Dívida trabalhista: prédio da Dois de Julho vai a leilão pela 6ª vez com valor 70% menor

Marcela Villar*
Prédio da Fundação foi penhorado pela Justiça em 2014Prédio da Fundação foi penhorado pela Justiça em 2014 (Arrison Marinho/CORREIO)

Lance mínimo é de R$ 5 milhões

O calendário marca fevereiro de 2022, mas o 13º salário de 2020 e de 2021 até hoje não caíram   na conta dos professores e funcionários da Faculdade e do Colégio 2 de Julho. Por esse e outros motivos, a Fundação 2 de Julho  acumula 160 processos judiciais,  somando uma dívida trabalhista de quase R$ 18 milhões, segundo a última avaliação do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (TRT5), de junho de 2018. Para arcar com os débitos, parte do imóvel onde funciona a instituição, no bairro da Garcia, em Salvador, irá a leilão, pela sexta vez, nesta quarta-feira (9).

O lance mínimo, de R$ R$ 5.079.500, paga 28% da dívida acumulada nos processos. Esse valor é 70% menor que o do leilão de 2018, quando a primeira oferta era de R$ 17,2 milhões. Segundo o site da Hasta Leilões, ferramenta especializada na organização de leilões judiciais e por onde o imóvel está anunciado, a poligonal que será vendida está avaliada em mais de R$ 10 milhões. Desde 2014 que os bens da Fundação 2 de Julho estão penhorados pela Justiça do Trabalho e, desde 2015, o imóvel tenta ser vendido por leilões em hasta pública.

O imóvel tem grande importância histórica – é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1938. Ali morou o governador da província da Bahia e último vice-rei do Brasil, entre os anos de 1810 e 1818, o oitavo conde dos Arcos, Marcos de Noronha e Brito, segundo o arquiteto, historiador e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (Ufba). O prédio é inclusive conhecido pelo nome do conde: Solar, Palácio ou Casa do Conde dos Arcos.

Poligonal 2 (em amarelo) é a área do imóvel da Fundação que será leiloada, no dia 22 de setembro. Reprodução/HastaPública

Ao que tudo indica, pelo número na porta, o edifício foi construído em 1781. De acordo com Senna, a fachada é pombalina. Outro diferencial do prédio são os azulejos nobres, procedentes da Fábrica do Rato, de Portugal, que datam do século XIX. Eles são “marmoreados” em azul e amarelo, por grinaldas. A área total do terreno onde está o imóvel é de 6.155,14 m² e a área construída de 2.689 m². São três prédios que a compõem, com biblioteca, auditório, cantina, 6 banheiros e 31 salas.

Importância histórica
O historiador diz que a casa é um raro exemplar de seu gênero em Salvador. “Essa casa tem uma característica muito particular e pertenceu ao oitavo Conde dos Arcos, que foi, sem dúvida, o governador mais impactante da Bahia do século XIX. Ele fundou a Associação Comercial da Bahia, inaugurou o Passeio Público, o Teatro São João e fez grandes reformas no comércio”, conta Senna.

Para ele, a estrutura do imóvel é única. “Ela era uma casa de zona rural, porque Salvador, na época, estava restrita ao Centro Histórico. Então era uma casa típica do campo, em grande terreno. Ao contrário das casas civis, que tinham a escadaria na parte interna, ela tem a escadaria na parte externa, que não era comum, a não ser em residências públicas. Por isso, merece ser conservado como monumento nacional”, defende o arquiteto.

Ainda de acordo com Chico Senna, foi em 1935 que o imóvel passou a ser da Fundação 2 de Julho, quando foi adquirido pela Igreja Presbiteriana da América do Norte. Quem quiser fazer qualquer alteração no Solar Conde dos Arcos, terá que apresentar projeto, pedir autorização e ter a obra fiscalizada pelo Iphan.

Para o consultor imobiliário e diretor do Conselho Regional de Corretores de Imóveis da Bahia (Creci-BA), José Alberto Vasconcellos, cada metro quadrado de área construída e terreno vale R$ 4 mil. Ou seja, a poligonal a ser leiloada deveria custar, no mínimo, R$ 24,6 milhões o terreno e R$ 10,7 milhões o imóvel.

Vítimas
Uma das 160 ações judiciais contra a Fundação 2 de Julho pertence à comunicóloga Queila Vaz. Ela trabalhou na empresa entre junho de 2019 e julho de 2020, quando foi demitida. Queila saiu sem receber os salários de março a junho de 2020, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), as férias, o 13º salário e a indenização por aviso prévio.

A empresa deve a ela R$ 25 mil. “Assinei a demissão em agosto [de 2020] e o RH só me ligou em novembro para fazer acordo. É uma total falta de respeito com o trabalhador, porque cheguei a receber o salário picado três vezes no mês, eles só pagavam em prestação e atrasado. Quando me demitiram, não pagaram nada, saí com uma mão na frente e outra atrás. Só consegui sobreviver à pandemia porque moro com meus pais. Se não, estava passando aperto”, conta Queila.

Uma atual professora da casa, que pediu anonimato, diz que os salários continuam a atrasar. Na última semana, ela recebeu 50% do contracheque de abril. “Chegou num ponto que nem sei mais quanto recebo, porque é muito variável. Tem meses que eles pagam o mês todo, tem meses que é só metade, ou só um percentual”, explica a professora.

Assim como Queila, ela teve a renda reduzida com a pandemia da covid-19. “Trabalho em outro lugar, essa é minha sorte e o que tem me mantido. Meu marido também ajuda, porque dividimos as contas. Mas, minha renda reduziu entre 30 e 40% com a pandemia. Com a inflação em alta, nada ajuda”, desabafa a professora.

Sindicato já moveu mais de 800 ações contra a Fundação
O Sindicato dos Professores no Estado da Bahia (Sinpro-BA), junto a outras entidades, já moveu mais de 800 ações na área do trabalho contra a Fundação.

“O 2 de Julho tem um acúmulo grande de questões judiciais, há mais de 10 anos. Existem uma série de descumprimentos de legislação, que ensejaram muitos pedidos de rescisão indireta, com os professores depois indo à Justiça para reparar os direitos violados, que vão desde não pagamento de verbas rescisórias, do FGTS, INSS, de itens previstos na convenção coletiva da educação básica”, confirma Allysson Mustafa, coordenador do Sinpro-BA.

O coordenador pontua que se a área for vendida neste leilão, será lucro para os trabalhadores e ex-funcionários. “A Fundação ofereceu como garantia parte do imóvel onde ficam a faculdade e o colégio, que já foi a leilão outras tantas vezes. Há uma dificuldade ali porque parte dela é tombada e as empresas não querem comprar. Seja pelo valor de mercado ou pelo lance inicial, não será suficiente para finalizar o processo. Porém, será um avanço significativo”, avalia Mustafa.

Fundação 2 de Julho diz passar por dificuldades financeiras
Em nota oficial, a direção da Fundação 2 de Julho disse que a situação financeira piorou com a pandemia da covid-19. “Desde março de 2020, a Fundação 2 de Julho vem ampliando os esforços para manter suas atividades de educação superior e infantil, a despeito da evasão de alunos e as dificuldades financeiras resultantes de gestões anteriores. Se antes, as dificuldades estavam mantidas sob algum controle, com a pandemia, essa situação ficou muito pior”, afirma

A instituição reconheceu que ainda não encontrou uma maneira de liquidar a dívida nem de estar em dia com o pagamento da folha dos colaboradores, mas diz buscar soluções. Ela descartou a possibilidade de encerrar as atividades. “A direção da Instituição tem sofrido duros golpes desferidos por pessoas de má fé, que envenenam ouvidos da comunidade local e acadêmica com notícias alarmistas de um suposto encerramento de atividades ou de uma liquidação de patrimônio. A Fundação está viva e buscando as soluções possíveis para superar esse momento de crise econômica”, reforça.

A Fundação menciona ainda que é um dos momentos mais difíceis do grupo. “As dores de cada colaborador nos cala fundo porque a Fundação não é feita de terrenos, prédios históricos, ela é feita de pessoas! Estamos enfrentando um dos momentos mais desafiadores da história da Instituição. Mas continuaremos honrando as tradições de luta que sempre caracterizou a 2 de Julho desde a sua fundação”, conclui.

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