, não. Conversei muito com Paulinho Pinheiro.

.ba — E ele?

EP — Os caras querem a música como música incidental. Não é música incidental. Música incidental é quando pega um pedacinho e você pega e junta. E não é.

.ba — Era um pout-pourri?

EP — Era um pout-porri. Música incidental é outra coisa.

.ba — Ela não gravou e as outras que iriam entrar junto com o pout-pourri caíram também?

EP — Era um pout-pourri com duas músicas. “Céu da boca” e depois “Ah, como é bom viver, é bom viver de amor…” Pô, meu dinheiro. Eles vieram me dizer: “Olha, Edil, a gente já falou com a Ângela [Nogueira, viúva de João Nogueira] e ela aceitou”. “Eu não aceito”. E liguei para Ângela. Aí, tirou. Tirou. A gravadora tirou do disco. Depois eu acabei mandando um manuscrito pro empresário de Ivete: “Estou autorizando lançar a música, não concordo com relação a meu percentual, mas está autorizado a lançar”. Aí, o cara deve ter dito a ela: “Ah, ele não liberou, não, esse canalha aí”.

.ba — E como era sua parceria musical com João Nogueira?

EP — Todas as músicas que fiz com João, praticamente todas, foram feitas em cima do que acontecia com a gente no momento. Com “Mel da Bahia” foi assim. Quando nós começamos a fazer o “Mel da Bahia”, o antigo Mercado Modelo ainda existia. Aí ele voltou para o Rio e o Mercado pegou fogo. E a gente teve que alterar o samba todo por causa do ensejo do Mercado Modelo. Aí, o Mercado foi reconstruído e eu consegui trazer ele para a reinauguração.

Antes disso, ele veio aqui e nós fomos almoçar no Camafeu de Oxóssi, no Mercado Modelo. Camafeu tinha um restaurante lá. Camafeu de Oxóssi e Mãe Menininha do Gantois. Um do lado do outro. E fomos no Camafeu. Aí, chamamos Camafeu, chamamos o garçom. “Cadê Camafeu?” “Camafeu não está mais aqui, ele alugou o restaurante para o português. “Chama o português”. Era Seu Manoel, o português.

Quando ele chegou, a gente começou a cantar: “Cadê Camafeu, Manel…” E tinha um texto do Jorge Amado assim, em cima, que falava da Bahia, dos mistérios. E no final dizia assim: “Veio a Bahia e não conheceu Camafeu, não conheceu Salvador”. E foi aí que a gente colocou “Não viu Camafeu?/ não foi à Bahia/ falou Jorge Amado” na música.  E trocamos o Manuel por Seu Jorge Amado. “Cadê Camafeu, Seu Jorge? Cadê Camafeu, Jorge Amado?” E fizemos o “Mel da Bahia”. O João gravou. E depois, na reinauguração do Mercado Modelo, eu trouxe ele para cá e ele cantou essa música, “Mel da Bahia”.

.ba — Como era a amizade com ele? Como foi que você o conheceu e se tornou amigo dele?

EP — Com o João, eu acho que foi aqui. Eu andava muito no Rio de Janeiro, ligado no rádio e uma vez eu ouvi João cantando uma música. “Hoje eu estou cheio de alegria” [“Sonho de Bamba”]. E ficou aquele negócio. Aí, depois eu soube que João vinha para cá, teve uma festa da EMI-Odeon aqui em Salvador. Acho que veio Dori Caymmi, João Nogueira, Roberto Ribeiro, uma série de artistas. Era uma coisa para Dorival Caymmi, aniversário dele. E foi aí que eu conheci João Nogueira aqui, pessoalmente.

E começamos a manter uma amizade. E tem particularidades. Quando eu fui contratado pela Polygram para fazer um disco, Helena Oliveira, que era da diretoria comercial da Phillips, me disse: “Edil, qual artista você acha que a gente deve trazer para a companhia?” Eu disse: “João Nogueira”. “Pô, você está trazendo o cara para concorrer com você?” Eu: “não tem problema”. Tá entendendo? Fui eu que levei João Nogueira para gravadora, pô.

.ba — Amizade boa, né?

EP — É. Eu me lembro que eu estava gravando e ele foi lá. Eu disse “Ó João, vou trazer você”. Porque ele estava querendo chegar né?  E eu, de alguma forma, dei um empurrão, vamos dizer assim.

Foto: Antonio Brasiliano
Edil Pacheco e as pastoras dos Bambas de Sampa, em São Paulo – Foto: Antonio Brasiliano

 

.ba — E aí, Edil, são mais de 250 composições gravadas. É música, hein?

EP — Acho que é até mais.

.ba — Qual é a que você mais gosta dessas que foram gravadas?

EP — Tem uma vez que estávamos eu o João Nogueira querendo fazer um samba na casa dele. Tomamos umas, coisa e tal, e nada. De repente, de uma amendoeira caiu uma folha. Quando a folha caiu, os dois falaram na mesma hora, com a mesma melodia. Pô, a gente estava tão sintonizado para fazer o samba que quando a folha caiu, cantamos juntos: “O vento bateu na folha”. Aí completamos: “Fez a folha voar/ na folha escrevi um verso/ botei no correio expresso/ pra depressa para o meu amor chegar” [“Fôia de amor”]. Está entendendo?

O primeiro samba que fiz com ele, “Salve a Bahia” foi assim, também. No Mercado Modelo, uma vez que eu o trouxe pra cá. Estávamos tomando uma cerveja eu, ele e Ângela. Aí ele: “Vou para a Bahia a tristeza eu deixo de lado”. Começou a fazer o samba sozinho e deixou na minha. Levou cinco anos na minha mão. Só a primeira parte. “Vou passear no meio da multidão/ bugiganga eu compro no mercado/ cerveja bebo na Conceição”. Ele deixou para mim. “Pô cadê o samba?” Cinco anos depois eu fiz: “Estou falando consciente e baseado/ não faço verso trocado nem mudo de opinião/ Tenho meu corpo fechado…” O Jair Rodrigues gravou antes do João.

Foto: Antonio Brasiliano
Todos os meses, Pacheco organiza o  “Samba na Varanda” em Salvador – Foto: Antonio Brasiliano

 

.ba — Você faz melodia e letra. Como é? Vem de uma vez? Às vezes você trabalha a melodia em cima da letra? A letra em cima da melodia ? Não tem regra?

EP — Não tem. Às vezes já vem pronta. E com João era tudo assim. Com João, todas as músicas que a gente fez foi assim.

.ba — Outra coisa marcante em sua carreira é a organização do Dia do Samba em Salvador.

EP — Desde 1987 eu toco o Dia do Samba. Mas desde 1972 eu participo ativamente do Dia do Samba.

.ba — Que teve a primeira edição lá no Campo da Graça ainda, certo?

EP — Que não era Dia do Samba ainda, era Noite do Samba e Dendê. E depois ficou caracterizado como Noite do Samba. Só a partir de 1987 que a gente começou [a chamar de] Dia do Samba. Porque as festas eram sempre à noite, mas foram crescendo de forma que começaram a ter manifestações em vários lugares, um grupo tocando aqui, outro ali. Aí deixou de ser “Noite”. Durante o dia tinham várias manifestações, aí começou o Dia do Samba.

.ba — E aí em 1987 começou a ter uma coisa organizada com governo, prefeitura? O poder público entrou na jogada?

EP — Em 1987, nós viajamos para fazer o carnaval no Benin. Uma caravana baiana. Uma grande parte do Ilê Aiyê, Mãe Stella de Oxóssi, Pai Balbino, Pierre Verger, Carybé, Gilberto Gil, eu. Fizemos um carnaval de 15 dias lá. E durante essa experiência que nós fizemos lá eu conversei muito com Gil. “Pô, ano passado não teve Dia do Samba. Vamos fazer o Dia do Samba de novo”. Porque isso foi no início de 1987. E em 1986, não houve o Dia do Samba. Aí, chamei Gil, que era presidente da Fundação Gregório de Matos, e marquei uma reunião. Fomos eu, Batatinha, Ederaldo e Tião Motorista. Reivindicamos uma ajuda para fazer o Dia do Samba. E retomamos em 1987.

.ba — Aí já com a Prefeitura?

EP — Quem consegui recurso foi a Fundação Gregório de Matos [ligada à Prefeitura de Salvador], através de Gil, que era o presidente na época. Recurso esse que destinado só aos músicos acompanhantes. Os artistas que cantaram de graça.

.ba — Teve algum Dia do Samba que foi mais marcante pra você?

EP — Teve um que veio Chico Buarque. Ele combinou que viria. E aí quebrou o pé jogando bola e não veio. A gente não chegou a anunciar ao público. Antes de anunciar, ele já disse que não poderia vir porque tinha quebrado o pé. Mas nos bastidores, as pessoas envolvidas no Dia do Samba sabiam que Chico viria e ele não veio. E no ano seguinte ele confirmou. Me lembro bem que fui com Batatinha no [Hotel] Méridien falar com ele. Porque ele não conhecia Batatinha.

.ba — Isso foi nos anos 90 então?

EP — Acho que 1992 ou 1993. Então, nós fomos lá e ele confirmou. Aí, ficou aquele negócio: a gente começou a anunciar que Chico viria para o Dia do Samba e ficou aquela expectativa, “será que ele vem mesmo?”. E eu me lembro que eu disse: “Ó, Chico, eu não tenho dinheiro, eu tenho ajuda de custo”. E Chico foi o único participante do Dia do Samba que trouxe músicos. Aí, ele disse: “Você dá para os músicos”. E abriu o show cantando: “Pensou que eu não vinha mais, pensou/ cansou de esperar por mim” [“De volta ao samba”]. Foi uma apoteose.

Foto: Acervo Edil Pacheco
Edil Pacheco e Leci Brandão em uma lembrança de tempos idos – Foto: Acervo Edil Pacheco

 

.ba — Você compôs com Batatinha, Ederaldo Gentil. Com letristas, melodistas…

EP — O Luiz Vieira, o grande Luiz Vieira, era meu amigo. Está no Rio de Janeiro, firme e forte. Ele disse: “Rapaz, você faz música com todo mundo”. E eu faço mesmo. Tenho com Capinan, com Paulo César Pinheiro, tenho com Moraes Moreira, Luiz Melodia, tenho com Nelson Rufino, tenho com Walmir Lima, tenho com Roque Ferreira. As minhas músicas são simples. Mas tem um negocinho assim que tem hora que pega. Pô, é simples pra caramba. Porque o difícil é você fazer o simples. Fazer o simples que é difícil. Fazer o difícil é fácil.

.ba — Como você vê o samba da Bahia dentro do universo do samba brasileiro?

EP — Eu acho que o samba da Bahia tem as suas peculiaridades. O samba que eu faço, tem suas particularidades. O samba de Batatinha, de Nelson Rufino, tem suas particularidades. Mas o samba da Bahia está dentro de um contexto nacional. Nelson Rufino é um exemplo disso: talvez ele seja o compositor baiano com mais sucessos. Então, o samba da Bahia está dentro do sistema, está dentro deste contexto do samba do Brasil. Tem muita gente que canta os sambas achando que são de compositores cariocas e são músicas dos baianos, Nelson Rufino, Roque Ferreira, Edil Pacheco… Então, acho que o samba da Bahia está dentro deste contexto, está inserido na base da música popular brasileira de uma forma concreta, substancial.

.ba — E você acredita que a Bahia cuida bem do samba?

EP — Muito pelo contrário.

.ba — Por quê? Como você vê isso?

EP — É uma luta rapaz. E eu fico muito preocupado, converso muito com Nelson Rufino com relação a isso. A gente trabalha para mudar esse conceito, né? Está entendendo? Nelson Rufino e Roque Ferreira, por exemplo, são dois expoentes, são uns caras que estão na história da música brasileira. E a música de Nelson Rufino talvez tenha um alcance ainda maior. Agora, a Bahia não cuida bem do samba, não.  Para mim, o samba nasceu aqui. Agora, que o Rio de Janeiro cuida melhor do samba, isso é uma verdade.

.ba — O que acontece?

EP — A classe média baiana não vai ao samba. Com raras exceções. Não estou dizendo que isso é ciência exata. Mas você vai no Rio de Janeiro, você vê as meninas de 14, 15 anos no samba, cantando tudo. Porra, bicho, a garotada. Eu vou lá no Democráticos, no Rio, e quando dá o intervalo, que botam a música mecânica, eu saio observando a garotada cantando as músicas. Tem um diferencial, logicamente: tem esse samba que esses caras botam aí…

.ba — O pagode baiano. Mas aí já não é o samba tradicional né?

EP — Não, é outra coisa.

.ba — Mas tem a resistência, né, mestre?

EP — Tem. Tem o negócio de Guiga, tem a coisa que eu faço aqui, tem uma coisa isolada ali. Seu Regis de Itapuã, o grupo Botequim. E a gente vai tentando aí.

Foto: Antonio Brasiliano
“Produzo bem menos. Acho que a autocrítica está maior”, diz Pacheco – Foto: Antonio Brasiliano

 

.ba — E a nova geração que vem aí?

EP — Eu vejo como uma coisa maravilhosa. O Ênio [Bernardes] e o [Paulinho] Timor produziram recententemente discos ótimos trazendo a velha guarda do samba baiano. E os músicos que gravaram são todos jovens. E bons pra caramba. A Bahia tem ótimos novos talentos, mas ainda está atrás de São Paulo e Rio.

Eu costumo dizer que onde está se fazendo o melhor samba é em São Paulo, com a garotada muito boa de samba. E eu fico impressionado que o público que vai me ver lá é diferente do público que vai me ver aqui. Aqui é um público mais experiente e em São Paulo são mais jovens. E eu acho que esse intercâmbio com o pessoal de são Paulo ainda vai acrescentar muito para o samba da gente. Não falo nem por mim, mas pelos outros, Guiga de Ogum, Seu Regis de Itapuã, Bartho Ara, que são compositores que têm pouca coisa gravada.

.ba — O que falta para você realizar como sambista após 50 anos de carreira?

EP — Eu não faço muito planejamento, não. Estou ficando mais rigoroso. Fico achando que as coisas não estão tão boas e fico querendo fazer melhor. Produzo bem menos. Agora, eu acho que a autocrítica está maior. Já não atuo como atuava antes. Eu costumava levar sambistas daqui para o Rio, hoje não faço mais isso.

Mas eu acho que estou numa fase boa, essa relação com essa turma dos Bambas de Sampa [conjunto de São Paulo]  me deu um gás, porque você convive com uma turma mais nova. Teve um dia que nós estávamos lá na Barra do Paraguaçu cantando com eles. Rapaz, eu senti uma emoção que eu nunca tinha sentido na minha vida, nem em show, nem em lugar nenhum, foi uma emoção muito grande. Não quero fazer mais nada, só quero ficar cantando com essa turma. É uma coisa como religião, uma coisa de tribo. Bonito para caramba, fiquei emocionado de chorar.

 

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