Em decisão rara, professora e dois réus foram acusados por manterem uma venezuelana em cárcere privado e sujeitá-la a condições degradantes de trabalho

De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), os denunciados agenciaram e transportaram a venezuelana de   Boa Vista, em Roraima, para a cidade de Russas, no Ceará
Foto: Reprodução/Internet

De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), os denunciados agenciaram e transportaram a venezuelana de Boa Vista, em Roraima, para a cidade de Russas, no Ceará

Três acusados pelos crimes pelos crimes de tráfico de pessoas e redução de pessoa a condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal) foram condenados em 1º grau pela Justiça Federal no Ceará (JFCE). O juiz federal Fabricio de Lima Borges, da 16ª Vara da JFCE, determinou, na última sexta-feira (17) a prisão dos três acusados.

A ação penal, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) em outubro de 2018, denunciou os réus por uma venezuelana em cárcere privado e sujeitá-la a condições degradantes de trabalho.

De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), os denunciados agenciaram e transportaram a venezuelana de Boa Vista, em Roraima, para a cidade de Russas, no Ceará, e posteriormente ao município de Juazeiro do Norte, também no Ceará. O objetivo era submetê-la ao trabalho em condições análoga à escravidão.

A vítima, que teve o nome preservado nesta reportagem, era mantida em cárcere privado e em condições degradantes de trabalho.

Ré afirma que não podia se alimentar e teve documentos retidos

Diante da crise migratória na Venezuela, a mulher migrou para o Brasil, de forma legal, em busca de melhores condições, em maio de 2018. Inicialmente, ela passou um período nas cidades de Pacaraima, em Roraima, e depois em Boa Vista, no mesmo estado. Para conseguir sobreviver diante da crise econômica, estava em busca de emprego e foi acolhida pela ONG Trabalhar para Recomeçar.

ré Eugênia Michelly de Oliveira Queiroz entrou em contato com a ONG para contratar duas venezuelanas em atividades domésticas. Pouco tempo depois, a venezuelana aceitou a proposta e assinou o contrato. O documento informava que ela prestaria serviços domésticos na cidade de Russas, no Ceará, e seria remunerada na ordem de R$ 954 (salário mensal). A distância entre as cidades é de mais de 5 mil quilômetros.

Roupas da vítimas em sacolas retidas pelos réus
Foto: Divulgação/MPF

Roupas da vítimas em sacolas retidas pelos réus

Ainda de acordo com a sentença do MPF, Eugência comprou uma passagem de avião para a vítima e o seu marido, um coronel da Polícia Militar de Russas, foi buscá-la no aeroporto. Ao chegar na cidade, a venezuelana desempenhou atividades sem receber nenhuma remuneração por duas semanas e sem ter a sua carteira de trabalho assinada.

Após esse período, Eugênia informou à vítima que ela iria para Juazeiro do Norte, onde prestaria serviços na casa de uma outra mulher, Cosma Severina de Oliveira, que também foi denunciada pelo MPF.

Em seu novo trabalho, ela também não tinha direito ao descanso, nem a assinatura da carteira de trabalho e não recebeu remuneração pelo serviço prestado. O horário de trabalho tinha início às 6h e ela não conseguia se alimentar pela manhã. Seus documentos ficaram retidos durante o período de cárcere.

O outro acusado é José de Arimateia, que levava a vítima a uma chácara para ela trabalhar no campo, todos os dias.

“Ao entrar no terreno da chácara, o portão era trancado para que não saísse. Passava todo o dia limpando o terreno. Não tinha acesso ao interior da casa da chácara, que permanecia trancada. Como não tinha direito ao café da manhã, para não ficar com fome, alimentava-se de mangas existentes na chácara. Somente o almoço era- lhe fornecido e entregue”, diz trecho da sentença do MPF.

Registro nos autos do MPF do quarto da vítima
Foto: Reprodução/Internet

Registro nos autos do MPF do quarto da vítima

Mesmo após o fim do expediente, a venezuelana não tinha acesso a telefone, internet ou qualquer outro meio de comunicação , inclusive contato externo, razão porque não tinha como pedir socorro aos vizinhos para sair daquela situação.

A rotina permaneceu por cerca de três meses, período no qual nunca chegou a receber qualquer contrapartida a título de remuneração em dinheiro (ou qualquer outra forma, além da precária alimentação). Suas roupas originais estão dentro de sacolas também guardados pelos “patrões”.

A vítima teve um problema odontológico e conseguiu ir algumas vezes a uma clínica próxima da chácara, sempre acompanhada. Em um momento que esteve sozinha, ela procurou os seus documentos, que estavam retidos com os donos da casa, e conseguiu fugir. Ao escapar, ela foi ao Ministério Público do Estado do Ceará em Juazeiro do Norte e contou toda a história.

Professora nega ter cometido os atos

Em depoimento, a professora Cosma Severina declarou que em dezembro de
2017 sofreu um acidente que acarretouna fratura de seu fêmur. Em razão disso, chegou a se afastar das suas funções de professora na rede pública de ensino e ficou impossibilitada de exercer atividades domésticas.

Por isso, decidiu contratar a venezuelana, mas disse que ela não sabia exercer as atividades
domésticas, de modo que a vítima passava o dia inteiro em casa sem fazer nada.

Cosma afirmou que a vítima necessitava de tratamento dentário, e que tal tratamento durou dois meses, sendo que a venezuelana ia duas vezes por semana ao dentista. Ela admitiu que não assinou a carteira de trabalho da vítima, porque ela não fazia nada.

Referiu que, apesar de não fazer nada, permitiu que ela permanecesse por meses em sua
residência até que fosse concluído o seu tratamento dentário.

Sobre as acusações de maus tratos, cárcere privados e a falta de alimentação, ela disse que a vítima levantava por volta das dez horas da manhã, tomava café e ficava vendo televisão. Negou também ter retido os documentos da vítima e que ela podia sair a hora que desejasse.

Sentença

Segundo Leonardo Sakamoto, o conselheiro do fundo da Nações Unidas contra formas contemporâneas de escravidão, desde 1995 (ano em que o Brasil reconheceu a existência de trabalho escravo em seu território), mais de 54 mil trabalhadores flagrados em condição análoga à de escravo foram resgatados no Brasil.

Apesar do número alto, são poucas condenações decorrentes da aplicação do artigo 149.

Em sua sentença, o juiz concluiu que as rés aliciaram a cidadã venezuelana e a transportaram com o objetivo de reduzi-la à condição análoga à de escravo, uma vez que “eles não só cercearam a sua liberdade de locomoção como a submeteram a trabalhos forçados, à jornada exaustiva e a condições degradantes de trabalho”, considerou o magistrado.

Desta forma, condenou a ré Eugênia Michelly de Oliveira Queiroz a pena de reclusão em regime fechado por nove anos e quatro meses, a ré Cosma Severina de Oliveira a dez anos de reclusão em regime fechado, bem como decretou a perda dos dois cargos públicos de professora ocupados pela acusada, e o réu José de Arimateia Alecrin de Figueiredo a pena de quatro anos e seis meses em regime semiaberto.

Contra a decisão, ainda cabe recurso.