O setor elétrico brasileiro caiu no colo dos chineses

Quem não duvidava, há cerca de duas décadas, do potencial econômico da China? Hoje, como se sabe, o país é a segunda maior economia do mundo, exporta mais do que qualquer um e empurra, praticamente sozinha, o PIB global.

Mas, mesmo para os padrões chineses, chamou a atenção o plano da estatal de energia State Grid para a construção de uma rede elétrica global, divulgado em março. A empresa anunciou o objetivo de investir, até 2050, 50 trilhões de dólares (isso mesmo, trilhões) para interligar o parque energético mundial, em parceria com outros sócios.

É bem verdade que, se há uma empresa com musculatura para ter essa ambição toda, essa empresa é a State Grid. Trata-se da maior companhia de energia do mundo, e disparado — com 1,5 milhão de funcionários, fatura 340 bilhões de dólares por ano. E, a julgar pelos movimentos recentes, o colosso energético chinês quer começar seu plano de conquista do mundo pelo Brasil.

A State Grid desembarcou no país há seis anos e, para usar o léxico popular, “chegou chegando”. Após uma série de aquisições, tem hoje 7 000 quilômetros de linhas de transmissão em funcionamento e outros 6 600 em construção. Em junho, a empresa anunciou a compra da participação do grupo Camargo Corrêa na CPFL, distribuidora paulista de energia e uma espécie de joia da coroa do setor.

É quase certo que comprará também a participação dos demais controladores e assumirá 100% da companhia, a um custo estimado em 25 bilhões de reais. Quando concluída, a aquisição será a maior da história do setor elétrico brasileiro.

Mas o que chama mais a atenção de quem observa o setor elétrico brasileiro é o fato de o apetite da State Grid ser apenas a demonstração de um fenômeno que parece estar em estágio inicial — a dominação do mercado por empresas chinesas. Pelo tamanho que a State Grid tem, é natural que esteja à frente desse processo. Mas ela não é a única.

Nos últimos cinco anos, os chineses investiram cerca de 40 bilhões de dólares no setor elétrico brasileiro. A China Three Gorges (CTG), que opera a hidrelétrica de Três Gargantas (a maior do mundo), entrou no Brasil em 2013 com a aquisição de ativos da portuguesa EDP — 17 bilhões de reais e três aquisições depois, a CTG é hoje a segunda maior geradora do país fora do sistema estatal.

Até mesmo grupos totalmente desconhecidos, como Huadian, SPIC e CGN, estão avaliando a aquisição de ativos de energia no Brasil. Fôlego não faltará: em suas operações chinesas, a Huadian gera o equivalente a toda energia elétrica produzida no Brasil. Hoje, essas empresas são favoritas à compra de uma série de operações à venda no país.

“Eles vão comprar tudo”, diz um banqueiro de investimento que participa das negociações. A visão um tanto fatalista do banqueiro reflete uma realidade — quando os chineses querem comprar alguma coisa, não há concorrentes para eles. “A conta fecha porque seus planos de negócios são de 30 anos”, diz Guilherme Malouf, especialista em mercado de capitais do Machado Meyer Advogados.

Como são estatais, as companhias acessam o crédito de baixo custo dos bancos chineses. A State Grid chegou ao cúmulo de quitar antecipadamente um empréstimo de 1,5 bilhão de reais com o BNDES (com juros de pai para filho) porque preferia captar o dinheiro em casa.

Para vencer o leilão do linhão que transmite energia da usina de Belo Monte para a Região Sudeste, em 2014, a State Grid ofereceu um inacreditável deságio de 38% — a segunda colocada ofereceu 12%. “Essa operação era estratégica para os chineses, e eles não queriam correr o risco de perder”, afirma um assessor que participou da operação.

Na negociação pelas hidrelétricas de Jupiá e Ilha Solteira, em novembro, a CTG pagou 14 bilhões de reais — não houve competição, já que era a única empresa capaz de levantar aquela dinheirama em tão pouco tempo. Pe­lo contrato de concessão, a compradora teria de pagar 10 bilhões de reais já em dezembro e o restante até junho deste ano.

Em maio, a companhia emitiu um bônus de dez anos para pagar a última parcela, com juros de 2,8% ao ano. Para uma empresa brasileira de alta qualidade de crédito, uma emissão teria taxa mínima de 5% em dólar. No mercado bancário, a diferença também é grande. Em operações de infraestrutura do Brasil, o banco de fomento chinês CDB concedeu financiamento a taxas anuais de 6%.

No BNDES, a taxa média é de 11%. “Não nos consideramos mais agressivos em preços. Fazemos uma avaliação racional de valores”, diz Li Yinsheng, presidente da CTG no Brasil. Em cada transação relevante em curso no setor hoje no Brasil há um chinês em discussões avançadas.

A Huadian negocia a compra da Santo Antônio Energia, que tem entre os acionistas Odebrecht e Cemig, que tentam reduzir o endividamento — a Cemig também quer vender o controle da Light, a distribuidora de energia do Rio de Janeiro. A CTG e a State Grid estão discutindo a compra de parques eólicos do grupo Queiroz Galvão.

A State Grid já está de olho na Eletropaulo — a americana AES decidiu vender a empresa. A Eletrobras também busca sócios e estuda a venda parcial ou total de suas distribuidoras. A chinesa Shangai Electric tem interesse em ser sócia da Eletrosul, mas impõe a condição de ser majoritária.

A SPIC, que entrou no Brasil com a compra de operações da australiana Pacific Hydro, e a Gezhouba, que já tem operações em vizinhos da América Latina, também buscam aquisições no país. Os chineses estão ainda investindo diretamente em projetos — a Astroenergy está investindo 1 bilhão de reais em dois parques de geração solar no Ceará.

O estilo de negócios das companhias chinesas vem mudando ao longo dos anos para padrões cada vez mais internacionais. O receio inicial de um navio ancorado no porto de Santos e centenas de trabalhadores dormindo em contêi­neres — como aconteceu na costa africana — aparentemente ficou para trás. A CTG é considerada a mais “ocidentalizada” das companhias em operação no Brasil.

Seu presidente fala inglês nas reuniões com bancos e tem diretores brasileiros sob seu comando. Na State Grid, para cada brasileiro, há um “equivalente” chinês.

Nas negociações, os escritórios de advocacia se apressaram porque precisaram traduzir todos os documentos e contratos para mandarim — a demanda aumentou tanto que, numa transação recente, os tradutores no Brasil estavam saturados de serviço, e os assessores jurídicos tiveram de contratar tradução na China mesmo.

Tudo, aliás, tem de ser feito com antecipação para dar tempo de ir e voltar da China com as definições: as empresas têm hierarquia rígida. Quanto menos internacionalizada for a companhia, mais longas são as reuniões — chegam a durar 14 horas quando os compradores preferem que sejam feitas em português e mandarim.

Estratégia global

A empreitada chinesa no Brasil faz parte de uma lógica maior de investimentos mundo afora. Em 2014, os chineses atingiram, pela primeira vez, a marca dos 100 bilhões de dólares de investimento anual no exterior. Somente no primeiro semestre deste ano, foram mais 87 bilhões de dólares. O investimento internacional é uma orientação do governo.

Em maio do ano passado, o primeiro-ministro Li Keqiang esteve no Brasil para firmar acordos de 53 bilhões de dólares — e para dar uma sinalização explícita às empresas chinesas de que o país deveria ser destino de investimentos.

“Com a desaceleração da economia chinesa e mais de 3 trilhões de dólares em reservas, os chineses precisam achar formas de gastar esse dinheiro fora“, diz Luiz Augusto Castro Neves, presidente do Conselho Empresarial Brasil-China. O avanço em solo brasileiro também se deve a uma mudança radical no comportamento do governo federal.

Há pouco mais de cinco anos o governo fa­zia os esforços possíveis para mostrar aos chineses que não eram bem-vindos aqui. Quando a State Grid tentou comprar a fatia da espanhola Iberdrola na ­Neoenergia em 2010, os espanhóis foram co­mu­nicados que a transação “não agradava” — ou seja, o governo vetaria se fosse preciso.

Em 2013, quando a mesma empresa tentou adquirir a fatia da Camargo Corrêa na CPFL (a mesma que acabou de comprar), o governo chamou os fundos de pensão que são sócios da empresa para exercerem o direito de preferência de compra e, com isso, fechar o caminho para os chineses. A operação acabou não ocorrendo.

Mas a realidade do setor se impôs e o governo teve de mudar de postura. O apetite chinês encontrou um Brasil em que nunca houve tanta oferta de ativos e participações em empresas de energia. Segundo banqueiros e advogados ouvidos por EXAME, pelo menos 60 bi­lhões de reais em ativos estão em busca de um comprador.

Parte desse feirão se deve à presidente afastada Dilma Rousseff e à famigerada Medida Provisória no 579. A medida obrigou as companhias de energia a renovar antecipadamente suas concessões por taxas 20% mais baixas — quem não aceitasse a im­posição não poderia renovar. Para quem aceitou e para quem recusou, a medida mudou a lógica do negócio, já que afetou o fluxo de receitas e de caixa progra­mado.

Nas contas da consultoria Thymos, o efeito foi um rombo de 67 bilhões de reais para geradoras, transmissoras e distribuidoras. Em seguida ao ajuste, grandes investidores do setor, como Petrobras, Eletrobras, Camargo Corrêa, Odebrecht, OAS e Queiroz Galvão, foram surpreendidos pela Operação Lava-Jato.

Com necessidade de capital para reduzir dívidas, bancar investimento nos projetos e pagar multas e indenizações em negociações de leniência com o governo, essas empresas colocaram seus ativos à venda. Para investidores brasileiros interessados, pesa o alto custo de financiamento.

Para estrangeiras, como a franco-belga Engie e a alemã E.ON, atrapalham a desaceleração da economia europeia e os ajustes de resultados das operações na América Latina.

“Os chineses são praticamente os únicos com disponibilidade financeira hoje para viabilizar os grandes leilões do governo brasileiro”, diz Fernando Camargo, diretor da LCA Consultoria. Eis a ironia maior: as trapalhadas nacionalistas de Dilma Rousseff vão fazer o setor elétrico nacional cair no colo dos chineses.

Com informações: Revista Exame

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