A luta para tirar mulheres brasileiras da invisibilidade histórica

Pesquisadores, em sua maioria mulheres, vêm estudando o papel feminino na história do Brasil. O novo livro “Sobreviventes e Guerreiras” é o mais recente esforço para dar voz a essas vidas esquecidas.

    
Maria LeopoldinaHistoriadora destaca o papel de mulheres na Independência, recuperando cartas escritas para a imperatriz Leopoldina

Nos livros tradicionais de história, a maior parte dos heróis são homens. Às mulheres, em geral, são relegados papéis coadjuvantes. Graças a um esforço de pesquisadores – na maioria, aliás, mulheres –, a força feminina na formação brasileira vem sendo descoberta, estudada e escrita. O resultado está em trabalhos acadêmicos e em livros, como o Sobreviventes e Guerreiras: Uma Breve História da Mulher no Brasil de 1500 a 2000, que a historiadora e escritora Mary Del Priore lança nesta sexta-feira (25/09).

Del Priore dá voz para as mulheres que acabaram invisibilizadas pela história: indígenas, afrodescendentes, caboclas que trabalhavam no campo, empregadas, amas de leite, operárias, artistas. Também mostra a resistência das feministas e das integrantes do movimento LGBT.

“Em vez de pensar sobre a violência contra a mulher brasileira, decidi [neste livro] refletir sobre as formas que a mulher brasileira engendrou, criou e encontrou para resistir à violência do patriarcalismo”, diz a autora à DW Brasil. “Quis fugir do vitimismo. Contei a história de uma mulher que se levanta e diz não, que diz eu quero, eu mando, eu faço.”

A historiadora considera que o século 19 foi um marco para a mulher brasileira: através do letramento, muitas puderam passar da vida privada para a vida pública. No livro, ela destaca o papel de mulheres no processo de Independência do Brasil, recuperando duas cartas – uma assinada por 186 mulheres baianas e outra, por 51 paulistas – escritas para a imperatriz Leopoldina (1797-1826), “solicitando que dom Pedro ficasse no país e fizesse a emancipação”.

Ela destaca também o papel social da educadora e escritora Nísia Floresta (1810-1885), uma pioneira do feminismo. “Desde 1831 ela começou a publicar em jornais, tratando da importância da educação feminina, alertando sobre casamentos forçado”, comenta.

Em outro esforço semelhante de ressaltar o papel que mulheres tiveram ao longo da história, o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti lançou, há dois anos, o livro Mulheres do Brasil: A História Não Contada, em que recuperou trajetórias de 200 personagens femininas invisibilizadas pelo tempo. Seu interesse pelo tema surgiu depois de ter publicado duas biografias de mulheres: da Marquesa de Santos e da imperatriz Leopoldina.

“Vi o quanto de suas vidas foi esquecido e encoberto ao longo da história e comecei a colecionar outros casos em que as passagens de outras mulheres também haviam sido apagadas ou modificadas para caber dentro de uma narrativa que se julgava correta”, explica.

Uma das maiores surpresas de sua pesquisa, conta, foi se deparar com o caso das vivandeiras durante a Guerra do Paraguai (1864-1870). Eram mulheres que acompanhavam os homens no front. “Iam de amantes a mães, irmãs e esposas. E, muitas vezes, acabaram também pegando em armas”, relata.

História patriarcal e machista

A historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP), acredita que a mulher não está bem representada nos livros escolares de história por conta do fato de que, no Brasil, o gênero só adquiriu direitos políticos em 1932.

“A história dos livros está muito ligada à história da política, dos movimentos políticos e das pessoas que fizeram parte desse sistema”, analisa. “Isso não significa de maneira alguma que as mulheres não estivessem naquele espaço, mas sim que foram esquecidas porque não tiveram atuação política significativa, ou seja, não tiveram participação naquilo que passou-se a considerar ‘história de verdade’.”

A educadora e escritora Nísia FlorestaA educadora e escritora Nísia Floresta (1810-1885) foi uma pioneira do feminismo

Ela ressalta, contudo, que há registros anteriores a isso que demonstram a atuação de mulheres em movimentos de resistência. É o caso de Luísa Mahin, personagem que viveu no século 19 e sobre quem pouco se sabe, mãe do abolicionista Luiz Gama (1830-1882). Acredita-se que ela tenha participado ativamente de levantes de escravos ocorridos na Bahia, como a Revolta dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-1838). “As mulheres são invisibilizadas porque acabaram silenciadas, há todo um processo machista e patriarcal”, pontua Rosin.

“Entendo que a historiografia oficial, produzida por homens e pautada em eventos e personalidades políticas, militares ou religiosas, trouxe para as narrativas históricas esse cenário de exclusão da mulher ou de destaque de algumas exceções, o que apenas confirma a regra de exclusão, de invisibilidade”, comenta à reportagem a historiadora Vânia Carneiro de Carvalho, professora do Museu Paulista da Universidade de São Paulo e autora do livro Gênero e Artefato: O Sistema Doméstico na Perspectiva da Cultura Material.

“A história do Brasil foi contada durante séculos pelos homens, com um viés totalmente patriarcal e machista”, acrescenta Rezzutti. “Uma mulher na política, por exemplo, era impensável até meados do século passado, como então explicar dona Leopoldina articulando a nossa Independência, por exemplo? Os papéis foram editados e embalados para consumo de uma sociedade que era moldada, majoritariamente, pelos homens. Contar a história da forma como eles queriam era só mais uma forma de controle sobre as mulheres.”

Futuro promissor

Del Priore aponta que a segunda onda feminista chegou ao Brasil depois do advento da pílula anticoncepcional, nos anos 1960, e que essa militância acabou capitaneada, sobretudo, por universitárias.

Tal contexto fez com que ocorressem cada vez mais pesquisas sobre o papel da mulher na sociedade no meio acadêmico. Infelizmente, concordam os pesquisadores ouvidos pela reportagem, a produção ainda é pouco lida pelo público geral.

Mas as perspectivas são otimistas. “A geração atual de pesquisadoras está conseguindo cravar o lugar social dessas mulheres pioneiras que foram invisibilizadas. Fazer esse trabalho é, para nós, como resgatar, pegar a mão de uma amiga”, afirma Rosin. “É um trabalho lento, mas o futuro é promissor – pelo menos quero acreditar nisso.”

Del Priore vê atualmente uma transformação radical na família brasileira, com novos papéis para o homem. E, em seu livro, a historiadora reflete sobre como isso é bom – e não apenas para a mulher. “Termino [a obra] lembrando que sociedades machistas e patriarcais são tão cruéis com os homens como com as mulheres, porque deles é exigido não chorar, ter performances econômica e sexual imbatíveis, enfim, são tantas as exigências em torno do homem que ele acaba prisioneiro da própria armadilha que criou para a mulher”, conclui. “O pano de fundo do livro é a resistência das mulheres. E as rachaduras do tradicional patriarcado brasileiro.”

AS HEROÍNAS DO BRASIL

Anita Garibaldi

Chamada de “heroína dos dois mundos”, a catarinense Ana Maria de Jesus Ribeiro, mais conhecida como Anita Garibaldi (1824-1849), lutou pelos ideais republicanos ao lado do marido, Giuseppe Garibaldi, tanto no Brasil quanto na Itália, respectivamente, na Guerra dos Farrapos e no movimento pela unificação italiana. Desde 2012, seu nome está inserido no “Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria”.

Bárbara de Alencar

O livro no Panteão da Pátria em Brasília também inclui Bárbara de Alencar (1760-1832). A avó do escritor José de Alencar participou da Confederação do Equador, impulsionando o ideal republicano no Ceará no inicio do século 19. Ainda hoje se pode visitar a masmorra em que foi presa e torturada na fortaleza que dá nome à capital alencarina. Ela é considerada a primeira presa política do Brasil.

Ana Néri

Em 2009, a baiana Ana Justina Ferreira Nery (1814-1880) iniciou a lista das Heroínas da Pátria. Depois de viúva, ela partiu com seus três filhos para frente de batalha na Guerra do Paraguai, onde cuidou de feridos, organizou hospitais de campanha e montou uma enfermaria às próprias custas na ocupada capital paraguaia. Ganhou a fama de “Mãe dos Brasileiros” e primeira enfermeira do Brasil.

Jovita Feitosa

Aos 17 anos, a cearense Antônia Alves Feitosa (1848-1867), conhecida como “Jovita”, travestiu-se de homem para lutar na Guerra do Paraguai. Mesmo com sua identidade desmascarada, foi aceita no corpo de voluntários e ganhou fama nacional, mas foi impedida de ir ao campo de batalha. Foi incluída no Livro das Heroínas da Pátria em 2017 e hoje dá nome a uma importante avenida da capital do seu estado.

Maria Quitéria

Como “Soldado Medeiros”, a baiana Maria Quitéria de Jesus Medeiros (1792-1853) participou ativamente nas lutas pela independência do Brasil em 1822. Sua habilidade com armas e disciplina militar fizeram com que ela permanecesse no exército mesmo depois de sua identidade ter sido revelada. Foi a primeira mulher a entrar em combate pelo Brasil e condecorada pelo próprio imperador Dom Pedro 1°.

Joana Angélica

Se Maria Quitéria foi a guerreira das lutas pela independência na Bahia, a freira Joana Angélica de Jesus (1761 – 1822) é considerada a mártir desse movimento. No ano de sua morte, os saques praticados pelas tropas portuguesas em Salvador também atingiram o Convento da Lapa, no qual era abadessa. Ao tentar impedir que entrassem no convento, Joana Angélica foi esfaqueada por um dos soldados.

Maria Felipa de Oliveira

A luta pela independência na Bahia teve a participação de outra importante personagem: Maria Felipa de Oliveira. A marisqueira e pescadora da ilha de Itaparica liderou um grupo de mulheres e homens de diferentes classes e etnias, combatendo tropas portuguesas e incendiando navios que se preparavam para atacar Salvador. Ela é conhecida como a Heroína Negra da Independência.

Clara Camarão

No século 17, a índia potiguar Clara Camarão participou junto ao marido, Felipe Camarão, também um Herói da Pátria, das lutas de resistência contra as invasões holandesas no Nordeste brasileiro. Para os historiadores, embora pouco se saiba sobre a vida da guerreira potiguar, seu reconhecimento como Heroína da Pátria dá destaque a personagens indígenas pouco prestigiados na história do Brasil.

Zuzu Angel

Zuzu Angel (1921-1976) é a única mulher da recente história brasileira a ser reconhecida como Heroína da Pátria. Segundo a jornalista Hildegard Angel, o nome de sua mãe está junto a todos aqueles que sofreram sob a ditadura. Após a morte de seu filho pelo regime em 1971, a estilista passou a denunciar as arbitrariedades dos militares. Morreu em acidente de carro atribuído aos agentes de repressão.

Heroínas desconhecidas

Em 2019, a Mangueira se tornou campeã do Carnaval carioca com enredo que fala dos heróis e heroínas desconhecidas do Brasil. Uma delas foi Esperança Garcia, reconhecida simbolicamente pela OAB como a primeira advogada do Piauí. Em 1770, ela escreveu uma petição ao presidente da província, denunciando maus- tratos e abusos sofridos por ela e seu filho na fazenda em que eram escravos.

Marias, Mahins, Marielles, malês

Além de Dandara dos Palmares, defensora da liberdade dos negros ao lado do marido, Zumbi, foram lembradas Luísa Mahin, que articulou o levante de escravos na Bahia conhecido como Revolta dos Malês; e Marielle Franco, política e ativista assassinada em 2018 no Rio de Janeiro. “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”, lembra o samba-enredo da escola vencedora.

Autoria: Carlos Albuquerque

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