Dorival Caymmi produziu coleção de belos registros sobre Salvador

Artista traduziu musicalmente, e com maestria, personagens e situações da cidade

Por: Cleidiana Ramos

Dorival Caymmi: repertório do cotidiano
Dorival Caymmi: repertório do cotidiano – 

Na edição de 30 de dezembro de 1941, A TARDE deu uma excelente notícia para os foliões das festas de largo. Dorival Caymmi, que já estava em ascensão no cenário musical nacional, iria se apresentar em praça pública na Sé e na Lapinha nos próximos dias durante a Festa de Reis. Nos dois locais havia uma movimentação intensa para a apresentação dos ternos. Foi, ao menos nos registros de A TARDE sobre as festas de largo que antecedem o Carnaval, a primeira vez que o show de um artista conhecido nacionalmente integrou a programação dessas celebrações.

Essa inserção de Caymmi em uma comemoração tão marcante para a cidade revela a característica de agente importante na tradução de um imaginário sobre a Bahia sobretudo dando destaque a ofícios e personagens tradicionais como pescadores e baianas de acarajé. No próximo ano serão celebrados os 110 anos de nascimento desse artista tão conectado a Salvador com esta marca já visível no início da sua carreira.

“Louvemos, pois, como um ato muito feliz do prefeito Neves da Rocha a resolução que acaba de tomar, promovendo em conjunção com a P.R.A-4, a apresentação do famoso cancioneiro bahiano em duas audições públicas, nas quais, de certo, muitos milhares de patrícios irão aclamá-lo”. (A TARDE, 20/12/1941, p.2).

A participação do artista foi considerada um sucesso nas reportagens de dias posteriores aos shows.

“Dorival Caimi (sic), o compositor e poeta que canta em suas maviosas canções motivos genuinamente bahianos, às 22,15, em um tablado erigido no largo da Lapinha, deleitou o público com a música e as cantigas de sua autoria que tem logrado franco sucesso. Foi, sem dúvida, uma exibição magnifica a de ontem promovida pelo prefeito da capital, eng. Neves da Rocha. Caimi cantou ao microfone, acompanhamento de violão, “Requebro”, “Você já foi á Bahia?”, “O que é que a bahiana tem?”, “A jangada voltou sosinha”, “Como é belo morrer no mar” e tantas outras canções já consagradas pelo povo”. (A TARDE, 6/1/1942, p.2).

Doutor em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Marielson Carvalho destaca que essa participação de Caymmi fazendo um show pioneiro em uma festa de largo é um reencontro do artista com o cotidiano da cidade que ele havia introduzido, por meio da música, no cenário nacional. Caymmi já era uma estrela dos cassinos e do rádio, dois grandes palcos da indústria cultural do período.

Os shows realizados em Salvador nas celebrações de Reis foram promovidos pela prefeitura em conjunto com a P.R.A-4, ou seja, uma associação com participação ativa dos interesses comerciais da indústria cultural. Era o período de ouro da ascensão do rádio no Brasil, sobretudo das emissoras que formavam a cadeia Diários Associados.

“Dorival Caymmi é um dos tradutores da ideia de baianidade mas não no sentido que ficou mais amplo como uma coisa negativa. Na minha avaliação passaram para Caymmi uma fatura de uma dívida que ele não contraiu, como uma leitura pejorativa de uma baianidade preguiçosa, por exemplo. Pelo contrário. O mundo que Caymmi cantou é do povo negro, pobre e extremamente trabalhador, como o dos pescadores”, analisa Marielson Carvalho. Ele é autor de dois livros sobre Caymmi: Acontece que eu sou baiano- identidade e memória cultural no cancioneiro de Dorival Caymmi, publicado em 2009, e Caymmianos – Personagens das Canções de Dorival Caymmi, de 2015.

Imagem ilustrativa da imagem Dorival Caymmi produziu coleção de belos registros sobre Salvador

Para Marielson Carvalho, Caymmi foi um dos muitos tradutores de uma ideia de Bahia como reserva autêntica da formação cultural nacional, com protagonismo para os representantes da base afro-brasileira. A diferença foi a sua forma de tradução que está centrada na indústria cultural sobretudo o rádio e o cinema.

“Essa ideia de Bahia como reserva autêntica da formação cultural brasileira era algo que vinha de longa data. Ele conseguiu levar para o rádio, no período em que este meio de comunicação era muito representativo, e para o cinema com Carmen Miranda que internacionalizou a música brasileira no exterior. Acho que isso dinamizou bastante a ideia de Dorival Caymmi como o criador da baianidade, mas ele é um dos tradutores”, completa.

O alcance de uma visão da Bahia antiga sobrevivendo em contraponto à batalha pela instalação do que era considerado moderno, representada sobretudo pelo Rio de Janeiro, fez Caymmi ter destaque na trilha sonora de uma produção cinematográfica emblemática do período: The Three Caballeros, de 1944. O filme dos estúdios Disney, associado aos interesses do governo norte-americano em relação à América Latina, é baseado em uma visita do Pato Donald ao México, onde é recepcionado por Panchito, um galo vermelho, e ao Rio de Janeiro com o papagaio Zé Carioca como anfitrião. Mas eis que a então capital do Brasil não basta e Zé Carioca convida Donald para um passeio a Salvador. O convite é embalado por uma tradução para o inglês de “Você já foi à Bahia?”, canção de Dorival Caymmi.

Mundo soteropolitano

Embora para o senso comum as canções de Caymmi retratem a Bahia, o que é registrado é o cotidiano da capital baiana. A força dos signos afro-brasileiros e os ofícios e alimentação relacionados a eles, por exemplo, são considerados os traços de identidade de todo o território baiano em uma equação que envolve os mais variados agentes, sobretudo a política de Estado. Essa ação teve força especialmente na década de 1970.

Soteropolitano, Caymmi nasceu em 30 de abril de 1914. Sua infância e juventude foram vividas, de acordo com Marielson Carvalho, em bairros do Centro Antigo de Salvador como Nazaré, Barbalho e Santo Antônio Além do Carmo. No retorno a Salvador, já consagrado, ele passou a viver em Itapuã, o que o fez ocupante de duas regiões centrais da cidade, ou seja, a parte histórica e a orla atlântica nas conexões entre antigo e moderno que, inclusive, caracteriza o circuito das festas de largo, um tema que não faltou ao amplo repertório de Caymmi.

“Fazendo um mapeamento das músicas de Caymmi e um comparativo com a sua biografia ele viveu justamente a cidade do Centro Antigo e também teve a cidade litorânea representada por Itapuã. Acho que ele foi um soteropolitano, podemos dizer assim, de forma dupla”, acrescenta Marielson Carvalho.

Além disso, o pesquisador destaca que ele gostava de registrar como tinha por hábito andar pelas ruas da cidade e contemplar suas ladeiras ou vir de um tempo em que as torres das igrejas serviam como referência de localização dos bairros. Era, portanto, alguém que ainda conheceu a Cidade da Baía, ou seja, a Salvador que articulava sua entrada no mundo moderno sem perder a conexão com o passado fundamental para costurar sua sobrevivência política e econômica sabendo explorar o simbólico.

Caymmi não apenas esteve à vontade nesse mundo como conseguiu deixar canções como João Valentão, o registro sobre um homem explosivo, mas que recuperava a sensibilidade ao vislumbrar o mar especialmente ao lado de sua amada; ou as baianas de tabuleiro que do alto da sua autoridade à frente dos seus negócios e do trabalho exaustivo nem por isso esqueciam os passos do samba de roda. Ele também celebrou a dedicação de ialorixás do candomblé baiano que se dividiam nas ações para fazer sua religião resistir aos ataques sem descuidar da política inteligente geralmente temperada de doçura quando era preciso, como a protagonista de sua belíssima canção que denominou de oração: Mãe Menininha do Gantois. E sobrou espaço para o que ele chamou de samba-receita presente em Vatapá, onde além do delicioso embalo do samba ele canta como fazer um dos mais saborosos pratos da cozinha baiana.

Foram esses personagens e situações presentes nas canções de Caymmi que Marielson Carvalho escolheu para esmiuçar em seu interessante livro Caymmianos, afinal, como reitera, Caymmi fez uma das mais belas antologias do cotidiano soteropolitano e que continua atual. É difícil pensar em uma cena significativa de Salvador ignorando os ecos da voz de Caymmi ao fundo.

“Eu vejo Caymmi justamente com esta crônica da capital baiana a partir da música. E quando ele traz as referências das pretas e pretos baianos, das festas populares, onde a população negra participava como protagonista, constatamos que é justamente o que move essa cidade”, completa Marielson Carvalho.

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

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