Análise da Municipalização da Carga Horária da Equipe de Saúde da Família em Juazeiro-BA: Implicações da Lei 2.739/2017

Por Graça Carvalho -Administradora Sanitarista

Este documento apresenta uma análise crítica da Lei Municipal 2.739/2017 de Juazeiro-BA, que estabelece a redução da carga horária de dedicação às atividades assistenciais da Equipe de Saúde da Família para 32 horas semanais, reservando 8 horas para formação em Educação Permanente. Serão examinadas as possíveis incompatibilidades com as diretrizes do Programa Nacional de Saúde da Família, o impacto na produtividade dos serviços e a comparação com outras normatizações federais, oferecendo subsídios para uma tomada de decisão baseada em evidências aos gestores de saúde e legisladores municipais.

Contextualização da Lei Municipal 2.739/2017

A Lei Municipal 2.739/2017 do município de Juazeiro, Bahia, representa uma iniciativa local de reorganização do processo de trabalho das Equipes de Saúde da Família (ESF), estabelecendo uma divisão específica da jornada de trabalho dos profissionais que atuam na Atenção Básica. A legislação determina a dedicação mínima de 32 horas semanais para atividades assistenciais diretas, reservando as 8 horas restantes da jornada padrão de 40 horas exclusivamente para formação em Educação Permanente em Saúde.

Esta proposição legislativa apresenta-se como uma iniciativa de valorização da formação continuada dos profissionais, porém suscita questionamentos quanto à sua compatibilidade com as diretrizes nacionais estabelecidas para o funcionamento do Programa Saúde da Família (PSF), atual Estratégia Saúde da Família (ESF).

Pontos Principais da Lei 2.739/2017

  • Estabelece dedicação mínima de 32 horas semanais para atividades assistenciais
  • Determina 8 horas semanais exclusivas para formação em Educação Permanente
  • Aplica-se a todos os profissionais da Atenção Básica do município
  • Propõe-se a seguir “padrões essenciais e aplicados” (sem definição clara na lei)

Contexto da Implantação

  • Município de Juazeiro localizado no norte da Bahia, com aproximadamente 220 mil habitantes
  • Rede de atenção primária estruturada com múltiplas equipes de Saúde da Família
  • Município com gestão plena do sistema municipal de saúde
  • Demanda assistencial significativa para as equipes de saúde da família

A lei em questão representa uma iniciativa municipal que, embora aparentemente bem-intencionada no sentido de valorizar a formação profissional continuada, precisa ser analisada quanto ao seu impacto potencial sobre a oferta de serviços assistenciais e sua compatibilidade com as normativas federais que orientam a Estratégia Saúde da Família. É fundamental considerar que qualquer reorganização dos processos de trabalho na Atenção Básica deve buscar o equilíbrio entre a necessidade de formação profissional e a garantia do acesso da população aos serviços de saúde.

Diretrizes Nacionais da Estratégia Saúde da Família e a Lei Municipal

Normativas Federais da ESF

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), atualizada periodicamente pelo Ministério da Saúde, estabelece parâmetros de funcionamento para as Equipes de Saúde da Família em todo o território nacional. De acordo com as diretrizes federais, o profissional vinculado à ESF deve cumprir uma jornada de 40 horas semanais, configurando-se como um trabalho em regime de dedicação integral.

Dentro desta jornada, a PNAB já prevê a existência de atividades estruturadas que vão além do atendimento clínico direto, incluindo:

  • Visitas domiciliares programadas
  • Reuniões de equipe para discussão de casos
  • Atividades de educação em saúde coletiva
  • Planejamento das ações da equipe
  • Momentos destinados à atualização e formação continuada

Divergências e Sobreposições

Ao determinar explicitamente 8 horas semanais exclusivas para formação em Educação Permanente, a Lei 2.739/2017 de Juazeiro-BA parece criar uma separação mais rígida entre o tempo assistencial e o tempo formativo do que o previsto nas diretrizes nacionais, que propõem uma integração mais orgânica destas atividades no cotidiano das equipes.

Esta separação estrita pode representar uma interpretação local que reconfigura o modelo proposto nacionalmente, o que levanta questões sobre:

  • Compatibilidade com os critérios de financiamento federal
  • Impacto no cumprimento dos indicadores de produtividade
  • Possível sobreposição com as atividades já previstas nas diretrizes nacionais
  • Autonomia municipal versus alinhamento às políticas nacionais

A educação permanente, embora essencial para a qualidade da atenção à saúde, já está contemplada na organização do processo de trabalho das equipes da ESF, não necessariamente demandando uma separação tão definida da carga horária assistencial.

Um questionamento fundamental refere-se à possível redundância da lei municipal: se as diretrizes nacionais já preveem momentos para estudo de caso, visitas domiciliares e outras atividades formativas, seria realmente necessário estabelecer um período adicional e específico para formação? A legislação municipal não estaria, de fato, reduzindo o tempo disponível para atividades assistenciais sem uma justificativa técnica suficiente?

Cabe ressaltar que a autonomia municipal para legislar sobre a organização dos serviços de saúde locais é garantida constitucionalmente, desde que não contrarie normativas federais que condicionam o financiamento destes serviços. Portanto, a análise da adequação desta lei passa necessariamente pela verificação de seu impacto na conformidade do município com os critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde para o repasse de recursos destinados à Atenção Básica.

Esta tensão entre a autonomia municipal e a necessidade de alinhamento às diretrizes nacionais configura-se como um elemento central para a avaliação da pertinência e legalidade da Lei 2.739/2017, exigindo uma análise cuidadosa que considere tanto os aspectos normativos quanto os impactos práticos sobre a organização dos serviços de saúde no município.

Impacto na Produtividade e no Acesso aos Serviços de Saúde

Uma das questões mais críticas relacionadas à Lei 2.739/2017 refere-se ao seu potencial impacto sobre a produtividade dos serviços de saúde e, consequentemente, sobre o acesso da população ao atendimento na Atenção Básica. Segundo dados apresentados na contextualização do problema, a redução da carga horária assistencial poderia resultar em uma queda significativa no volume de consultas realizadas, de 36 mil para aproximadamente 16 mil atendimentos mensais, representando uma redução de cerca de 55% na capacidade de oferta de serviços.

Esta redução expressiva na oferta de consultas apresenta implicações sérias para a assistência à saúde da população juazeirense, podendo resultar em:

Obs.: 36.000 consultas é uma estimativa feita frente ao número de profissionais contratados atualmente.

 

Aumento do Tempo de Espera

A diminuição na disponibilidade de consultas pode resultar em filas de espera mais longas, com potencial deterioração do acesso oportuno aos serviços de saúde.

Sobrecarga de Outros Níveis de Atenção

A dificuldade de acesso na Atenção Básica frequentemente leva a um aumento da procura por serviços de urgência e emergência, mesmo para condições que poderiam ser resolvidas na Atenção Primária.

Impacto em Indicadores de Saúde

A redução no acompanhamento regular de condições crônicas e ações preventivas pode resultar no agravamento de indicadores de saúde da população a médio e longo prazo.

Questionamentos sobre Eficiência do Recurso Público

A manutenção do mesmo custo para uma produção significativamente menor pode ser questionada sob a ótica da eficiência e economicidade na gestão pública.

É fundamental considerar que, embora a educação permanente seja reconhecidamente um componente essencial para a qualificação da assistência à saúde, seu impacto positivo só se concretiza quando resulta em melhorias efetivas no cuidado ofertado à população. Se a estratégia adotada para viabilizar a formação continuada resulta em uma redução drástica da capacidade assistencial, é questionável se o benefício pretendido compensará o prejuízo imediato no acesso.

A análise da proporcionalidade entre o benefício esperado da formação continuada intensificada e o impacto negativo da redução assistencial é essencial para avaliar a adequação da lei municipal.

Cabe ainda questionar se não haveria alternativas menos impactantes para viabilizar a educação permanente, como a reorganização das atividades já previstas nas diretrizes nacionais, o uso de metodologias de ensino-aprendizagem baseadas na prática (que integram formação e assistência), ou mesmo o escalonamento das equipes de modo a garantir a continuidade assistencial durante os períodos formativos.

A perspectiva dos usuários do sistema de saúde também precisa ser considerada nesta equação, uma vez que o direito constitucional à saúde pressupõe o acesso aos serviços necessários em tempo oportuno. Uma redução significativa na oferta assistencial, sem mecanismos compensatórios que garantam a manutenção do acesso, pode configurar-se como um retrocesso na efetivação deste direito para a população juazeirense.

Comparação com Outras Normatizações e Experiências

Para uma análise mais abrangente da Lei 2.739/2017 de Juazeiro-BA, é pertinente estabelecer comparações com outras normatizações, tanto em nível federal quanto em experiências municipais similares, que abordam a questão da distribuição da carga horária e da educação permanente nas equipes de Atenção Básica.

Portaria MS/GM nº 2.436/2017 (PNAB)

A Política Nacional de Atenção Básica estabelece jornada de 40 horas semanais para os profissionais da ESF, com integração orgânica entre atividades assistenciais e formativas no cotidiano das equipes, sem determinação específica de carga horária exclusiva para formação.

Programas Federais de Educação Permanente

Iniciativas como o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) e a Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS) oferecem formação complementar sem redução formal da carga horária assistencial, utilizando metodologias que integram aprendizagem e prática profissional.

Experiências Municipais Similares

Outros municípios brasileiros têm adotado estratégias alternativas, como a realização de jornadas mensais de atualização, o uso de telessaúde durante o expediente para discussão de casos, ou a implementação de programas de tutoria clínica que mantêm a assistência enquanto qualificam a prática.

Aspectos Diferenciais da Lei Municipal

  • Estabelece formalmente um percentual significativo da carga horária (20%) exclusivamente para formação
  • Aparenta criar uma separação mais estrita entre momentos assistenciais e formativos
  • Não especifica como será organizada esta formação em termos de metodologia e conteúdos
  • Não detalha mecanismos para minimizar o impacto assistencial desta redução

Questões Críticas para Reflexão

  • A formação separada da prática assistencial é mais efetiva que a aprendizagem integrada à prática?
  • O município possui estrutura pedagógica adequada para garantir a qualidade da formação oferecida?
  • Existem mecanismos para avaliar o impacto da formação na qualidade do cuidado oferecido?
  • Como a redução assistencial será compensada para manter o acesso da população?

Potenciais Alternativas

  • Reorganização da agenda com períodos específicos para formação sem redução total
  • Implementação de modelos de supervisão clínica durante o atendimento
  • Utilização de tecnologias de educação a distância em horários específicos
  • Escalonamento das equipes para garantir continuidade assistencial

É importante ressaltar que, embora a autonomia municipal seja um princípio importante do Sistema Único de Saúde, as escolhas locais devem ser analisadas à luz das evidências disponíveis sobre sua efetividade e eficiência. No caso específico da Lei 2.739/2017, caberia um questionamento aprofundado sobre se a abordagem adotada representa a melhor alternativa para conciliar a necessidade de formação permanente com a manutenção da capacidade assistencial essencial para garantir o direito à saúde da população de Juazeiro.

A experiência acumulada em outras localidades sugere que abordagens mais integradas e flexíveis, que não estabelecem uma dicotomia tão marcada entre assistência e formação, podem oferecer resultados positivos sem o comprometimento significativo da oferta de serviços. Esta reflexão torna-se particularmente relevante considerando o impacto potencial na redução de 55% na capacidade de atendimento mencionada anteriormente.

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