Por Ivanisa Teitelroit Martins
O dia que Franklin não voltou para casa e a aplicação do manual de segurança redigido pelo coletivo da organização revolucionária
(Vinte dias antes da promulgação da Lei da Anistia)
Não consegui queimar os documentos originais (textos políticos) que guardávamos em um baú de vime, orientação que havia recebido. Eu os reuni dentro de uma maleta e saí na madrugada pela rua fazendo o chequeio de costume. Fui em direção ao outro lado da cidade de São Paulo, onde moravam meus companheiros que eram operários. Ao chegar entreguei a eles a maleta para que encaminhassem os documentos à direção. No dia seguinte combinamos que um companheiro iria ao nosso endereço para averiguar se já haviam encontrado o lugar em que morávamos. E eu segui para o Comitê Brasileiro pela Anistia, no Centro, para ter notícias.
Ao chegar lá fui recebida por Airton Soares, que me tranquilizou, dizendo que meu companheiro havia sido perseguido e que estava em lugar seguro. Na verdade a perseguição ao Franklin ocorreu na cobertura de um ponto. Ele passou a ser seguido e calmamente foi arrancando páginas de sua agenda de notas, colocando-as na boca e as mastigando. Parava em um bar para tomar um gole de água para poder engolir. Em um dado momento, os agentes da repressão que o seguiam, passaram um pacote de um para o outro. Franklin teve a nítida impressão que se tratava de uma arma de fogo. Atravessou as duas pistas da Faria Lima com agilidade. Tomou um taxi, dirigiu-se à Assembleia Legislativa de São Paulo, cujo presidente era Robson Marinho. Ao entrar seguiu para o gabinete do presidente que ordenou o fechamento da Assembleia para proibir a entrada de agentes da ditadura. Voltando à minha situação em paralelo: foi-me entregue um número de telefone para que eu fizesse uma ligação em uma central telefônica. Ao sair e passar por um tapume percebi um movimento estranho de dois homens que cruzaram o meu caminho e me perguntaram: “Com medo?”
Tomei um táxi e pedi que fôssemos para a central telefônica mais próxima. Ao chegar lá percebi que se tratava de uma rua sem saída. Prestes a descer virei para trás e consegui visualizar dois carros parados à distância com as luzes acesas. Dei-me conta de que havia quatro homens em cada carro apesar do escuro da noite e da pouca iluminação pública. Garoava. Voltei para dentro do carro e disse ao taxista que estava sendo seguida por motivos políticos. O taxista, sem olhar para mim, disse somente: “Deixa comigo, vamos dar um chapéu neles”, um homem do povo.
Voltamos à avenida principal e durante duas horas eu orientei, segundo o manual de segurança, a estratégia a ser adotada nessa situação, com o sangue frio que me era exigido. Pelas avenidas corríamos para depois entrar nas travessas de modo mais lento. Parávamos e checávamos se eles continuavam nos seguindo. Na primeira parada percebemos que somente um carro continuava atrás de nós e parara a uma distância em que tanto eles como nós podíamos nos ver. Continuamos com a mesma estratégia até a zona sul da cidade. No meio do trânsito decidimos que eu devia saltar e procurar ajuda porque com certeza eles já tinham o número da placa do carro. Desci e fui até a central telefônica mais próxima. Tinha o número de telefone de Luiz Eduardo Greenhalgh. Liguei para ele, que me atendeu com serenidade. Marcamos um ponto na zona norte da cidade, em Santana. Entrei em seu carro e ele me levou à sua casa, onde estavam algumas pessoas reunidas.
No dia seguinte Greenhalgh me levou ao aeroporto e me colocou no voo pela pista.
Ao chegar à cidade do Rio de Janeiro me dirigi à sede do Jornal do Brasil para encontrar minha cunhada, que trabalhava como chefe de reportagem. Entrei com o cuidado de não me identificar. Era a segunda vez que a encontrava. Ela chamou Técio Lins e Silva, que me levou a um local que me serviu de esconderijo. Fiquei só.
No dia da promulgação da Anistia, dia 28 de agosto de 1979, ouvia a notícia pelo rádio. Continuei escondida. Meu companheiro seria anistiado somente três meses depois por ter sido processado e condenado à revelia pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick.
Duas semanas depois foi montado um esquema para que eu reencontrasse meu companheiro. Foi marcado um ponto ao qual compareci. Tomei o carro com mais três companheiros e subimos a serra. Ao nos aproximarmos do local fui vendada para não saber onde me levavam.
Cheguei finalmente e encontrei meu companheiro. Ele me disse: “Como o Fernando Gabeira pôde publicar um livro sobre o sequestro do embaixador americano sem conversar com os outros companheiros que participaram da ação?”
A volta do exílio foi muito comemorada, mas aqueles que, como nós, continuavam clandestinos, precisaram esperar mais algum tempo para ter onde morar. Foram muitos episódios de enfrentamento e luta durante o período da ditadura.