Os bebês roubados no Chile: ‘Procuro há 30 anos meu filho levado em hospital’
Em 1988, Sara Jineo levou seu bebê recém-nascido para o hospital em Temuco, sul do Chile. Mas uma mulher tirou seu filho de seus braços e nunca o trouxe de volta.
“Eles disseram que fariam um exame de sangue nele, mas me enganaram. Procurei por todo o hospital e pedi ajuda a um policial, que olhou para mim, riu e disse que eu estava louca”, diz ela.
Desde então, Sara procura seu filho Camilo. Ela está convencida de que ele foi levado para o exterior após um motorista de táxi local dizer ter visto uma mulher carregando um bebê chorando para o aeroporto local no mesmo dia em que Camilo desapareceu. Aparentemente, a criança estaria enrolada no mesmo cobertor que Sara havia usado.
Sua situação não é excepcional. Sara faz parte de uma geração de mães e filhos que tentam se encontrar após serem involuntariamente separados entre 1973 a 1990, durante o regime militar do general Augusto Pinochet (1915-2006).
Cerca de 20 mil crianças foram adotadas por casais estrangeiros neste período. O Tribunal de Apelações do Chile diz que pelo menos 8 mil dos casos são considerados suspeitos, mas alguns ativistas acreditam que o número é muito maior.
Muitas destas mães, incluindo Sara, eram mapuche, a maior comunidade indígena do Chile, que responde por cerca de 7,5% da população de 17 milhões de pessoas do país. Os mapuche geralmente vivem na pobreza em áreas rurais do sul do Chile e dizem que são tratados como cidadãos de segunda classe, privados de sua terra e cultura.
Embora as adoções ilegais não tenham começado durante os anos de Pinochet — e muitas também aconteceram na Argentina — , elas se intensificaram durante o regime e com um objetivo específico.
O governo Pinochet queria eliminar a pobreza extrema, principalmente entre as crianças. A estratégia era simplesmente levá-las para fora do país, de acordo com Jeanette Velásquez, que trabalha para o grupo voluntário Hijos e Madres del Silencio (filhos e mães do silêncio, em espanhol).
Ela diz que assistentes sociais, freiras, médicos, advogados e agências internacionais de adoção estiveram envolvidos em uma operação delicada, que enviou bebês a países desenvolvidos, incluindo Holanda, Estados Unidos, Suécia e Alemanha.
“Algumas mulheres me contam histórias horríveis sobre como estavam amamentando quando seu bebê foi retirado de seus braços. Houve muita violência”, diz ela.
Em outros casos, a pressão era mais psicológica. As assistentes sociais diziam às mães que elas eram pobres demais para cuidar dos seus filhos ou que já tinham muitos e seriam incapazes de sustentar mais um.
Um reencontro após mais de 30 anos
Mães vulneráveis, principalmente solteiras, foram alvo desta política. Algumas mulheres foram forçadas a assinar papéis que não entendiam ou informadas de que seus filhos haviam morrido.
A mãe de Alejandro Quezada foi uma dessas mulheres. Ela tinha apenas 14 anos, estava solteira e vivia em uma área rural nos arredores de Valdivia, no sul do país.
Logo após o parto em casa, levou seu bebê para fazer exames em um hospital local. Lá, ele foi levado para longe dela, porque funcionários diziam que ele estava doente. Mais tarde, foi informada de que ele havia morrido e que seu corpo já havia sido descartado. “Quando ela começou a gritar, eles lhe deram uma injeção que a apagou por três dias”, diz Quezada.
Mulheres como a mãe biológica de Alejandro nunca receberam atestados de óbito ou permissão para ver os corpos de seus filhos. Foram informadas de que isso as abalaria, e o clima de medo durante a era Pinochet as impediu de fazer mais perguntas.
Alejandro só começou a ligar os pontos de sua história mais tarde na vida e descobriu que, em 1979, com apenas algumas semanas, foi enviado para a Holanda.
Ele foi adotado por um casal holandês que queria ajudar países mais pobres e foi informado de que a mãe de Quezada o havia dado voluntariamente para adoção. “Na adolescência, tive muitas dúvidas sobre minha identidade. Embora eu ame meus pais adotivos, me sentia deprimido e sozinho”, diz ele.
Em 1997, aos 17 anos, Quezada viajou para o Chile com sua família adotiva para conhecer a freira holandesa que havia cuidado de sua adoção. Ela o levou para conhecer sua mãe biológica.
Ele imediatamente notou sua semelhança física, mas não foi um encontro fácil. “Tinha tantas perguntas para ela, e foi muito frustrante, porque não conseguimos nos entender, e a freira não nos deixou juntos por muito tempo”, diz Quezada.
Alejandro decidiu aprender espanhol para que ele e sua mãe biológica pudessem conversar sem um tradutor. Somente aos 30 anos, morando no Chile, ele finalmente descobriu a verdade: sua mãe nunca o deu para adoção, e disseram a ela que Quezada havia morrido.
A freira que organizou a adoção e costumava ir e vir entre os dois países agora vive na Holanda. Ela hoje fala publicamente sobre as adoções em que esteve envolvida e insiste que fez a coisa certa, por acreditar ter proporcionado uma vida melhor para aquelas crianças.
As experiências de Alejandro o levaram a criar uma instituição de caridade, a Chilean Adoptees Worldwide (adotados chilenos no mundo, em tradução livre), que ajuda outros como ele a encontrar suas mães.
Investigação busca reunir mães e filhos
A pesquisa geralmente é árdua. Os documentos de adoção raramente informam os nomes completos de ambos os pais. Às vezes, os dados foram deliberadamente alterados.
Alejandro descobriu que o cartório na capital, Santiago, é uma boa fonte de informação, porque certidões de nascimento manuscritas originais às vezes contêm pistas.
Uma investigação do governo começou em 2018, quando as mães exigiram respostas sobre por que seus filhos foram tirados delas contra sua vontade.
Um número crescente de pessoas que tiradas de suas mães biológicas começaram a descobrir a verdade por trás de suas adoções desde então, e 200 mães se reencontraram com seus filhos até hoje.
Devido ao crescente número de reclamações, uma unidade policial especial foi criada em março passado, que trabalha com mães em regiões de onde se pensa que muitas crianças foram levadas.
O governo e instituições de caridade que ajudam estas mães querem que elas façam o exame para um banco de dados central gerenciado pelo governo que ajudará os adotados a encontrar sua família biológica. Mas espera-se que as mulheres paguem os custos, e cada kit custa cerca de US$ 100 (R$ 416), cerca de meio mês de salário para a maioria delas.
Nem todo mundo está convencido de que os investigadores estão se esforçando o suficiente. Os críticos da iniciativa dizem que o Estado chileno está tentando proteger juízes, assistentes sociais, freiras e outros envolvidos.
Eles afirmam que, para que a justiça seja cumprida, a idade avançada e a saúde precária de alguns dos suspeitos de terem participado do esquema de adoção forçada não devem ser uma barreira para o processo.
Jaime Balmaceda, juiz do Tribunal de Apelações, é responsável por descobrir quais das adoções foram legítimas ou não. Ele diz que os atrasos na investigação não são deliberados, mas que o processo é longo e muitas vezes dificultado pela falta de documentação. “Não estamos tentando proteger ninguém ou esperando que as pessoas morram para que não possam ser levadas à justiça”, afirma.
Para Quezada, levar à prisão os responsáveis por sua adoção nunca foi o objetivo. Hoje com mais de 80 anos, a freira que providenciou seu envio para a Holanda visitou recentemente o Chile e enfrentou questionamentos como parte da investigação do governo. Mas Quezada diz que não quer que ela seja presa. “Fomos tratados de forma desumana, mas isso não significa que devemos tratar outras pessoas assim.”
Garantir que algo assim nunca aconteça novamente é mais importante para ele. “Adotar é uma das coisas mais nobres do mundo. Mas você precisa ter todas as informações, porque as crianças terão perguntas sobre suas raízes biológicas e você precisa saber estas respostas.”