Como a 2ª Guerra Mundial transformou o treinamento militar para deixar os soldados ‘menos humanos’
Depois da Segunda Guerra Mundial – que começou há exatos 80 anos e terminou em 1945, com um saldo de mais de 70 milhões de mortes como o mais sangrento conflito da história –, as Forças Armadas dos EUA chegaram a uma conclusão surpreendente: a matança não havia sido suficiente.
Ou melhor dizendo: um número insuficiente de soldados havia participado da matança.
A polêmica (e mais tarde contestada) média calculada na época era de que, em um batalhão com dez homens, menos de três haviam disparado sua arma em combate nos conflito. Essa média independia de sua experiência ou do tamanho da ameaça inimiga a suas vidas.
Foi o que escreveu o militar e historiador Brigadeiro Samuel Lyman Atwood Marshall, mais conhecido como S.L.A. Marshall, em diversos artigos em periódicos militares, que mais tarde se tornariam seu livro Men Against Fire (Homens contra o Fogo, em tradução livre).
Seu trabalho foi duramente criticado desde então – a ponto de ser acusado por muitos de fraudulento –, mas à época ele revolucionou o treinamento nas Forças Armadas americanas.
Índices
“Um comandante de infantaria será bem aconselhado a acreditar que, quando enfrentar o inimigo, não mais que um quarto de seus homens fará qualquer disparo”, escreveu Marshall.
“Essa estimativa de 25%”, ele afirmou, “se mantém até mesmo para soldados bem treinados e com experimentados. O que significa que 75% não vai disparar ou não vai persistir em disparar contra o inimigo e seu trabalho. Esses homens podem estar sob perigo, mas não vão disparar”, escreveu.
Posteriormente, Marshall revisaria essa porcentagem de 75% para 85% em média.
Por que os soldados americanos destacados ao combate na Europa e no Pacífico seriam, segundo as estimativas de Marshall, tão relutantes em disparar suas armas, mesmo quando diante de grande perigo pessoal?
Marshall atribuiu isso a duas razões: afirmou que a maioria sempre tende a deixar que uma minoria faça a maior parte do trabalho e que a civilização havia dado aos americanos um “medo de agressão”, que os impedia de combater.
Soldados deveriam ser treinados para disparar instintivamente em combate, sem pensar ou dar espaço para uma resposta emocional, defendia ele.
Sua conclusão que de o americano típico era inerentemente pacífico levou a técnicas projetadas para tornar a matança instintiva e drenar a compaixão humana de dentro do soldado.
O conhecido historiador militar britânico John Keegan acreditava que “o propósito final de Marshall com seus escritos não era meramente descrever e analisar (…), mas sim persuadir o Exército americano que estava lutando suas guerras de modo errado”.
“Seus argumentos eram eficientes, ele tinha a incomum experiência para um historiador de ver sua mensagem não apenas aceita, mas transformada em prática”, agregou Keegan.
O próprio Marshall argumentava que, como resultado de suas pesquisas, o Exército havia respondido efetivamente e o “índice de disparos” havia aumentado.
Ele prosseguiu com seu trabalho na Guerra da Coreia (1950-1953) e reportou que, ali, o índice de soldados que disparavam subira para 55%.
Na Guerra do Vietnã (1954-75), um estudo identificou um aumento ainda maior: de que 90% dos soldados disparavam suas armas contra inimigos.
Metodologia
Marshall foi considerado pioneiro no que seria cunhado de “entrevista de pelotões após combate”.
Ele visitava combatentes nas linhas de batalha – alega ter conversado com mais de 400 pelotões assim – logo após os enfrentamentos.
Os soldados descreviam o que eles e seus companheiros haviam feito durante o combate, sob condição de anonimato, e Marshall tomava notas – críticos alegam, porém, que muito poucas dessas anotações foram encontradas.
Alegam também que Marshall nunca entrevistava soldados feridos em combate e não levava em conta os que haviam sido mortos. Críticos afirmam que suas estatísticas são impossíveis de serem medidas – e confirmadas.
Mas foi a partir delas que ele construiu sua teoria, de que a vasta maioria dos soldados americanos, em combate contra alemães e japoneses, tinha medo de disparar contra o inimigo. Ele argumentava que os soldados não tinham medo de morrer, mas de matar.
E encontrou ouvidos receptivos a essas teorias entre os generais que comandavam a política militar em Washington.
Técnicas de treinamento
O treinamento inicial para atiradores americanos costumava seguir o modelo de tiro ao alvo, o que tinha poucas semelhanças com o ambiente real de guerra – e a percepção era de que não os preparava para disparar contra pessoas reais.
Então, depois da Segunda Guerra Mundial, os militares começaram a usar alvos no formato de silhuetas, na expectativa de ajudar os soldados a reduzir seu medo de combate.
Os alvos “apareciam” do nada a diferentes distâncias, e os atiradores tinham de disparar rapidamente, para estimular uma resposta instintiva.
À época da Guerra do Vietnã, enfrentamento cara a cara era cada vez mais raro, mas os soldados continuavam a treinar o uso da baioneta, para estimular sua agressividade contra os inimigos – mesmo que esse armamento não fosse mais usado no campo de batalha.
Esse tipo de prática visava tornar o indivíduo mais insensível a matar.
“As ideias dele (Marshall) pareciam pegar e depois se esvaírem. Mas, na verdade, as observações e sugestões de Marshall levaram a muitos avanços”, escreveu o major F.D.G. Williams, do Comando de Treinamento e Doutrina do Exército dos EUA.
Controvérsia
Mas nem todo o establishment militar americano apoiava o trabalho de Marshall, cuja reputação acabaria severamente deteriorada.
Além de haver questionamentos a suas anotações sobre a linha de batalha, muitos soldados entrevistados por ele afirmaram que ele nunca perguntou nada a eles a respeito de quantas vezes eles tinham disparado suas armas.
Para completar, Marshall nunca apresentou publicamente nenhuma análise estatística a respeito de como havia calculado suas polêmicas porcentagens.
Segundo o escritor canadense Robert Engen, “existe uma possibilidade real de que a famosa porcentagem de disparos tenha sido inventada com base em noções preconcebidas de Marshall sobre o combate. (…) De todo seu trabalho histórico – e ele é vasto –, Marshall era um homem que sofria de miopia acadêmica e via exatamente o que queria ver”.
Mas, o que talvez seja mais importante, algumas de suas outras declarações – ele chegou a dizer que havia liderado homens em combate na Primeira Guerra Mundial e fora o mais jovem oficial da força Expedicionária Americana – eram totalmente falsas.
Ele só foi aceito como soldado em 1919 (no ano seguinte ao fim da Primeira Guerra Mundial) e sua participação militar na Europa foi restrita a acompanhar soldados combatentes em sua jornada de volta para casa.
Suas declarações também causavam irritação entre veteranos de guerra, que sentiam danos a sua reputação pelas conclusões de Marshall a respeito de seu comportamento em batalha.
A despeito disso, as porcentagens de 15% e 20% inicialmente levantadas por Marshall continuam sendo citadas por fontes diversas, mesmo tendo sido amplamente questionadas.
Mas seu legado, por sua vez, é indiscutível: ajudou a transformar soldados ao redor do mundo em máquinas muito mais mortíferas do que eram antes.