Por que um processo contra Harvard ameaça políticas de ação afirmativa em universidades dos EUA

Universidade de HarvardAção acusa universidade de discriminar estudantes de origem asiática

Um processo em que a Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, uma das mais prestigiosas e seletivas do mundo, é acusada de discriminar candidatos de origem asiática poderá ter impacto profundo não apenas na instituição, mas na maneira como universidades em todo o país consideram a raça dos alunos como um dos fatores em seus sistemas de admissão.

O julgamento, iniciado nesta semana em um tribunal federal em Boston, deve se estender até novembro e vem sendo acompanhado de perto pelos dois lados de um debate que há décadas divide a sociedade americana.

Por um lado, o uso de ações afirmativas – em que as escolas consideram a raça dos candidatos como um entre vários critérios de seleção – é essencial para garantir diversidade nessas instituições. Mas críticos das medidas defendem que a admissão deveria ser baseada apenas em fatores objetivos, como notas, sem qualquer menção a raça.

A ação judicial foi iniciada em 2014 por uma organização chamada Students for Fair Admissions (Estudantes por Admissões Justas, ou SFFA, na sigla em inglês), que representa candidatos de origem asiática rejeitados por Harvard. A identidade desses candidatos não foi divulgada pelo grupo, para evitar que sofram retaliações.

Segundo os autores do processo, Harvard estaria manipulando certos aspectos do sistema de admissão para limitar o número de calouros de origem asiática aceitos a cada ano, e assim manter inalterado o percentual de cada raça em seu corpo de estudantes.

A petição da SFFA afirma que, como candidatos asiáticos costumam se sair melhor que estudantes brancos ou de outras raças em categorias objetivas, como desempenho acadêmico e atividades extracurriculares, a universidade reduz suas notas em critérios subjetivos, como “avaliação pessoal”, “compaixão”, “simpatia” e outros quesitos difíceis de quantificar. Assim, alegam, esses candidatos acabariam perdendo a vaga para alunos brancos, negros e latinos menos qualificados.

A SFFA argumenta que essa prática discriminatória é uma violação dos direitos civis dos estudantes asiáticos, que são penalizados por sua raça, e equivale a um sistema de cotas, o que é proibido nos Estados Unidos. A acusação chega a traçar uma comparação com os esforços da universidade nos anos 1920 para restringir o número de judeus.

“Queremos um processo de admissão racialmente neutro”, disse à BBC News Brasil Manga Anantatmula, uma das diretoras da Asian-American Coalition for Education (Coalizão Asiática-Americana para Educação), grupo formado em 2014 e que apoia os autores da ação.

Defesa nega preconceito

A universidade nega que sua política de admissão seja discriminatória e diz que a raça dos candidatos é apenas um entre vários fatores de uma abordagem “holística”, e nunca é considerada de maneira negativa.

“Nosso processo de admissão não discrimina ninguém (por raça)”, afirma o presidente de Harvard, Lawrence S. Bacow. “Estou confiante de que as evidências apresentadas no julgamento irão estabelecer esse fato.”

Universidade de HarvardDefesa da universidade diz que política de admissão é considerada modelo e necessária para garantir diversidade no campus

A defesa lembra que o sistema de Harvard é considerado modelo no país desde que foi elogiado pela Suprema Corte, em 1978, em uma decisão que proibiu o uso de cotas mas manteve a possibilidade de que universidades considerem raça como um entre vários critérios de admissão, com o objetivo de assegurar um ambiente de diversidade nas instituições de ensino superior.

No primeiro dia de julgamento, o advogado de Harvard, Bill Lee, garantiu que a universidade não adota um sistema de cotas, mas disse que eliminar qualquer consideração sobre raça do processo de seleção resultaria em declínio na diversidade, colocando em risco o que a instituição considera parte fundamental de sua missão.

A universidade também ressalta que mais de 95% dos candidatos costumam ser rejeitados. No último ano, dos 42.749 inscritos, apenas 1.962 conquistaram uma vaga. Desses, 23% eram asiáticos, apesar de o grupo representar apenas 6% da população americana. Outros 15% eram negros e 12%, latinos.

Segundo a defesa, como a maioria dos mais de 40 mil inscritos a cada ano é altamente qualificada academicamente, a universidade é obrigada a considerar outros aspectos para decidir quem é aceito. Além de desempenho acadêmico, são considerados também critérios como atividades extracurriculares, desempenho atlético, recomendação de professores, histórico familiar e as “notas pessoais”.

Mas críticos afirmam que é difícil calcular o real peso da raça dos candidatos no processo de seleção em Harvard, que é envolto em segredo, assim como ocorre em outras instituições de elite.

Ação afirmativa

O advogado de acusação, Adam Mortara, ressaltou ao tribunal que “o futuro da ação afirmativa não está em julgamento”, e sim as práticas de Harvard em relação a candidatos asiáticos. Mas o idealizador da ação e fundador da SFFA é Edward Blum, de 66 anos, ativista conservador que há anos vem lutando para acabar com o uso de preferências raciais em qualquer aspecto da vida pública.

Blum, que é branco, já moveu mais de 20 processos contra uso de ação afirmativa e conseguiu que dois de seus casos chegassem à Suprema Corte (a mais alta instância da Justiça americana). Em 2013, foi vencedor ao contestar partes da lei dos Direitos de Voto de 1965 que exigiam que Estados com histórico de discriminação racial obtivessem permissão federal antes de mudar leis eleitorais.

Em 2016, em ação em nome de uma estudante branca que contestava a consideração de raça no processo de seleção na Universidade do Texas, a decisão foi desfavorável a Blum. Na época, a Suprema Corte confirmou que o sistema da universidade era legal.

Além do processo contra Harvard, a SFFA também está movendo ação contra o uso de raça pela Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, mas ainda não há data para esse julgamento.

As ações afirmativas são herança do movimento de luta por direitos civis dos anos 1960 nos Estados Unidos, mas seu uso é bastante limitado. Na Califórnia e em outros sete Estados, é ilegal considerar raça entre os critérios de admissão em instituições de ensino.

Universidade de HarvardNo último ano, 42.749 pessoas se candidataram a Harvard, mas apenas 1.962 conquistaram uma vaga

Mesmo quando seu uso é permitido, as instituições ainda assim enfrentam dificuldades em atingir as metas de diversidade em sua população estudantil. Nas universidades de elite, calcula-se que negros representem apenas 4% e latinos 11% dos alunos.

Alguns sugerem alternativas, como a consideração de condições socioeconômicos em vez de raça, mas críticos costumam argumentar que universidades que adotam esse tipo de sistema, como na Califórnia, fracassam na tentativa de formar um corpo de estudantes compatível com a diversidade racial do Estado.

Defensores do uso de ação afirmativa ressaltam que um ambiente acadêmico que reflita a diversidade da sociedade é importante para a formação dos estudantes.

Minoria penalizada

Ações anteriores que questionavam na Justiça o uso de raça em instituições de ensino tinham como protagonistas brancos que se diziam prejudicados pela preferência dada a negros ou latinos, grupos minoritários que costumam ser beneficiados por ações afirmativas.

O julgamento atual, no entanto, é diferente ao alegar que esse sistema está na verdade penalizando uma minoria, os asiáticos, em favor tanto de brancos quanto de outros grupos raciais.

A comunidade de origem asiática parece estar dividida sobre o tema. Pesquisas revelam que cerca de dois terços apoiam o uso de ação afirmativa, mas entre alguns grupos, como os americanos de origem chinesa, esse apoio cai para 38%.

Críticos acusam Blum de explorar os estudantes asiáticos para fazer avançar uma agenda que prejudica o interesse de minorias raciais. O ativista costuma ser criticado por buscar ativamente litigantes que se encaixem em suas causas. Desta vez, com a criação da SFFA, ele reuniu americanos de origem asiática, muitos deles de primeira geração e de origem chinesa.

“A SFFA propagou o mito da minoria modelo (comumente associado à comunidade asiática nos Estados Unidos) e usou americanos de origem asiática – que enfrentam estereótipos raciais e discriminação assim como todas as minorias – para ganho político”, disse Dennis Parker, diretor do Programa de Justiça Racial da organização de direitos civis União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), que apoia a universidade no julgamento.

Mas alegações de que Harvard e outras universidades de elite discriminam asiáticos são antigas. Há relatos de estudantes que chegam a esconder sua origem asiática na inscrição para ter mais chance de aprovação.

“Mesmo se for provado que há discriminação contra asiáticos, a solução não é eliminar a consideração de raça do processo de admissão”, disse à BBC News Brasil a advogada Nicole Gon Ochi, da organização de direitos civis Asian Americans Advancing Justice – Los Angeles, fundada em 1983.

“Isso reduziria dramaticamente as oportunidades para milhões de estudantes de cor, inclusive os de origem asiática”, salienta.

A advogada ressalta que este é um grupo muito diverso e que estudantes de origem asiática de baixa renda costumam se sair melhor em programas de admissão que consideram a raça dos candidatos.

Suprema Corte

Na véspera do julgamento, manifestações contra e a favor de Harvard, ambas com a participação de asiáticos, tomaram as ruas de Boston e Cambridge, onde fica o campus da instituição.

Vários alunos e ex-alunos de origem asiática, alguns representados por Ochi, pretendem testemunhar em favor da universidade e ressaltar a importância da diversidade na instituição. Outras universidades de elite também estão apoiando Harvard.

O Departamento de Justiça também está investigando, em processo separado, outras denúncias de discriminação contra Harvard e Yale.

Em julho, o governo do presidente Donald Trump reverteu uma determinação da administração anterior e orientou instituições de ensino a limitar o uso de raça na admissão de alunos.

Observadores afirmam que, seja qual for o resultado do julgamento, é provável que o caso avance para a Suprema Corte, o que poderia colocar em risco o futuro das ações afirmativas no país inteiro, com uma decisão aplicada a todas as universidades, e não apenas Harvard.

Da última vez que a prática foi questionada, em 2016, o juiz Anthony Kennedy se aliou aos liberais da corte e deu o voto decisivo para a manutenção do uso de raça no processo de admissão. Mas Kennedy se aposentou neste ano e, com seu substituto, Brett Kavanaugh, a composição da corte é considerada agora mais conservadora.

A possibilidade agrada aos apoiadores da ação.

“Esse é apenas o começo da nossa luta, temos um longo caminho pela frente”, destaca Anantatmula.

“São necessárias mudanças legislativas para consertar esse sistema.”

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