Da infância em Pernambuco à prisão em Curitiba: relembre a trajetória política do ex-presidente Lula
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira (07/11) pelo fim da prisão após condenação em segunda instância. A decisão deve beneficiar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — preso desde abril de 2018 —, que pode ser solto após 19 meses cumprindo pena em regime fechado.
O STF julgou que a prisão após condenação em segunda instância é inconstitucional. Ou seja, a Corte decidiu que o réu condenado só pode ser preso após o chamado “trânsito em julgado”, que é o fim do processo, quando estão esgotadas todas as possibilidades de recursos em instâncias superiores.
Condenado a mais de 8 anos de prisão pelo STJ (Superior Tribunal da Justiça) no caso do tríplex no Guarujá, Lula está preso na Superintendência da Polícia Federal no Paraná. Esse processo ainda não transitou em julgado: recursos apresentados pela defesa estão em análise no STJ. É por isso que Lula pode sair da prisão pós pedido de sua defesa e terá o direito de aguardar o fim do processo em liberdade.
Além do caso do tríplex, Lula é réu em outras seis ações penais na Justiça Federal, além de recursos em tribunais superiores.
Relembre a trajetória do ex-presidente, de sua infância em Pernambuco aos anos na prisão.
Origem e raízes políticas
Lula nasceu em 27 de outubro de 1945 na localidade de Caetés, na cidade de Garanhuns, em Pernambuco. Aos sete anos de idade, migrou com a família liderada por sua mãe, Dona Lindu, para o Guarujá, no litoral paulista. A viagem de quase duas semanas foi feita em um caminhão “pau de arara”, como era comum aos migrantes nordestinos na época.
Chegou a São Paulo apenas em 1956. Estabeleceu-se com a família nos fundos de um bar no bairro do Ipiranga, bairro operário onde criaria seu instituto décadas mais tarde.
O primeiro passo para se transformar em político veio em 1962, quando formou-se torneiro mecânico em um curso do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial). Um ano depois perderia o dedo mínimo da mão esquerda, o que se tornaria uma das suas principais marcas, ao lado da barba farta e da voz rouca.
Casou-se duas vezes. A primeira mulher, Maria de Lourdes, morreu em 1970 por conta de uma gravidez de risco, assim como seu primeiro filho. Em 1974, Lula conheceu a também viúva Marisa Letícia (1950-2017) e se casou com ela. Tiveram quatro filhos.
Marisa esteve ao lado de Lula em toda sua carreira política, mas o ex-presidente a valorizava ainda mais pelos primeiros anos, quando ela o apoiou desde sua primeira eleição como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em 1975.
A partir dali ele lançou as greves de operários que contribuíram para o enfraquecimento da ditadura militar (1964-1985). Mas mesmo entre os maiores inimigos cultivou algumas amizades. Era o caso do ex-chefe da Polícia Federal Romeu Tuma, que o liberou da prisão para acompanhar o velório da mãe, em 1980.
Partido dos Trabalhadores
Foi o mesmo ano em que sua carreira político-partidária começou, com a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT).
Em 1982, com uma plataforma radical defendida por intelectuais do partido, Lula disputou o governo do Estado de São Paulo e terminou em quarto lugar, com menos de 10% dos votos. Logo depois fundaria a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e participaria do movimento Diretas Já, pela volta da democracia.
O movimento não teve resultado imediato, mas a possibilidade de os brasileiros voltarem a votar para presidente reapareceu em 1985, em uma votação no Congresso. Lula, por sua vez, defendeu a abstenção dos deputados petistas na eleição indireta de Tancredo Neves à Presidência da República.
Parlamentares que se rebelaram contra a decisão acabaram expulsos do partido, contra a vontade de Lula. Tancredo morreu antes de tomar posse como presidente. Quando José Sarney assumiu, o PT migrou para a oposição.
Em 1986, Lula se tornou o deputado federal mais votado do país, para participar da Assembleia Constituinte.
O papel discreto não o afastou da candidatura à Presidência da República pela primeira vez, 1989.
Mas Lula perdeu o segundo turno para Fernando Collor de Mello. Dois anos depois, o petista estaria nas ruas para pedir o impeachment de Collor, acusado de corrupção. Quando Itamar Franco tomou o lugar de Collor, Lula recusou cargos no governo.
Em nova disputa nas urnas, acabou derrotado em 1994 por Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, que foi ministro de Itamar e um dos idealizadores do Plano Real, chamado por Lula de “estelionato eleitoral”.
Foi um choque para o petista, que meses antes chegara a cogitar a formação de uma chapa moderada ao lado do tucano Tasso Jereissatti como vice. Os planos foram barrados por radicais no PT. Quatro anos depois, surpreendido pela emenda que passou a permitir a reeleição, perdeu novamente para FHC, no primeiro turno.
A impopularidade de Cardoso em seu segundo mandato tornava a vitória de Lula mais provável em 2002. Além das mudanças políticas e econômicas, Lula abraçou o marketing político como centralizador das mensagens eleitorais.
Um dos pontos cruciais foi a chamada “Carta ao povo brasileiro”, em que Lula acalmava o mercado com promessas de manter os pilares macroeconômicos do antecessor e governar com responsabilidade fiscal. Um empresário, José Alencar, se tornou seu confidente e vice-presidente por oito anos.
O sucesso lhe garantiu a vitória contra o também tucano José Serra.
Lula chorou na cerimônia de titulação no Tribunal Superior Eleitoral dizendo que o diploma de presidente da República era o primeiro que tinha ganhado na vida.
A antiga assessora Clara Ant, que coordenou iniciativas de Lula nos últimos 30 anos, define o ex-presidente como “um notório pragmático.” “Lula só rompia com os radicais. Mas não dizia nada, esperava até os radicais romperem com ele primeiro. Foi assim como sindicalista e foi assim como político também. Ele só quer saber do que pode dar certo.”
No poder, da popularidade ao mensalão
Em seu governo, iniciativas difusas até então se transformaram no unificado Bolsa Família, um programa de transferência de renda voltado aos mais pobres que hoje abarca 13,8 milhões de famílias. O que seria uma reforma da Previdência para garantir direitos trabalhistas transformou-se em um aceno ao mercado para lidar com deficit galopante.
Popular internamente, Lula ganhou fama internacional, sobretudo pelas medidas de combate à pobreza. Ficou famoso, em 2009, em reunião do G20, o momento em que o então presidente americano Barack Obama o chamou de “o cara”.
O boom das commodities, o avanço de políticas de crédito e a emergência de uma nova classe média geraram anos de crescimento econômico e aumento do consumo, mas no fim do governo Lula esse modelo econômico já dava mostras de esgotamento.
Na política, veio o escândalo do mensalão, em 2005, em que ministros centrais do governo Lula foram acusados de compra de apoio político no Congresso.
Depois de perder para denúncias o seu ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e de ver seu amigo Delúbio Soares, tesoureiro do PT, apontado como artífice do esquema, Lula se disse “traído”, mas evitou apontar os aliados como responsáveis. Sua popularidade afundou até a faixa dos 30% e ele respondeu com acenos para os dois lados.
Primeiro, instituiu a política de valorização do salário mínimo e o ProUni, programa de concessão de bolsas universitárias a jovens carentes. Depois, ofereceu mais ortodoxia na economia, sob o comando do presidente do Banco Central e ex-deputado do PSDB, Henrique Meirelles. Acabou reeleito em 2006, vencendo o tucano Geraldo Alckmin.
Seu segundo mandato foi mais moderado que o primeiro, principalmente por conta do peso da aliança com o centrista PMDB. Em 2007, Lula privatizou estradas federais, deixando para trás um antigo dogma petista contrário à venda de patrimônio público. Lançou também o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), coordenado por Dilma Rousseff, então ministra-chefe da Casa Civil.
A ex-petista Marta Suplicy acredita que já nessa época Lula pensava em ter uma mulher como sua sucessora. “Mas é curioso que ele tenha escolhido para isso uma pessoa (Dilma) que não era moderada como ele, nem gosta de falar com políticos”, diz a senadora.
Quando veio a crise econômica internacional, em 2008, o governo Lula disse se tratar de uma “marolinha”. O presidente foi à TV pedir aos brasileiros que continuassem impulsionando o consumo. Pouco depois, veio o programa habitacional “Minha Casa, Minha Vida”, também a ser coordenado por Dilma.
Lula fez sua sucessora e deixou o cargo com quase 90% de aprovação popular. Mas isso nem de longe significava a aposentadoria do ex-presidente.
Fora do Planalto
Em 2011, nos primeiros meses longe de Brasília, Lula foi diagnosticado com câncer na laringe e iniciou um longo tratamento. Só retornou à cena política para intervir no PT de São Paulo e fazer do ex-ministro Fernando Haddad seu candidato, bem-sucedido, a prefeito.
O ano de 2013 parecia começar bem para Lula, mas os protestos populares do meio daquele ano transformaram Haddad e Dilma em dois grandes alvos dos manifestantes.
Por ter mais traquejo político que os dois tecnocratas que indicou, Lula interveio nas duas gestões. Não faltaram relatos de insatisfação com a autonomia que o ex-presidente exibia para mandar nos governos de outros.
Um antigo aliado que prefere não se identificar define essa liberdade assim: “Parecia aquelas reuniões de ministério quando um assessor dizia ao Lula que ele precisava fazer uma coisa diferente do que planejava. Ele respondia: ‘Você tem quantos votos? Eu tenho 50 milhões.’ No governo desses (indicados), os votos ainda eram dele.”
Muitos petistas esperavam que Lula voltasse a ser candidato a presidente em 2014, mas a vontade de Dilma se reeleger prevaleceu. Em uma campanha acirrada com menor presença do ex-presidente, a petista venceu Aécio Neves por margem estreita.
O ex-porta-voz e cientista político André Singer já via o esgotamento do modelo de conciliação de Lula no início do segundo mandato de Dilma. “Hoje, o PT gira em torno do lulismo. Não é mais o PT com a alma da sua fundação. Mas o lulismo é sobre reforma gradual e pacto conservador, ele vai além do PT e da esquerda. Funcionou para muita gente por muitos anos. Gente que nunca tinha votado em partido de esquerda e que votou por Lula ser dessa forma”, disse.
Lava Jato
Até que, em 2015, a operação Lava Jato inicia investigações sobre figuras-chave de sua administração. As acusações de corrupção na estatal fizeram com que Lula fosse pela primeira vez ouvido como testemunha em uma série de investigações sobre integrantes do seu governo.
No ano seguinte, eclodiu uma nova onda de protestos populares pelo impeachment de Dilma, e polêmicos bonecos de Lula vestidos como presidiário (os “pixulecos”) se tornam presença constante nas manifestações.
A Lava Jato resultou na prisão e condenação de antigos aliados de Lula, como o ex-governador do Rio Sergio Cabral (cujas penas chegam a 100 anos, em cinco processos) e o ex-ministro Antonio Palocci, condenado em 2017 a 12 anos por lavagem de dinheiro e corrupção.
Em julho de 2017, o juiz federal Sergio Moro condenou Lula a nove anos e seis meses de prisão por corrupção no julgamento em que era acusado de receber um apartamento no Guarujá (SP) em troca da promoção de interesses da empreiteira OAS junto à Petrobras.
Em março do ano seguinte, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) rejeitou por unanimidade os recursos apresentados pela defesa de Lula contra a condenação.
No início de abril de 2018, um pedido de habeas corpus do ex-presidente foi negado pelo STF. Lula, então, teve sua prisão decretada. Naquele momento, já se apresentava como pré-candidato à Presidência nas eleições que aconteceriam em outubro.
O ex-presidente Lula naquele momento mantinha-se como líder em intenções de votos — ainda que também tivesse significativa taxa de rejeição —, segundo pesquisas eleitorais.
Na prisão
O ex-presidente se manteve figura importante da política nacional durante seu período na prisão.
Chegou a ser registrado como candidato oficial do PT, tendo Haddad como vice, mas seu registro foi negado pelo Tribunal Superior Eleitoral com base na Lei da Ficha Limpa.
Haddad acabou concorrendo e foi derrotado, em segundo turno, por Jair Bolsonaro.
Num primeiro momento, foi impedido de dar entrevistas, mas o STF revogou essa proibição.
Lula deixou a prisão duas vezes. Na primeira, em 14 de novembro do ano passado, ele saiu para prestar depoimento à juíza Gabriela Hardt, que substitui Moro — atualmente ministro da Justiça e Segurança Pública — nas ações da Lava Jato.
Na segunda, em abril deste ano, ficou fora por cerca de nove horas. Ele viajou a São Bernardo do Campo, em São Paulo, para o velório e a cerimônia de cremação de seu neto Arthur, de sete anos, que morreu no dia anterior vítima de uma infecção bacteriana.
Antes disso, em janeiro, a defesa de Lula já havia solicitado à Justiça que o ex-presidente deixasse à prisão para ir ao funeral de seu irmão Genival Inácio da Silva, o Vavá, em São Bernardo do Campo. Mas a juíza Carolina Lebbos — responsável por supervisionar o cumprimento da pena de Lula e autora da decisão que o liberou para o velório do neto — negou.
Na ocasião, a magistrada diz ter tomado a decisão com base em um parecer da Polícia Federal, segundo o qual não era possível, à época, garantir a segurança de Lula e das demais pessoas durante o trajeto até São Bernardo devido ao curto prazo.
Pouco antes do enterro de Vavá, no entanto, o STF autorizou o ex-presidente a deixar a prisão. Mas Lula decidiu não ir — não havia mais tempo hábil.
*Com reportagem de Mauricio Savarese, de São Paulo para a BBC Brasil