Michael Löwy: morte de líder da guerrilha armada no Chile sepultou a esperança de resistência à ditadura de Pinochet

Em entrevista ao Brasil de Fato, pensador marxista fala DE seu novo livro “Setembro vermelho” sobre o golpe chileno

Leandro Melito  rasil de Fato
Michael Löwy trabalha como diretor de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique em Paris, na França – Vanessa Nicolav / Autonomia Literária

Após o 11 de setembro de 1973 no Chile, havia ainda uma esperança da esquerda mundial em relação ao processo de resistência armada no país por meio das ações organizadas pelo Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), que estava disposto a defender o legado de Salvador Allende (1908-1973). Com o golpe em andamento, o presidente chileno teria transmitido um recado a Miguel Enriquez, líder do MIR, através de sua filha e conselheira política no governo, Beatriz Allende: “Diga a Miguel que agora é a vez dele”.

“O próprio Allende achava isso, porque a última mensagem que ele mandou pro Miguel Enriquez era a seguinte: a minha via do caminho pacífico, não deu certo, agora é a tua”, aponta Michel Löwy, co-autor com Olivier Besancenot de Setembro vermelho: o golpe de Estado no Chile em 1973, da conspiração às primeiras resistências (Autonomia Literária, 2023), lançado no dia 21 de setembro, mesmo mês em que se completou 50 anos do golpe militar no país latino americano.

Pensador marxista brasileiro radicado na França, onde trabalha como diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique, Löwy concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato em São Paulo.

“Eu tinha muito essa ilusão de que o MIR era um movimento de resistência enorme que ia talvez até poder derrubar a ditadura, talvez ia ser um grande combate. Não foi. E a gente se deu conta disso quando morreu o Miguel Enriquez. Quer dizer, para nós foi um golpe tão duro, talvez até mais do que o de setembro. Ou seja, eu já tinha muito essa esperança, essa ilusão de que o MIR ia ser capaz de talvez reproduzir o que foi a Revolução Cubana, alguma coisa assim. Então foi realmente uma decepção.”

No livro, os autores retratam o episódio de 11 de setembro de 1973 da perspectiva da resistência, em uma narrativa que classificam como um documento histórico-ficcional, para  homenagear “esses que não são para nós simplesmente vítimas, mas são combatentes contra o golpe, contra a ditadura, contra Pinochet e sua corja”, afirma Lowÿ.

Os autores estiveram no Chile neste 11 de setembro de 2023 onde fizeram o lançamento do livro em espanhol e acompanharam as atividades em torno da efeméride do Golpe de 1973. Apesar das ações do governo de Gabriel Boric em torno da memória das vítimas do regime militar e do anúncio de que vai manter as buscas pelos desaparecidos, Lowÿ considera que é fundamental para a esquerda resgatar a memória do projeto socialista da Unidade Popular, partido de Salvador Allende.

“O discurso oficial, o que se vê mais ao nível das instituições, é a defesa da memória das vítimas. Que é importante, não estou criticando isso. Mas só a esquerda mais radical é que retoma o tema do que foi o projeto socialista.” A posição de Michael Löwy na época dos acontecimentos, como militante da Quarta Internacional na França, era de um apoio crítico em relação ao governo de Salvador Allende. Hoje, com o distanciamento histórico em relação àquele período, ele considera que o governo da Unidade Popular foi um processo revolucionário.

“Foi um processo revolucionário diferente dos outros, claro, com problemas, limites, contradições, como qualquer processo. Mas foi um autêntico processo revolucionário que foi interrompido pelo golpe.” Ao refletir sobre a efeméride do 11 de setembro, Löwy destaca que a principal lição dessa experiência para a luta de classes é que as classes dominantes só toleram a democracia enquanto não tiverem seus privilégios ameaçados.

“Por isso que nós somos anticapitalistas, pois achamos que o capitalismo é um sistema profundamente antidemocrático, que não hesita em lançar mão de golpes militares e fascismo se os seus interesses estiverem ameaçados.”

Leia a entrevista:

Brasil de Fato: Pensando no 11 de setembro de 73, você está lançando pela Autonomia Literária, junto com Olivier Besancenot, o livro Setembro vermelho, em que vocês abordam esse episódio de uma perspectiva da resistência. Como surgiu o projeto desse livro?

Michael Löwy: Bom, vou partir da nossa subjetividade, a minha e a do Oliver Besancenot. Para nós dois, essa história da Unidade Popular, da resistência, a história do MIR [Movimento de Esquerda Revolucionária], de Salvador Allende, isso faz parte da nossa identidade política, digamos. Nós temos o Chile no coração, por assim dizer. Eu há 50 anos e ele, que é mais jovem, mais recente, mas também de maneira muito forte.

Em função do 50º aniversário do golpe, nós tínhamos vontade de fazer alguma coisa para marcar o evento. A gente não quis fazer um livro de história científica porque já existem vários livros muito bons. Então resolvemos fazer uma coisa um pouco diferente, uma espécie de mistura entre história, semi ficção, gibi, cenário de teatro, cenário de filme… Um pouco a mistura disso tudo, sobretudo em forma de diálogos, justamente para dar também a dimensão subjetiva dos acontecimentos. Da parte dos criminosos, conspiradores golpistas, e da parte do Allende e de seus companheiros. Então esse é o espírito com que a gente escreveu esse livro. Tampouco é um texto de teoria política querendo tirar as lições da história.

Nós achamos que as lições do que foi essa experiência cabe à esquerda chilena, aos revolucionários chilenos. O nosso espírito era de contar o que aconteceu, uma espécie de relato direto, acessível para um público amplo e em forma viva de diálogos, sem essa pretensão de dar lições: “Allende devia ter feito isso,  a esquerda devia ter feito aquilo”. Não temos essa arrogância. Nós queremos simplesmente contar o que aconteceu e cada um tira as suas conclusões.

É claro, a gente pode dizer que há uma lição geral dessa história, dessa experiência, mas que vale para a luta de classes em geral. E essa lição é que para as oligarquias dominantes, para o imperialismo, a democracia só é tolerável enquanto ela não mexe com os privilégios do andar de cima. Se alguma coisa for em cima dos seus privilégios, aí pronto, se fecha a democracia. Então, isso é uma lição da história que a gente vê muitas vezes no curso do século XX até hoje.

Bom, então nosso espírito era uma homenagem. Quer dizer, era uma denúncia da conspiração imperialista, da oligarquia chilena, dos militares. E uma homenagem aos que lutaram contra o golpe, inclusive Salvador Allende, que aparece naquela famosa fotografia com o fuzil no ombro. E, claro, todos que combateram no Palácio La Moneda [sede do governo chileno] e que tentaram organizar a resistência, os cordões industriais. Essa primeira resistência também a gente relata.

A nossa intenção é dar uma homenagem a esses que não são para nós simplesmente vítimas, mas são combatentes contra o golpe, contra a ditadura, contra Pinochet e sua corja. É isso. Esse é o espírito com o qual a gente fez esse modesto livro. Modesto tanto pelas proporções, como pelo seu caráter humano, uma contribuição para esse 50º aniversário.

Vocês deram um foco grande nessa dimensão subjetiva, na construção de diálogos, e fizeram também uma narrativa cronológica, em especial em relação ao dia 11 de setembro, com base em pesquisa e entrevistas. Como foi a pesquisa documental para esse livro?

Mais uma vez, não é um livro científico, baseado numa grande pesquisa de documentos, mas nós consultamos alguns livros, sobretudo um que justamente faz o relato da primeira resistência. Nós entrevistamos duas ou três pessoas que a gente conhecia, a começar pela Carmen Castilho, companheira de Miguel Enríquez, que é um testemunho de primeira mão. E ela é um dos personagens da história também. E também entrevistamos uma companheira, a Helena Pina [Maria Pina Valenzuela, vulgo Helena], que era uma militante nossa da Liga Comunista Revolucionária na França durante muitos anos, também foi responsável da nossa livraria em Paris [La Brèche] e era uma grande amiga nossa. E ela tinha sido militante de um grupo trotskista no Chile nessa época, ou seja, na época da Unidade Popular, embora tivesse também simpatias pelo MIR e ela também nos contou as suas experiências, no dia golpe e tal. Então, ela também é um dos personagens da história, mas os personagens principais obviamente são o presidente Allende, seus conselheiros, sua guarda pessoal, etc.

Em relação à sua perspectiva pessoal, como militante da Quarta Internacional. Como você acompanhou esse processo que se desenvolveu no Chile durante o governo Allende e o que representou para você, na época, esse golpe de 1973?

Nós acompanhamos na França com muito interesse e esperança a Unidade Popular, mas temos uma certa distância crítica. Eu, por exemplo, escrevi um artiguinho na época, em 1972, de crítica da política econômica da Unidade Popular, que eu até tinha esquecido, e um amigo chileno me enviou recentemente, e eu reli. Cheguei à conclusão que não tinha entendido nada [risos]. Por quê? Bom, o artigo era uma crítica e até tinha certa legitimidade, mas era um pouco no espírito “mas o que eles estão esperando para avançar em direção ao socialismo mais depressa?”, “Por que não expropriam mais os capitalistas e tal?”, como se fosse tão simples.

E, sobretudo, não digo nada sobre o verdadeiro problema, que é como proteger esse processo de uma tentativa de golpe que o imperialismo estava preparando. Quer dizer, a única questão verdadeira, eu não coloco. Então, realmente estava fora de foco. Faço minha autocrítica. Bom, dito isso, a gente seguia muito a linha do MIR na época, era um pouco a nossa referência. Então, era um pouco apoio crítico, às vezes mais crítica, às vezes mais apoio. Quando veio o golpe, foi em parte uma surpresa. Em parte também não, porque muitos de nós, pelo menos, já considerávamos essa hipótese. Mas foi um golpe. Foi um impacto duro para toda a esquerda, não só para nós. Toda a esquerda na Europa tinha se identificado muito com a Unidade Popular, com o processo no Chile e alguns companheiros, na Quarta, tiraram uma conclusão que eu acho superficial, dizendo não, mas o Allende devia ter feito isso, devia ter feito aquilo, a culpa é dele, não sei o que.

Hoje em dia eu acho esse papo realmente furado. Quer dizer, a verdade é que cada vez mais estou convencido, os meus companheiros na Quarta também, em geral, que o que houve com a Unidade Popular, com o Allende, foi um verdadeiro processo revolucionário. Foi um processo revolucionário diferente dos outros, claro, com problemas, limites, contradições, como qualquer processo.

Mas foi um autêntico processo revolucionário que foi interrompido pelo golpe. Então essa é a análise que a gente faz hoje em dia. Depois do golpe, a minha convicção, e de outros companheiros também, era que “agora é a vez da resistência armada, agora é a vez do MIR”.

E o próprio Allende achava isso porque a última mensagem que ele mandou pro Miguel Enríquez era a seguinte: “a minha via, do caminho pacífico, não deu certo, agora é a tua”. Então eu tinha muito essa ilusão de que o MIR era um movimento de resistência enorme que ia talvez até poder derrubar a ditadura, talvez ia ser um grande combate. Não foi, não foi. E a gente se deu conta disso quando morreu o Miguel Enríquez. Quer dizer, para nós foi um golpe tão duro, talvez até mais do que o de setembro. Ou seja, eu já tinha muito essa esperança, essa ilusão de que o MIR ia ser capaz de talvez reproduzir o que foi a revolução cubana, alguma coisa assim. Nada. Então foi realmente uma decepção.

O livro traz essa  tentativa de resistência após o golpe de setembro. Os cordões industriais, as tentativas do MIR, vocês dão essa dimensão. Havia uma expectativa também de um apoio cubano? 

Esse apoio cubano era o seguinte: Cuba tinha mandado armas, não sei exatamente quantas, um estoquezinho de armas. E o Allende disse não, se eu distribuir isso, vai ter um golpe militar, então não posso. Ficaram lá. No dia do golpe, o Allende liberou e uma parte foi entregue para o pessoal dos cordões industriais, tem uma cena em que vem um caminhão com os fuzis da embaixada. Bom, mas era tarde. De qualquer maneira, eu acho que nem que se tivesse havido mais armas, isso não teria mudado, porque aquele pessoal não estava organizado como uma tropa, não tinha condições militares para enfrentar o exército.

Então, houve essa tentativa. Houve a primeira tentativa de resistência importante no Palácio de La Moneda, que durou horas. Cinco, seis horas de combate. Eles resistiram heroicamente, muitos morreram. Enfim, foi uma primeira batalha e depois houve a continuação e os cordões industriais também. Uma tentativa, mas não havia condições. Então, nós preferimos homenagear esses camaradas combatentes que lutaram, não ficaram de braços cruzados e tentaram resistir.

Trazendo para os dias de hoje, essa efeméride de 50 anos do golpe, olhando especificamente para o Chile, que está com o governo de esquerda, passou por um processo bastante intenso de mobilização popular e chegou a construir uma nova Constituinte, terminou não sendo aprovada, mas existe esse embate na sociedade chilena. O que você avalia nesse processo? Como você acha que as experiências da esquerda, da Unidade Popular, reverberam nesse momento?

Nós estivemos no Chile agora, eu e o Olivier Besancenot, para apresentar a edição chilena do nosso livro. Tivemos conversas com companheiros da esquerda chilena e a situação está complicada. Eu diria, comparando com o Brasil, que o governo de esquerda do Chile do Boric está na defensiva e os que eu chamo neofascistas estão na ofensiva.

No Brasil, em comparação, eu diria que é um pouquinho o contrário. A esquerda no governo, o Lula está um pouco na ofensiva, os bolsonaristas na defensiva. Eu estou simplificando, mas acho que é essa diferença. O Boric está numa situação difícil, ele não controla o Parlamento. Houve aquele maravilhoso levante popular dirigido pelas mulheres, uma coisa realmente extraordinária. Primeira vez na história que a gente tem uma verdadeira semi-insurreição popular dirigida pelas mulheres. Eu acho que daqui para diante vai ser cada vez mais assim, já aconteceu também no Irã, também foram as mulheres. Foi uma coisa extraordinária, que ainda tem continuidade.

Quando a gente esteve lá Santiago, na véspera do 11, houve uma manifestação de mulheres em torno do Palácio La Moneda, todas vestidas de negro, com uma vela. Impressionante, dezenas de milhares de mulheres, de todas as classes, de todas as idades. Realmente impressionante. Então tem esse potencial de mobilização das mulheres, que é extraordinário. Agora o estalido, como dizia, essa semi insurreição, a vitória da esquerda na Constituinte, a redação de uma Constituinte bastante avançada, acabaram sendo rejeitados. Então houve uma derrota agravada pelo fato que a nova Constituinte eleita é controlada pelos neofascistas, pelos pinochetistas, isso é um desastre. Então o governo de esquerda já não era muito radical, está bem na defensiva.

O Boric, no dia 11 de setembro, fez algumas declarações modestas, dizendo “temos que reclamar a herança do Allende, que era um democrata e um homem que lutou pela justiça social”, não falou em socialismo, e “não podemos ficar neutros diante do que foi o golpe Pinochet”. Aí a direita caiu em cima: “ isso é um discurso partidário, você está dividindo a nação”. Uma coisa realmente terrível. Então a esquerda está na defensiva e os fascistas na ofensiva. A situação é complicada e a esquerda mais radical está fora do governo e faz críticas, em parte com razão, mas às vezes de maneira um pouco sectária. Está muito dividida, fragmentada. Os partidários do MIR, por exemplo, da herança do MIR, são os dez ou 15 grupinhos muito simpáticos, mas não têm peso. Está muito fragmentado, contrariamente ao Brasil. Então é uma situação complicada, mas tem um grande potencial, que é o do movimento das mulheres, dos pobladores, dos mapuches, uma parte da classe operária, dos sindicatos. Há um potencial, mas por enquanto os fascistas é que estão na ofensiva.

No livro vocês trazem a questão da memória em relação a esse período, a partir dessa perspectiva subjetiva. O Chile trabalhou a memória desse período de uma maneira diferente da que a gente trabalhou aqui no Brasil. Queria que você falasse um pouco sobre a importância de trazer a memória desse período, de que outras formas a gente pode olhar para que ela não se perca, para que a gente possa realmente aprender com esses episódios?

Veja, nós achamos, Olivier e eu, que a memória é uma coisa muito importante para o movimento operário, para o socialismo e para a revolução. Sem memória do passado, não vai haver luta pelo futuro. Então, é muito importante a gente, digamos, salvaguardar a memória dos nossos lutadores. Foram vencidos, precisamos salvaguardar a memória deles. Uma das formas que se faz isso o Chile é a [partir] das vítimas, o que é legítimo. Quer dizer, a começar pelo Allende e por todos que foram torturados, assassinados e desaparecidos. Então, há todo um trabalho de memória em cima disso no Chile, muito importante.

Por exemplo, nós visitamos um antigo centro de tortura, Villa Grimaldi, agora uma espécie de museu dos crimes da ditadura. É muito impactante e muito emotivo. Tem também desenhos feitos pelos sobreviventes. É o lugar onde ficavam as mulheres. É muito impressionante a que ponto esses golpistas eram selvagens, criminais, torturadores, uma coisa terrível, pior do que no Brasil. Então, essa parte da memória está muito presente, inclusive no discurso oficial do Boric. Você vê que o Boric lançou agora um programa de procura dos desaparecidos, que é uma coisa que aparece muito nas manifestações, é o cartaz com uma fotografia dizendo “donde está?”. Onde é que estão os nossos desaparecidos? Que é compreensível, embora não seja muito concreto, porque muitos foram jogados no mar, desapareceram.

No entanto é essa batalha: onde estão os desaparecidos? E o Boric responde a isso, dizendo “vamos procurar, vamos criar uma comissão de investigação, tem fossas comuns”.  Então essa parte está muito presente, as vítimas, denúncia dos crimes da ditadura.

O que falta um pouco é a memória do projeto socialista da Unidade Popular, porque o Allende realmente queria o socialismo, não queria um capitalismo mais democrata. Ele queria realmente chegar ao socialismo, mas por uma via pacífica, sem a guerra fria. Infelizmente, não foi possível.

Então, isso quem resgata mais é a esquerda mais radical. O discurso oficial, o que se vê mais ao nível das instituições, é a defesa, a memória das vítimas. Que é importante, não estou criticando isso. Mas só a esquerda mais radical é que retoma o tema do que foi o projeto socialista. Então, os meus amigos, o pessoal que publicou o nosso livro, junto com o nosso livro eles publicaram um outro livrinho que chama Allende revolucionário. Então eles analisam o processo do Allende e da Unidade Popular do ponto de vista do projeto socialista, que era um projeto revolucionário. Então, isso eu acho muito importante, e uma parte da esquerda mais radical que está fazendo isso.

O Brasil tinha uma ligação com o Chile. Depois que houve o golpe aqui muitos foram para o Chile, existia uma cooperação. Você vê isso hoje em dia ou acha que isso se perdeu um pouco? 

Com efeito, havia milhares de brasileiros exilados no Chile na época da Unidade Popular. Depois veio o golpe, tiveram que fugir, se refugiar nas embaixadas. Alguns foram assassinados. Há cinco ou seis brasileiros que foram assassinados pela ditadura [chilena]. Dois deles eram ligados à Quarta Internacional. Houve agora um encontro de brasileiros no Chile, daqueles que tinham estado lá na época.

Eu participei, embora não tivesse estado lá, encontrei com eles, conversamos. Há essa essa relação forte, histórica digamos, entre a esquerda brasileira, por exemplo, o pessoal todo que fundou a Teoria da Dependência no Brasil, Theotonio dos Santos, Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini e todos eles estiveram exilados no Chile. Todos eles viveram a experiência da Unidade Popular, essa relação era realmente muito, muito forte.

Hoje em dia isso um pouco se perdeu. Claro, aqui se conhece a experiência chilena. Se tem uma ideia, mais ou menos, se acompanha o que está acontecendo no Chile. Mas não vejo assim uma conexão tão direta como chegou a haver nos anos 70, porque a situação é diferente. São dois governos de esquerda, mas também não se entendem muito, porque têm posições diferentes sobre alguns problemas, enfim, não vou entrar nos detalhes.

Mas há um discurso diferente do Boric e do Lula. E a esquerda radical no Chile não conhece o que se passa no Brasil e vice versa. Hoje em dia, infelizmente, há menos relação e eu acho que seria bom tentar reativar, digamos, no quadro latino americano, restabelecer vínculos entre a esquerda brasileira e a esquerda mais avançada nos outros países. No campo, no caso do movimento camponês, isso existe através da Via Campesina. Mas no quadro propriamente dos movimentos políticos é muito menos.

O Brasil lidou de forma diferente do Chile em relação à memória do período autoritário.  Tivemos a Comissão da Verdade, uma demanda histórica que tinha sido cumprida por parte dos familiares das vítimas. Mas isso teve muita resistência, gerou insatisfação no meio militar e talvez tenha contribuindo inclusive para esse processo do fascismo mais recente do Bolsonaro. Como você vê essa questão da memória no Brasil em relação a esse período? 

Pois é, o Brasil tem uma característica que é um pouco negativa, que é um dos poucos países onde houve ditadura militar que quando terminou, ficou uma total impunidade. Não houve punição dos criminosos da ditadura, enquanto que no Chile, alguma coisa houve, não muito. Pinochet, por exemplo, escapou. Mas o chefe da polícia política está na cadeia e não vai sair tão cedo. Bom, aqui nada. Então isso é um problema. Houve a Comissão da Verdade, que foi importante. Foi muito justo, um avanço, uma das coisas boas que fez o PT no governo. Agora, efetivamente, os militares não engoliram isso, eles não estão dispostos a reconhecer que o golpe não foi legítimo e que os crimes que eles cometeram são realmente sinistros. Isso é um problema grave.

O Bolsonaro agitou isso, levantou a bandeira esfarrapada da ditadura, justificou tudo, a tortura, todos os crimes da ditadura. Uma das coisas tristes é que apesar disso, ele foi eleito. Não acho que foi eleito por causa disso. Mas os eleitores dele não davam bola. Achavam que isso era um detalhe sem importância. Qualquer coisa que ele dissesse, eles não davam bola. Precisamos matar 30.000 comunistas, “ah, ele exagerou um pouco”. É complicado, o neofascismo no Brasil é complicado. Mas a Comissão da Verdade fez um trabalho muito bom. Não sei se as Forças Armadas vão conseguir se libertar dessa herança pesada. Não sei. Não sei se é só a velha guarda que mantém isso ou se é todo exército, nós vamos ver no futuro.

Mas enfim, fica uma lição do Chile, do Brasil, de toda a história América Latina: no capitalismo constantemente vai haver novos golpes, novos fascismos, não vai parar. Agora o neofascismo chegou no centro, também nos Estados Unidos. Por isso que nós somos anticapitalistas, pois achamos que o capitalismo é um sistema profundamente antidemocrático, que não hesita em lançar mão de golpes militares e fascismo se os seus interesses estiverem ameaçados.

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