Léon Denis, escritor espírita, sucessor de Kardec na liderança do espiritismo francês, escreveu páginas muito poéticas sobre a necessidade de elevarmos o pensamento, para estarmos em comunhão com o divino, com nós mesmos, com a natureza. E para isso, dava um conselho: “sede sóbrios de jornais!”. Imagine o que ele diria das redes sociais?!
Hoje, poderíamos nos referir àquilo que ele chamava de elevação de pensamento como saúde mental. Ou, visto de outro ângulo, a conexão com a espiritualidade ajuda a saúde mental – e há muitas pesquisas que indicam que uma vivência espiritual saudável (não fanática e opressora) pode nos dar mais resiliência e menos adoecimento psíquico.
Tudo isso vem à mente num momento em que muitos nos reconhecemos adoentados psiquicamente no Brasil. Um índice alto de depressão e ansiedade e uma maioria pelo menos desanimada, sem perspectiva, com medo do presente e do futuro.
Estamos reféns mentalmente de uma agenda de horror que nos bombardeia todos os dias: do desemprego à queima de nossas florestas, da retirada de nossos direitos aos genocídios promovidos ou apoiados pelo Estado, das grosserias estapafúrdias dos membros do (des)governo à aparente apatia das massas, mergulhadas numa luta insana pela sobrevivência. Estamos sendo roubados até mesmo de nosso direito de sonhar.
Cada um de nós encontra um caminho (ou não) para resistir, persistir, sobreviver e conservar a sanidade. Alguns simplesmente saem das redes, não querem mais saber das notícias, desistem da informação. Outros, permanecem conectados, mas postam o tempo inteiro flores, frases de autoajuda, como se nada estivesse acontecendo. Há ainda aqueles que lutam, resistem, saem às ruas, postam incansavelmente, protestam, refletem, estão no front. Seja qual for a reação (ou alienação) que cada pessoa assuma, as más notícias nos afetarão a todos, mais cedo ou mais tarde, pois estamos inseridos numa coletividade de nação e de planeta, em que somos inevitavelmente conectados. Más decisões políticas, agressões à natureza, violências entre os cidadãos e entre os povos – não temos como fugir das consequências que os desmandos, as ambições e as injustiças deflagram. Mesmo aqueles que se julgam acima de tudo isso, por pertencerem a um pequeno grupo de privilegiados, também serão afetados. A sabedoria de Raoni alerta essa semana: “Nós estamos com medo, logo vocês também estarão”.
Todos os caminhos espirituais nos chamam à construção de uma paz interior além das flutuações humanas, das tragédias, dos podres poderes. Muitas vezes, esse chamado se traduziu numa alienação em relação aos problemas sociais e econômicos do mundo. Por outro lado, os caminhos da militância, do combate às injustiças (combate violento ou não-violento e aqui sempre defendo a não-violência) podem nos levar a uma amargura e a uma revolta que nos destrua enquanto humanos. Porque mudar o mundo é um processo longo, paciente, perseverante – apesar da pressa que todos temos, dos retrocessos difíceis de aceitar e das ameaças catastróficas que nos assombram no momento, pelas mudanças climáticas ou pelo cada vez maior empobrecimento dos povos.
Cabe-nos também entender que numa perspectiva histórica, a longo prazo, ou ainda mais com um olhar de eternidade, as crises, os retrocessos, as lutas todas fazem parte de um aprendizado individual e coletivo, de um amadurecimento necessário.
Assim, há que se buscar um equilíbrio. Manter a luta, a resistência, a construção árdua e incansável de um mundo melhor, mas procurar um recanto interno de pacificação, de elevação, de comunhão com o próximo, com a natureza, com Deus (para aqueles que nele acreditam). Lideranças espirituais inspiradoras, como Francisco de Assis ou Gandhi (e andam dizendo tanta coisa injusta e descontextualizada sobre o Mahatma), souberam traçar esse caminho. Tiveram vidas e ideias transformadoras, mas cuidaram do interno. Entretanto, às vezes o externo é tão violento, que mesmo essas almas tiveram momentos de escuridão interior. Aliás, os grandes místicos do Ocidente e do Oriente nos falam que mesmo os devotos em grande comunhão com Deus podem às vezes sentir uma ausência, um desânimo, um vazio.
Deve-se alertar, porém, que o caminho espiritual seriamente buscado, como uma forma de elevação e, portanto, de fortalecimento para as lutas da vida, não tem nada a ver com essa tendência alienante de autoajuda – um produto comercial lucrativo – que diz que a felicidade, a prosperidade, a realização só dependem de você. Então, se estamos desanimados, tristes, deprimidos, tudo isso pode ser superado com algumas meditações superficiais, o treinamento de algum coach, e meia dúzia de receitas mágicas para um empreendedorismo de sucesso. Uma mistura nefasta entre o que há de pior no discurso meritocrático e a alienação política, através de um falso caminho de espiritualidade light.
Trilhar uma estrada verdadeiramente espiritual significa sim um profundo e diário cultivo interior para uma paz possível, mas também um compromisso com o outro, com a humanidade – e dessa jornada, a tristeza faz parte, porque ela vem da compaixão, da empatia, da preocupação com o próximo. Mas uma tristeza que não nos adoeça e não nos mate.