Em 2017, o Governo britânico concedeu o indulto póstumo a Oscar Wilde. Em 1895, o escritor irlandês havia sido condenado a dois anos de trabalhos forçados por sodomia e corrupção da juventude – acusação esta última que o equiparava ao seu admirado Sócrates. “Wilde sempre disse que era um grego nascido em outra época. Além disso, como aconteceu com o filósofo, quando foram detê-lo ele se negou a fugir. Seu amigo Robert Ross havia preparado um barco para que fosse à França, mas ele não aceitou. Alguém como Wilde, com um conceito da vida tão teatral, assumiu que seu personagem tinha que viver esse castigo, embora nunca imaginasse até que ponto seria difícil”, relata Javier de Isusi, ilustrador espanhol que acaba de publicar La Divina Comedia de Oscar Wilde (A divina comédia de Oscar Wilde), um trabalho de mais de 300 páginas ao qual dedicou cinco anos, entre tarefas de pesquisa, roteiro e desenho. Neste sábado, 30 de novembro, a morte do gênio irlandês completa 119 anos.
A origem da publicação remonta à infância do desenhista, quando sofrendo de caxumba, ele recebeu de presente um livro de contos de Wilde. A partir de então, o autor de O Fantasma de Canterville se tornou um de seus autores favoritos. Por mais que lesse, porém, o Isusi adulto era incapaz de reconhecer nas obras de teatro, nos ensaios e no seu único romance aquele escritor que o havia ajudado a suportar melhor a doença. “Tive que esperar até ler De Profundis para entender muitas das coisas de Wilde que sempre me intrigaram. Só então pude fazer a correspondência entre o autor dos contos e o das obras de teatro e de O Retrato de Dorian Gray. No final compreendi que, como qualquer pessoa, em Wilde cabem facetas muito diversas. Do escritor moralista de O Príncipe Feliz e de O Gigante Egoísta até o personagem hedonista ou, se preferirmos o termo com o qual o qualificaram em seu tempo, imoral.”
Apesar de toda essa riqueza e variedade de matizes, a obra de Wilde é surpreendentemente breve e foi escrita em apenas oito anos. Um corpus literário que, em algumas ocasiões, foi eclipsado pela intensa e escandalosa vida do autor, sobretudo a relativa a esses últimos anos recriados em A divina comédia de Oscar Wilde e nos quais a prisão, a ruína econômica, a censura social e o alcoolismo transformaram o escritor numa sombra do que havia sido.
“Quando foi libertado e chegou a Paris, Oscar Wilde expressou sua vontade de começar uma nova vida. Esse desejo foi justamente a origem do meu trabalho. Ele sempre dissera que sua vida tinha sido como A Divina Comédia, que havia passado pelo inferno que era a prisão e que, nesse momento, estava no purgatório. Por isso, eu me perguntei se durante sua estada em Paris ele vivenciou realmente essa mudança pessoal que lhe permitisse ter um pouco de paraíso.”
Tudo indica que essa transformação nunca ocorreu, mas Isusi aproveita sua privilegiada posição de autor para levar Wilde até o lugar desejado, mesmo que apenas no plano simbólico. Desse modo, numa das cenas mais emotivas do livro, o ilustrador situa o escritor e seu amigo Robert Ross numa carruagem que percorre justamente os Campos Elíseos – nome que os gregos deram ao céu.
“Essa cena é real. Wilde e Ross realizaram esse trajeto parando em todos os cafés que encontravam no caminho para beber absinto. Inventei somente a conversa, embora muitas frases que incluo tenham sido do próprio Wilde. No fundo o livro inteiro é assim, uma mistura de realidade e ficção. Ou melhor, de realidade e mentira, porque acredito que ele teria preferido esse termo, já que o defendeu em seu ensaio ‘A Decadência da Mentira’.”
Esse jogo entre a verdade, a mentira, a ficção e os fatos documentados proposto por Isusi se articula através de brilhantes soluções gráficas e narrativas. Por exemplo: alucinações, passagens oníricas, o diálogo com o espectro de um juveníssimo e insolente Rimbaud e até as entrevistas com diferentes personagens que, como André Gide, Reginald Turner e Lorde Alfred Douglas, conheceram o escritor e dão testemunho sobre isso. “São entrevistas feitas na época atual, mas nas quais os entrevistados aparecem com o aspecto físico que tinham no momento em que conheceram Wilde. Pensei se devia fazê-lo assim ou não, mas percebi que o romance gráfico permite coisas desse tipo, que eram muito frequentes nos primeiros autores dos quadrinhos, como Winsor McCay e seu Little Nemo e que abandonamos pouco a pouco. São recursos que, embora possam não ter sentido se analisados de uma perspectiva racional, funcionam muito bem do ponto de vista narrativa.”