“Paulo Freire é um educador do mundo”, diz professora e pesquisadora

Yumi Kuwano

Um dos pensadores mais citados do mundo completaria 100 anos no próximo dia 19. O ano do centenário do pernambucano Paulo Freire, patrono da educação brasileira, é marcado pelo aumento da desigualdade, indicadores educacionais baixos, ataques dos apoiadores do governo Bolsonaro à sua obra e nenhuma ação de comemoração por parte do Ministério da Educação. Felizmente, seu legado é mantido por instituições, educadores, grupos de pesquisa e movimentos sociais. Mesmo sendo uma obra fundamental para a formação de educadores, muitos não a conhecem a fundo. Esse foi o motivo da criação do Grupo de Estudos Paulo Freire da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Gilvanice Musial, professora da Faced, estudiosa de Freire e uma das idealizadoras do grupo, fala nesta entrevista sobre a atualidade do pensamento do educador.

Para Freire, o oprimido só se liberta quando adquire a capacidade de refletir sobre as condições de sua própria vida e conquista autonomia. O que significa defender o legado de Paulo Freire no contexto atual do Brasil?

Eu diria que para os setores que querem uma sociedade mais humana, mais igualitária, Paulo Freire foi um pensador que se debruça sobre o processo de humanização, de constituição da sua humanidade. Na Pedagogia do oprimido, ele escreve logo no início a justificativa. Diz que enquanto existirem opressores e oprimidos, há a necessidade de uma pedagogia do oprimido. Freire parte do princípio de que a humanização é a única possibilidade verdadeira na formação dos seres humanos. É nessa direção que ele vai construir todo o seu pensamento, pautado na necessidade de superação das relações de opressão por diferentes violências. Hoje, sobretudo, ele é importante porque vivemos um processo de profunda desumanização. Eu destacaria no momento uma que nos afeta profundamente, que é o número de mortes por covid-19. Sabemos que boa parte dessas mortes seria evitada com uma gestão da pandemia eficiente, responsável, pautada na ciência, com processo educativo e com bons exemplos.

Um aspecto relevante da obra de Paulo Freire é sua utilização junto aos movimentos populares. Como a obra dele nos ajuda em relação às questões sociais atuais?

A retirada de direitos sociais, trabalhistas, o aumento da pobreza, da fome, todos esses são sinais de uma sociedade que avança no seu processo de desumanização, de eliminação do outro, de uma política pautada pelo descaso com a vida. Nesse sentido, a obra de Freire nos ajuda a ler a realidade e entender a história como possibilidade. Para ele nada está dado, a história é possibilidade. E com ele criamos ânimo para pensar que um outro mundo é possível. Temos que nos fortalecer na construção de um outro mundo, não esse que está se mostrando com tanta feiura. Para grande parte da população brasileira, aceitar e dialogar com Freire é possível. Como é possível que o oprimido se fortaleça nessa luta contra a opressão, quando compreende a relação de opressão na sociedade e identifica esse opressor dentro dela. O pensamento de Paulo Freire é muito atual.

Por que Paulo Freire é um pensador que assusta a extrema direita a ponto de ser atacado frequentemente?

Parte dos críticos de Freire não o leram, isso fica muito claro nos tipos de ataque que são produzidos contra a obra dele. E outra parte dela existe porque, de fato, ele vai propor a superação de relações de opressão, então, quem está do lado dos opressores ou quem hospeda dentro de si os opressores não quer que isso mude. Ele diz que o diálogo é possível entre os diferentes, mas não entre os antagônicos, porque têm interesses muito distintos. Há uma parcela da sociedade brasileira muito reduzida, porque o grande capital está na mão de pouquíssimas pessoas, que constrói a sua riqueza a partir da opressão, exploração. De fato, para esses segmentos, é impossível aceitar o que Paulo Freire fala.

Os postulados freireanos tiveram um papel fundamental na formação de educadores. É muito marcante a ideia de proximidade entre professor-aluno e a troca de conhecimentos. Na sua opinião, vemos isso no ensino brasileiro?

De uma maneira geral os professores conhecem Freire, mas eu diria que, infelizmente, ele ainda é pouco estudado nos cursos de formação de professores. Talvez o ano de 2021 vai impactar de modo positivo, porque o Brasil todo se movimenta em torno das comemorações do centenário, os movimentos sociais, universidades, grupos de pesquisa. Nós não temos, por exemplo, por parte do Ministério da Educação, infelizmente, nenhuma ação nessa direção, mas na base sim. Uma das motivações para a criação do grupo de estudos Paulo Freire era o quanto nós recebíamos estudantes no curso de pedagogia e de outras licenciaturas que relatavam nunca ter lido Freire ou lido apenas um capítulo dele. Há um conhecimento mais geral, as frases de efeito são muito conhecidas, mas o conhecimento da obra, do pensamento freireano ainda é muito ausente na formação de professores.

Por isso também há uma grande dificuldade de aprendizagem na educação básica nas escolas públicas?

 

As pessoas não são pobres porque são analfabetas, elas são analfabetas porque são pobres, diz Freire. Em parte por causa do próprio modo de organização, de formação da carreira docente, mas também pelas condições de vida dessa população. Uma sociedade extremamente desigual, que tem uma parcela enorme de crianças que não tem três refeições no dia, que não tem uma moradia adequada, que não tem acesso à internet e condições necessárias para o desenvolvimento da aprendizagem, é claro que isso vai impactar na aprendizagem. Muitas vezes as condições da própria escola e estamos vivendo isso agora no retorno às aulas, o quanto muitas escolas não têm condições de receber as crianças e os professores pelas condições sanitárias. Paulo Freire falava isso em relação à alfabetização e podemos, a partir dessa reflexão, trazer para a educação de uma maneira geral. Muitas das dificuldades da educação brasileira são reflexos da profunda desigualdade na nossa sociedade.

 

Além de um governo que age para o desmonte da educação, estamos vivendo uma pandemia que fechou as escolas. Quais os prejuízos nestes últimos meses para a educação?

 

Os impactos são muito negativos, em especial para as crianças, jovens e adultos das classes populares, porque a pandemia trouxe também um agravamento das condições de sobrevivência dessa população. Eles ficaram mais afastados da escola e com dificuldade por não ter equipamento, como celular, computador, de não ter um ambiente apropriado para estudar, de não ter acesso à internet. Fizemos um levantamento na Ufba e o número de estudantes com dificuldades de acesso à internet e equipamentos no ensino superior era altíssimo. Imagine nas escolas. E os estudantes do EJA [Educação de Jovens e Adultos] relatam muito isso – às vezes, é um celular para o adulto, para a criança e se tem mais de uma criança… Eu diria que os reflexos serão muito negativos, o que exigiria, ao contrário da política adotada pelo Ministério da Educação, um investimento muito grande na educação pública do país.

 

O edital do Enem deste ano só permitia a isenção da taxa de inscrição de R$ 85 com apresentação de justificativa. Isso já foi descartado por decisão do STF, mas a medida restringia a participação de quem não tem como pagar. Logo depois, o Ministro da Educação disse que o acesso à universidade é para poucos. O que isso representa para a senhora?

O quadro é muito dramático. A inscrição no Enem expressa muito bem essa profunda desigualdade e essa distância entre aqueles que têm melhores condições e os que têm mais dificuldades. No Brasil, houve o aumento da pobreza e extrema pobreza e, contraditoriamente, o país ganhou alguns milionários. Você percebe claramente que houve um deslocamento da renda retirada dos setores populares para os mais privilegiados. É claro que isso está impactando nas escolas e o Enem de alguma forma traduz essa grande desigualdade. Isso em uma política que age para a ampliação dessa desigualdade, quando deveria fazer justamente o contrário.

Podemos dizer que estamos vivenciando o contrário das ideias de Paulo Freire, como defende a Pedagogia do Oprimido?

Tem um teórico que fala da necropolítica e eu diria que o Brasil faz essa política de morte muito bem. A política construída para o enfrentamento à pandemia foi e continua sendo de morte. Eu diria que essa política se materializa através da pedagogia da morte. Nós temos duas pedagogias muito fortes marcando o cenário nacional: a ideia da gripezinha e estamos chegando aos 600 mil mortos; a outra é a pedagogia da mentira, que é muito expressa a partir das fake news, mas que, para além delas, tem toda uma negação da ciência, um discurso de reducionismo histórico, um discurso como os ataques a própria obra de Paulo Freire. É tudo muito contrário àquilo que Freire propunha e o que nos exige o exercício que ele fez ao longo da sua vida, que é olhar a realidade, fazer perguntas para ela, procurar compreendê-la, analisá-la e desvendar essas narrativas falaciosas. Sem dúvidas vivemos um período em que a Pedagogia do Oprimido se torna mais necessária ainda.

O que significa para a senhora ver o centenário de um dos pensadores mais citados do mundo sendo ignorado pelo Ministério da Educação?

Mais uma vez mostra que a sociedade está aí, alerta, se organizando. Foi uma grata surpresa ver a quantidade de atividades promovidas por diferentes instituições, universidades públicas e privadas, grupos de pesquisa e movimentos sociais populares. É claro que isso se relaciona com o próprio contexto que nos encontramos de negação da ciência, de ataques à obra de Paulo Freire. Eu acho que isso mobilizou grupos de todo o país em torno da atualidade do pensamento de Paulo Freire. É realmente lamentável ver que o país que tem Paulo Freire como o seu patrono não tem nenhuma atividade incentivada pelo Governo Federal. Esse era um ano que deveríamos ter editais para fomentar a pesquisa, publicações. Tudo isso que temos feito tem sido com os próprios recursos. Nós, na Faced, por exemplo, organizamos vários círculos dialógicos e todos os pesquisadores vêm gratuitamente. Não temos um real de recurso, porque não tem nenhum apoio. Muitos países estão celebrando o centenário na América Latina, Europa, os Estados Unidos… Portugal mesmo fez um evento imenso celebrando o centenário. Afinal, Paulo Freire é um educador do mundo, mas antes de tudo é um cidadão latino-americano, brasileiro, nordestino e pernambucano.

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