‘Minha mãe foi obrigada a deixar Alemanha para não ser morta, e agora me negam cidadania alemã’

Ursula Michel em Mannheim no verão de 1939Ursula Michel em 1939, antes de ser levada pelo ‘Kindertransport’ para o Reino Unido
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Um advogado britânico acusa o governo alemão de violar a Constituição do país ao se recusar a conceder cidadania a milhares de descendentes de vítimas do nazismo. Ele argumenta que a lei começou a ser mal aplicada sob a influência de ex-nazistas nas décadas de 1950 e 1960 — e que continua sendo aplicada até hoje de maneira equivocada.

James Strauss morou a vida toda em Nova York, mas na década de 1930 sua família administrava uma pousada e um açougue na cidade de Gunzenhausen, ao sul de Nuremberg, na Alemanha. Foi ali que um evento conhecido como massacre do Domingo de Ramos Sangrento ocorreu em março de 1934, tendo como epicentro a hospedaria. Enquanto os nazistas se amotinavam na cidade, dois judeus foram assassinados e Julius Strauss, pai de James, foi espancado até ficar inconsciente e levado para a prisão.

O massacre é reconhecido pelos historiadores como um dos piores incidentes antissemitas na Alemanha antes da chamada Noite dos Cristais em novembro de 1938.

O líder do ataque, Kurt Baer, ​​membro da SA, força paramilitar nazista, foi julgado e chegou a ser preso — mas foi logo libertado por um juiz que simpatizava com o nazismo.

Ele voltou então à pousada para se vingar, atirando e ferindo seriamente Julius, que tinha 27 anos na época, e assassinando seu pai, Simon.

Baer foi mais tarde condenado à prisão perpétua, mas recebeu anistia após cumprir quatro anos de pena.

Biergarten dos Gunzenhausen antes do massacreBiergarten (jardim com mesas compartilhadas para tomar cerveja) da pousada dos Strauss, em Gunzenhausen, antes do massacre

Assim que conseguiu, Julius fugiu da Alemanha com medo de ser morto e se estabeleceu em Nova York, onde conheceu e se casou com uma refugiada judia alemã. Mas ele nunca se recuperou completamente do ataque — como não foi possível retirar as balas de chumbo do seu corpo, ele morreu em decorrência dos ferimentos em 1956, no nono aniversário do seu filho James.

Julius StraussJulius Strauss na década de 1950

Quase 60 anos depois, em 2015, James Strauss decidiu fazer uma viagem a Gunzenhausen.

“Conheci jovens estudantes adoráveis e autoridades locais que trabalham duro para manter viva a memória desse terrível incidente”, conta. “Fiquei impressionado com o conhecimento deles.”

Strauss retornou aos EUA com “uma sensação boa” em relação à Alemanha moderna e decidiu que “em homenagem ao pai e ao trabalho positivo que havia sido feito em Gunzenhausen”, reivindicaria o direito de obter a cidadania alemã da família.

James Strauss no museu de Gunzenhausen
James Strauss no museu de Gunzenhausen

Ao fazer a solicitação em 2017, ele achava que seu caso era incontestável. “Mas quando cheguei com os documentos ao consulado de Nova York, fui avisado que havia um problema”, diz ele.

Informaram a Strauss que ele não era elegível à cidadania porque seu pai se tornou americano em 1940 — antes de ter perdido oficialmente a nacionalidade alemã.

Embora a legislação tenha sido aprovada em 1933, permitindo privar os judeus alemães da cidadania — bastando para isso publicar seus nomes no jornal —, em muitos casos, isso só aconteceu na desnaturalização em massa de todos os judeus que haviam fugido do país, em novembro de 1941.

O artigo 116 da Constituição alemã do pós-guerra afirma que os descendentes de pessoas privadas de sua cidadania durante o nazismo “devem ter, mediante pedido, sua cidadania restaurada”. Mas as autoridades alemãs estão recusando a solicitação de descendentes de pessoas como Julius Strauss, alegando que eles deixaram o país “voluntariamente”.

É um argumento que vai contra os fatos históricos. Se Julius Strauss tivesse ficado na Alemanha, ele teria morrido no campo de concentração de Dachau, como os outros judeus que moravam em Gunzenhausen.

James Strauss está furioso e determinado a contestar o indeferimento do pedido.

“É uma traição não apenas à minha família, mas à nova Alemanha e aos estudantes que trabalharam tanto”, diz ele.

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No ano passado, o advogado Felix Couchman, baseado em Londres, trabalhou horas extras, viajando de um lado para o outro na Alemanha e montando um caso para convencer — ou forçar — o governo alemão a parar de excluir várias categorias de judeus do artigo 116.

James Strauss é um dos mais de 100 descendentes de vítimas do nazismo que tiveram seus pedidos rejeitados e procuraram a ajuda de Couchman. Essas pessoas — do Reino Unido, Austrália, Canadá, Colômbia, Israel e EUA — se juntaram no grupo Excluídos do Artigo 116, organizado por Couchman com o intuito de defender o caso e, se necessário, levar até o Tribunal Constitucional da Alemanha.

Felix e Isabelle CouchmanFelix Couchman com a esposa Isabelle, que também atua na campanha

Enquanto a solicitação de Strauss foi estimulada por uma admiração pela nova Alemanha, no Reino Unido os pedidos de cidadania alemã aumentaram após o referendo de 2016, em que a população decidiu pela saída da União Europeia, o chamado Brexit.

Em 2018, 1.506 solicitações de cidadania alemã foram feitas no Reino Unido, em comparação com 43 em 2015. Mas Couchman diz que, embora o Brexit tenha sido o catalisador da ação coletiva, não é simplesmente um problema do referendo. O Brexit serviu apenas para revelar uma prática “moralmente e eticamente errada”, diz ele.

A maneira como o artigo 116 foi interpretado vai contra o espírito da Constituição, argumenta ele, e ignora “o quanto essas pessoas sofreram sob o Terceiro Reich”.

A mãe de Judith Rhodes, Ursula Michel, foi para o Reino Unido em 1939 no chamado Kindertransport, a operação humanitária que resgatou milhares de crianças judias, deixando seus pais para trás.

“Sua vida foi fraturada e ela nunca superou a culpa de ter sobrevivido”, diz Rhodes. Toda a família dela morreu no Holocausto.

Rhodes, que vive em Yorkshire, participa de atividades educativas sobre o Holocausto na cidade natal de sua mãe, Ludwigshafen am Rhein — ela mostra aos alunos a pequena mala que a mãe foi autorizada a levar com ela.

Para facilitar a continuidade desse trabalho após o Brexit, Rhodes decidiu solicitar a cidadania alemã. Mas foi recusada.

Judith Rhodes com a mala da mãe e alguns pertences que ela levouJudith Rhodes mostra a bagagem que a mãe levou no ‘Kindertransport’

O pedido de Rhodes foi rejeitado com base no argumento de que ela havia nascido antes de 1º de abril de 1953, de uma mãe alemã casada com um inglês. Se tivesse sido o contrário (e o pai fosse alemão), é provável que a cidadania tivesse sido concedida.

“Estou furiosa porque acho que a decisão discrimina as mulheres. Estamos no século 21, e esse tipo de discriminação sexual não deveria ser permitido”, afirma.

“Acho que a postura do governo alemão é de que os judeus deveriam ter permanecido no Terceiro Reich e não ter fugido em busca de segurança. É como uma companhia de seguros dizer ao proprietário de um imóvel que não vai pagar (o seguro) porque ele não permaneceu na casa em chamas combatendo o fogo.”

Ursula Michel como bebê em 1924Ursula Michel como bebê em 1924

A mãe de Felix Couchman também chegou ao Reino Unido no Kindertransport. Ele criou o grupo Excluídos do Artigo 116 quando, assim como Judith Rhodes, um de seus irmãos foi informado pelo Consulado Alemão em Londres de que não era elegível para solicitar a cidadania alemã. Embora o artigo 116 diga que descendentes de alemães privados de cidadania “devem ter sua cidadania restaurada”, o consulado argumentou que, segundo a lei de naturalização alemã, a cidadania só podia ser transmitida pelo pai até os anos 1970.

Apesar de não pensar em solicitar a cidadania alemã e nunca ter se envolvido em qualquer tipo de campanha antes, Couchman decidiu tomar uma atitude.

“Embora minha mãe tenha morrido em 2001, eu tinha plena consciência do que ela esperava que eu fizesse.”

“Acho que o governo alemão pensou que éramos um bando de senhorinhas tomando chá”, diz rindo, “mas a estrutura moral da nossa campanha significa que não vamos embora. Eles ficaram surpresos com a nossa determinação”.


Como o governo alemão interpreta o artigo 116

O direito automático à cidadania é negado a pessoas:

– Nascidas fora do casamento, antes de 1993, de pai que era alemão e mãe estrangeira;

– Adotadas por pais que eram alemães antes de 1977;

– Cujo antepassado obteve a cidadania estrangeira antes de perder a cidadania alemã;

– Nascidas antes de 1º de abril de 1953 de pai estrangeiro e mãe alemã, que fugiu da Alemanha antes de perder a cidadania;

– Nascidas após 31 de dezembro de 1999;

– Cujos antepassados ​​eram judeus membros de comunidades alemãs anexadas pelos nazistas durante a expansão militar, como Danzig (Polônia) e Sudentenland (Tchecoslováquia) (os alemães não-judeus nessas áreas foram naturalizados em massa, mas os judeus não).


O interesse pela campanha ganhou força. A esposa de Couchman, Isabelle, atende às centenas de pessoas que entraram em contato com o grupo. “Alguns são muito idosos e sofreram muito”, diz ela. “Alguns perderam toda a família no Holocausto.”

Enquanto Couchman e Nick Courtman, estudante de doutorado da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, fazem lobby com partidos políticos na Alemanha, Isabelle administra uma rede de apoio.

“As pessoas ficam muito emocionadas e costumam chorar no telefone quando me ligam”, conta. “Pode levar meses até decidirem se querem levar essa batalha adiante”. Alguns são idosos sobreviventes do Holocausto, crianças do Kindertransport, por exemplo, que ainda estão traumatizados por suas experiências.

O ponto central do processo de Couchman contra o governo alemão é a atmosfera em que o artigo 116 foi implementado. “Fomos informados por várias fontes sobre a influência nazista em relação à maneira como a lei foi interpretada nas décadas de 1950 e 1960”, afirma.

O chefe do departamento do Ministério do Interior que lidava com os pedidos de residência e asilo na época era Kurt Breull, um ex-nazista que havia deixado claro seu ponto de vista antissemita na década de 1930.

Kurt BreullApós a guerra, Kurt Breull teria mentido sobre a data em que ingressou no Partido Nazista
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Foi nesse período que pessoas como Julius Strauss, que fugiram do país e adotaram outra nacionalidade antes de terem sido privadas de sua cidadania alemã, foram consideradas inelegíveis — além de judeus que viveram em territórios do leste europeu ocupados pela Alemanha, como Danzig (agora Gdansk, na Polônia).

“Temos que entender como essas exclusões surgiram para corrigi-las”, diz Couchman.

Ulrich Scheuner
Professor Ulrich Scheuner, ex-defensor do nazismo

Nick Courtman estudou as investigações do próprio governo alemão sobre o fracasso da desnazificação — e encontrou documentos que mostram que o Ministério do Interior estava ciente da controvérsia em torno do artigo 116 nos anos 1950, quando foi criada uma comissão para analisar possíveis reformas.

Essa comissão foi liderada pelo professor Ulrich Scheuner, um ex-defensor do nazismo que, segundo os documentos, apoiava a prática de tentar excluir certos grupos.

“Essa influência ainda filtra e afeta as decisões hoje, uma vez que estabelece precedentes”, diz Couchman.

Em agosto, o grupo Excluídos do Artigo 116 venceu sua primeira batalha. O governo alemão publicou dois decretos, após a pressão feita pelo grupo, permitindo que alguns descendentes de vítimas do regime nazista solicitem naturalização discricionária sob a Lei da Nacionalidade.

O governo alemão diz que os decretos facilitam a obtenção da cidadania alemã “para os solicitantes que sofreram injustiças históricas semelhantes às estabelecidas no [artigo 116], mas não têm direito a restaurar (a cidadania) sob esse artigo por razões legais”.

Em nota enviada à BBC, o governo afirma que “aprecia muito” o fato de que descendentes de vítimas da perseguição feita pelo Partido Nacional-Socialista agora queiram obter a cidadania alemã e diz que os novos decretos “oferecem uma regra rápida e diretamente aplicável… reduzindo ao mínimo os requisitos da cidadania para as pessoas elegíveis”.

Judith Rhodes é uma das pessoas que, em tese, pode preencher requisitos, mas apenas se fizer uma série de provas de idioma e cidadania. Ela diz que isso ainda é discriminatório e se ressente de “ser convidada a passar por tanta burocracia”.

Para Couchman, as concessões são “uma resolução parcial, mas não cobrem todas as exclusões”. Crianças adotadas, por exemplo, ainda não são consideradas elegíveis.

“É um ato discricionário que você precisa implorar”, diz ele. “O que queremos é nosso direito constitucional nos termos do artigo 116.”

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O grupo de Couchman tem alguns aliados poderosos e conseguiu obter o apoio de partidos da oposição — os Verdes, o Die Linke (partido de esquerda) e o Partido Democrático Liberal (FDP) — que estão liderando uma investigação parlamentar sobre o assunto. E ainda está buscando o apoio de partidos que integram a coalizão de governo, a União Democrata-Cristã (CDU) e o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD).

Couchman lembra que em setembro o Parlamento da Áustria aprovou por unanimidade uma lei que estende a cidadania aos descendentes de vítimas do nazismo que fugiram do Terceiro Reich.

“Se a Áustria é capaz de aprovar uma legislação para corrigir questões relativas à concessão da cidadania passando por cima das divisões partidárias, não vejo por que isso não pode ser feito na Alemanha”, acrescenta.

A luta tomou conta da vida dos Couchmans. O casal trabalha nos fins de semana e até altas horas da noite. Os dois filhos adolescentes se encarregam das refeições entre os estudos para as provas.

É a história pessoal da família que os move. O avô de Couchman, Fritz Beckhardt, era um aviador alemão e herói da Primeira Guerra Mundial, mas depois que os nazistas chegaram ao poder, seu passado na guerra foi apagado dos livros de história.

Fritz Beckhardt em seu avião de combateFritz Beckhardt em seu avião de combate

A mãe de Couchman, Suse Beckhardt, nasceu em 1930 em Wiesbaden. Quando ela tinha sete anos, seu pai teve um caso com uma mulher ariana, o que era considerado um crime para os nazistas, e foi enviado para o campo de concentração de Buchenwald.

“Um amigo dele da Força Aérea, um proeminente advogado judeu, Berthold Guthmann, decidiu fazer um apelo a Herman Goering, um dos líderes nazistas mais poderosos, que era um dos seus colegas de guerra”, diz Couchman.

Extraordinariamente, Fritz foi libertado de Buchenwald em 1940 e orientado a deixar o país. Antes de partir, prometeu à irmã e aos sogros que voltaria. Nenhum deles sobreviveu ao Holocausto. Tampouco seu amigo Guthmann, que foi enviado para o campo de concentração de Auschwitz.

Beckhardt e a esposa chegaram ao Reino Unido em 1940, mas foram confinados com outros cidadãos alemães, na Ilha de Man. Somente em 1943 conseguiram se reencontrar com os filhos, que haviam fugido no Kindertransport antes da guerra.

Documento do 'Kindertransport' de Suse BeckhardtDocumento do ‘Kindertransport’ de Suse Beckhardt (ela não gostava de seu primeiro nome, Hilde)

Determinado a cumprir a promessa feita à família, Fritz Beckhardt retornou à Alemanha na década de 1950 para lutar pela retomada da propriedade e dos negócios da família.

“Ele lutou sem parar”, diz seu neto, Couchman, cuja mãe permaneceu no Reino Unido.

“A loja não dava lucro porque as pessoas ainda não gostavam de fazer compras em estabelecimentos de judeus na década de 1950, mas ele não fechou o negócio. Você luta pelo que acredita ser certo.”

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