Jean Wyllys: “Quem éligado à milícia é o presidente da República, não eu”

O ex-deputado e hoje aspirante a uma bolsa de doutorado em Berlim coleciona embates com o governo Bolsonaro em seu autoexílio na Europa
Jean Wyllys, durante sua passagem por Madri, na Espanha:
Jean Wyllys, durante sua passagem por Madri, na Espanha: “Não tenho vocação para ser mártir”. Foto: Luís Lima / Agência O Globo

Autoexilado e à espera de uma bolsa de doutorado em Berlim, o ex-deputado do PSOL Jean Wyllys tem ocupado o tempo com palestras, conferências e visitas a autoridades em diversos países da Europa. Nas últimas semanas, esteve, de mandeira quase onipresente, na capital alemã e em outras cidades como Lisboa, Genebra, Madri, Paris e Barcelona. Nessas duas últimas, foi recebido pelas prefeitas Ada Colau e Anne Hidalgo, respectivamente. A reação dos haters na Internet, como são chamados os críticos movidos pelo ódio, foi a de que Jean estava batendo de “porta em porta” para ser ouvido. Ele responde: “Elas me convidaram. Não fui eu que fui lá e bati na porta das prefeitas. Qualquer pessoa inteligente sabe que era assim, que não faz sentido eu bater na porta das prefeitas para dizer: “Oi, sou Jean Wyllys, me faz uma reunião?”

Em encontro com jornalistas no Fórum Brasil-Espanha, em Madri, Jean também comentou com jornalistas o escândalo protagonizado pela embaixadora Maria Nazareth Farani, que, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra,  vociferou em uma conferência que o ex-deputado era uma vergonha para o País.

Segundo o ex-parlamentar, ela foi orientada pelo Itamaraty e tinha o obtivo de bajular o governo, que ameaçou destituir do cargo os embaixadores que não defendessem o presidente Jair Bolsonaro. “Essa não é uma postura de embaixadora. Ainda mais junto à ONU. Revela as fragilidades de um governo, que como diz Rodrigo Maia, que não é de esquerda, é um deserto de ideias e de propostas”, definiu.

Nas horas vagas, Jean também se dedica a finalizar um livro, que deve ser publicado em junho, sobre o momento político brasileiro contemporâneo. Na conversa, disse que não tem vocação para “mártir” e que tomou a decisão de se mudar para Berlim para se sentir seguro e de ter liberdade de fazer coisas que não tinha no Brasil, como a de “sentar num boteco e tomar uma cerveja sem que ninguém importune”.

Como você reagiu à atitude da embaixadora Maria Nazareth Farani, que disse, na sede da ONU em Genebra, que você é uma vergonha para o Brasil?

Ela foi orientada pelo Itamaraty a fazer isso. Quando ela soube da minha presença, ela ligou para o Itamaraty para saber [quando estaria lá]. Tratava-se de puxa-saquismo, bajulação ao governo. Bolsonaro tinha dito duas semanas antes, que tiraria do posto todos os embaixadores que não defendessem a imagem dele. Temendo perder o posto e seus privilégios, ela ligou para saber o que fazer. Então eles a orientaram, inclusive os termos do texto que ela utilizou. Ela apareceu com o texto pronto, não ouviu minha comunicação. Isso não é comum. O sistema ONU proíbe esse tipo de assédio e retaliação. Ela não foi em nenhum evento paralelo que tratou de questões de direitos humanos no Brasil, sobre Brumadinho, Marielle ou questão indígena. Ela foi ao meu painel, especificamente, mas caiu do cavalo. Quem a interpelou foi uma mediadora dos Estados Unidos. A embaixadora disse que só ficaria se pudesse responder, não apenas ouvir. Mas a última palavra é a tréplica do panelista, disse a mediadora. Diante dessa informação, ela surtou em um nível que ninguém imaginava. Levantou, dizia em voz em alta que eu era uma vergonha, mas para desespero dela a plateia levantou e começou a me aplaudir de pé, enquanto ela saia.

O que essa postura da embaixadora diz sobre o governo Bolsonaro?

Essa não é uma postura de embaixadora. Ainda mais junto à ONU. Revela as fragilidades de um governo, que, como diz Rodrigo Maia, é um deserto de ideias e de propostas. A única coisa que ele tem é discurso de ódio, violência simbólica e a tática de insuflar milícias nas redes sociais.

Você se sente seguro na Europa?

As democracias europeias estão mais vacinadas para a ascensão da extrema direita. De toda forma, se ela não virar uma hegemonia aqui, como houve no Brasil, sua simples presença no parlamento já intoxica o corpo social, pelo discurso contra minorias, como imigrantes, judeus, LGBTs. Os governos e os parlamentos têm me recebido. Quero permanecer seguro. Não sou um rosto conhecido, como no Brasil. As pessoas não me identificam tão fácil, só os brasileiros. Estou meio que perdido na multidão. E isso é ótimo. Vim em busca de uma liberdade que não tinha. De sentar num boteco e tomar uma cerveja sem que ninguém me importune.

Você foi bem recebido pelas prefeitas de Barcelona e Paris. De certa forma você está se fazendo ser conhecido…

Não, e nem quero virar pessoa pública aqui. Fui recebido porque são mulheres sensíveis e antenadas com o que está acontecendo no Brasil. Elas me convidaram. Não fui eu que fui lá e bati na porta das prefeitas. Qualquer pessoa inteligente sabe que é assim, que não faz sentido eu bater na porta das prefeitas para dizer: “Oi, sou Jean Wyllys, me faz uma reunião?” Há pouco tempo eu era uma autoridade da República que me autoexilei por ameaças de morte. Qualquer pessoa democrata, do sistema político, se sente tocada por isso. Amanhã pode ser ela a vítima. Essas pessoas conheciam meu trabalho. Há imbecis da Internet que falam que estava indo de porta em porta. Mas, eles que me desculpem. As pessoas me convidam. Se você não sabia que eu era uma pessoa de prestígio internacional — porque você é um cretino, um fascista no Brasil —, saiba que eu era.

Como está sua vida hoje e o que você almeja para o futuro?

Vivo em Berlim, hospedado na casa de um amigo, Marcelo. Mas pretendo ter sim meu espaço. Vou iniciar um doutorado, na linha de estudos culturais, e seguirei meu trabalho, como intelectual, que é fazer conferências, pensar. Estou terminando um livro, a ser lançado em junho, sobre o Brasil contemporâneo e questões que me dizem respeito. Não posso dar mais informações por questões de segurança, pois as pessoas que me ameaçam estão aí, no mundo. Sou uma pessoa honesta, não tenho grana. Vivo disso [trabalho intelectual] e vou precisar de uma bolsa. Há muito imbecil na Internet dizendo que me aposentei com salário de deputado, depois de dois mandatos. São muito ignorantes sobre as leis previdenciárias. Meu objetivo é manter minha vida e da minha família a salvo. As causas que luto não ganhariam nada com minha morte. Não quero me bancar de mártir, nem de herói. Não tenho vocação pra isso.

Já se habituou a ser estrangeiro ou foi discriminado por isso?

Ainda não, porque a princípio a ideia era me recolher um pouco. Acontece que o impacto da notícia [do autoexílio] foi tão grande que me arrastou para o front antes do que gostaria. E aí eu ocupo um lugar diferente. Você é convidado por autoridades para falar; não há um tratamento discriminatório. Agora tento conciliar a tarefa de me assentar e, ao mesmo tempo, ocupar a trincheira da denúncia internacional da violação de direitos humanos do Brasil e do esgarçamento da nossa democracia. Isso precisava ser dito. Alguém precisava cumprir essa função e a vida de alguma maneira me colocou nessa posição. Não posso agora deixar de fazer isso.

Alguém da sua família se exilou?

Ninguém. Está todo mundo no Brasil. Minha família é simplíssima. Venho do Brasil profundo, passei boa parte da minha vida na miséria. Ninguém está na Europa, como ninguém esteve no Rio de Janeiro, quando morei lá. E não é perigoso, porque a minha saída melhora a vida deles, sobretudo em relação ao assédio na Internet. E aqui posso voltar os olhos das instituições pra eles: Anistia Internacional, Human Rights Watch, Justiça Global, estão atentas ao que acontece com minha família.

Como você lidou com as últimas difamações virtuais que sofreu, sobretudo as que tentaram associar sua imagem ao atentado contra o Bolsonaro?

As fake news são um fenômeno complexo e vou me debruçar sobre isso no doutorado. Elas operam nos contextos de cada país e, no Brasil, parte das pessoas acreditam porque não estão preparadas para lidar com a distorção que fazem entre fatos e não fatos. Outras pessoas se apegaram a elas como justificativas para algo que elas já tinham. Elas encontraram nas fake news uma âncora para justificar o ódio contra mim. Mas é óbvio que uma pessoa com dois neurônios, que faça uma sinapse, sabe que eu jamais poderia ser mandante de um crime, pois não sou assassino, criminoso, nem ligado à milícia. Quem é ligado à milícia é o presidente da República, não eu. Se alguém poderia encomendar uma morte era ele, não eu. E ademais esse atentado contra o Bolsonaro está para ser explicado. Se alguém quisesse de fato atentar contra a vida dele, usaria uma arma de fogo, um fuzil a longa distância e não uma faca de pão no meio de uma multidão.

A sua vida mudou muito, no caso, para pior, depois da morte de Marielle ou da vitória de Bolsonaro?

Desde a morte de Marielle. Com a execução dela, o que eu achava que tinha o objetivo só de intimidar, que nunca se concretizaria, se concretizou, com um requinte e sofisticação que ninguém imaginava. Depois disso tive consciência de que era um jogo perigoso e que estavam dispostos a tudo. As ameaças foram subindo de nível. O motivo era a minha agenda em favor da comunidade LGBT, de direitos humanos. Tinha a ver com o fato de eu ser um gay assumido e orgulhoso, e, depois, também teve relação com protagonismo que assumi contra o impeachment da Dilma. A origem era basicamente masculinista, que se reuniam em fóruns da deep web. É algo que denunciei e deveria ser monitorado há muito tempo, mas a Polícia Federal nunca levou a sério, porque se trata de ameaças a minorias. Se tivesse levado a sério, talvez a tragédia de Suzano [que se originou na deep web] não tivesse acontecido. Com a negligência do Estado brasileiro, mais a vitória de Bolsonaro, cheguei à conclusão óbvia de que não sobreviveria, literalmente.

Por quem você teme que, diferente de você, está no Brasil?

Temo por pessoas que estão na frente de movimentos sociais e que defendem os direitos humanos de minorias. Pelos ambientalistas e missionários que defendem os índios, por exemplo. Hoje o Estado brasileiro se voltou contra quem luta por essas minorias. Tratam como posição a ser eliminada, ou encarcerada, ou banida do país.

O que você sabe da suposta morte da ativista Sabrina Bittencourt, que assim como você, se autoexilou, e, segundos familiares, se suicidou mês passado?

Soube da morte dela, mas que está cercada de mistério. Havia pessoas que diziam que ela não morreu. Eu não sei. É difícil me posicionar e não quero entrar em especulações. Não a conhecia pessoalmente, mas posso dizer que o trabalho dela foi muito importante, fundamental. Desmascarar um esquema criminoso que se revestia de bondade religiosa é muito corajoso. Morta ou viva, ela é símbolo dessa luta.

Fonte: Época

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