‘Quebrei o braço e fiquei sem dinheiro para comida’: os limites da PEC das Domésticas, 10 anos depois

Faxineira de luva de borracha limpando uma maçaneta
Dez anos depois da lei, trabalhadoras estão mais velhas, informalidade é crescente, e desigualdade racial e baixa remuneração persistem
Thais Carrança, do BBC

“Boa tarde, venho humildemente pedir uma ajuda para quem puder ajudar. Estou desempregada, tenho uma filha de 4 anos. Moro de aluguel e estou passando necessidade, pois, há uns meses atrás, eu quebrei o braço no trabalho.”

“Ainda não estou totalmente bem do braço, ainda fazendo fisioterapia, mas negaram minha perícia… Eu não era registrada. Pagava o MEI. Trabalhava de faxineira… Agora estou sem dinheiro para pagar aluguel e comprar comida.”

O apelo foi feito numa rede social por Jocelene Cristina Forlin, de 32 anos e moradora do município de Gaspar, em Santa Catarina.

A dificuldade vivida pela faxineira diarista, que trabalhava como MEI (microempreendedora individual) antes de se machucar em serviço, revela a precariedade ainda enfrentada por milhares de trabalhadoras domésticas brasileiras, dez anos depois da aprovação da Emenda Constitucional 72, de 2 de abril de 2013, que ficou conhecida como “PEC das Domésticas”.

O MEI garante alguns direitos como aposentadoria por idade, salário maternidades e auxílio-doença — ao qual Jocelene perdeu acesso após ter sua perícia negada —, mas não outros previstos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), como férias remuneradas, 13º salário, hora extra, entre outros.

Demanda histórica dos movimentos de trabalhadoras domésticas, feminista e negro, a PEC foi apresentada em 2012 pelo deputado federal Carlos Bezerra (MDB/MT) e sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT) no ano seguinte.

Transformada em lei, garantiu às domésticas direitos que os demais trabalhadores brasileiros já tinham, como o recolhimento de FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), limite de horas para a jornada de trabalho, pagamento de horas extras e acesso ao seguro-desemprego.

Mas, passados dez anos – marcados por uma crise econômica, uma pandemia e mudanças demográficas no país –, o mercado de trabalho doméstico brasileiro mudou, e muitos dos direitos conquistados com a PEC já não respondem à realidade da maior parte das trabalhadoras domésticas em atividade.

Há cada vez menos mensalistas, principais beneficiárias da lei, e um número crescente de diaristas, como Jocilene. A maioria delas trabalha na informalidade, sem qualquer proteção trabalhista e previdenciária.

Atualmente, três em cada quatro trabalhadoras domésticas no Brasil trabalham sem carteira, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

E mesmo quem trabalha como MEI não está completamente protegida, como mostra o caso da faxineira que quebrou o braço e se viu sem renda.

A diarista Jocelene Cristina Forlin com o braço imobilizado após fratura
‘Até agora não estou trabalhando direito, porque meu braço ainda não está 100% bom. Tive que pedir comida, porque o dinheiro que eu tinha só dava para o aluguel’, conta Jocelene Cristina Forlin, em entrevista à BBC News Brasil

Levantamento exclusivo feito pela LCA Consultores a pedido da BBC News Brasil revela ainda outras mudanças nesses dez anos: entre as trabalhadoras domésticas, aumentou a proporção de mulheres mais velhas, de negras (pretas ou pardas), de chefes de família e essas mulheres estão contribuindo cada vez menos para a Previdência Social.

Entenda todas essas mudanças e os desafios que elas colocam para a proteção social e trabalhista das trabalhadoras domésticas, dez anos após a aprovação da PEC das Domésticas.

‘Nova Lei Áurea’: a importância da PEC das Domésticas

Após 70 anos da CLT e 25 anos da Constituição de 1988, a PEC das Domésticas de 2013 finalmente deu a essas profissionais direitos já assegurados para outros trabalhadores – ainda que não de forma totalmente igual.

A deputada federal Benedita da Silva ao microfone
‘Na Constituinte, iniciamos um processo para que as trabalhadoras domésticas fossem reconhecidas tal qual os demais trabalhadores. Conseguimos algumas coisas, mas outras não conseguimos’, disse Benedita da Silva (PT-RJ)

“Os direitos das trabalhadoras domésticas foram concedidos de forma muito paulatina”, observa Cristina Vieceli, economista do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)

“Na CLT [Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943], as trabalhadoras domésticas foram excluídas, junto com os trabalhadores rurais. E na Constituição de 1988, foram relegados a elas somente alguns direitos”, acrescenta a pesquisadora.

Somente 30 anos depois da CLT, uma lei (Lei 5.859 de 1972) garantiu às domésticas o direito à carteira assinada, férias remuneradas e acesso a benefícios da Previdência Social.

Mais de uma década depois disso, a Constituição de 1988 garantiu alguns direitos a mais para a categoria: salário mínimo, 13º salário, repouso semanal remunerado, licença maternidade e direito ao aviso prévio.

“Na Constituinte, iniciamos um processo para que as trabalhadoras domésticas fossem reconhecidas tal qual os demais trabalhadores. Conseguimos algumas coisas, mas outras não conseguimos”, lembra Benedita da Silva, deputada federal (PT-RJ), que já foi um dia trabalhadora doméstica e umas das 26 mulheres entre os 559 deputados constituintes.

“A PEC das Domésticas foi chamada de ‘nova Lei Áurea’ porque ela garantiu direitos que vínhamos reivindicando há muito tempo – há décadas”, lembra Luiza Batista, coordenadora geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).

“Garantiu o FGTS, jornada de trabalho, seguro-desemprego, adicional noturno, abono família, comunicação de acidente de trabalho. Infelizmente, depois levou dois anos e três meses para ela ser regulamentada”, observa a liderança sindical, lembrando que a regulamentação da lei só viria em junho de 2015.

Luiza Batista
‘A PEC das Domésticas foi chamada de ‘nova Lei Áurea’ porque ela garantiu direitos que vínhamos reivindicando há muito tempo’, diz Luiza Batista

Resistência e limitações da lei

À época, a PEC sofreu forte resistência de setores da classe política e da classe média. Os críticos argumentavam que ela iria encarecer e burocratizar a contratação dessas trabalhadoras, gerando desemprego em massa de domésticas e de mulheres que não poderiam mais contar com a ajuda dessas profissionais para o cuidado da casa e dos filhos.

Ana Luiza Neves de Holanda Barbosa, economista e pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), participou de estudo que analisou os impactos da PEC anos depois de sua aprovação.

“Não encontramos resultados muito adversos, houve algum aumento da informalidade, mas não encontramos resultados tão alarmantes quanto se advogava à época”, afirma. (Veja dados sobre informalidade abaixo)

Luiza Batista destaca que, mesmo após a EC 72/2013, alguns direitos ainda são diferentes para as trabalhadoras domésticas.

Por exemplo, as domésticas só têm direito a três parcelas do seguro-desemprego, no valor de um salário mínimo nacional, enquanto as demais categorias têm direito a cinco parcelas, até o teto máximo do seguro-desemprego (que em 2023, está em R$ 2.230.97, conforme tabela).

Outro exemplo é o atestado médico. Para os trabalhadores em geral, após 15 dias de afastamento mediante atestado, os custos salariais passam à Previdência. Já para as domésticas, caberia ao INSS pagar desde o 1º dia de afastamento – o que na prática não acontece, criando um jogo de empurra entre patrão e Previdência sobre quem paga.

Mesmo com essas desigualdades, Batista afirma que a PEC das Domésticas não deixa de ser uma grande conquista da categoria.

“Foi uma luta histórica das trabalhadoras domésticas, juntamente com o movimento feminista e o movimento negro. Dessa luta, despontam várias lideranças, como Laudelina de Campos Melo, Creuza Maria de Oliveira e Luiza Batista”, observa Cristina Vieceli, do Dieese.

“Teve uma força muito grande dessas trabalhadoras domésticas de assegurar que esse trabalho fosse considerado um trabalho como qualquer outro. Porque, historicamente, a doméstica era considerada como uma pessoa que ‘fazia parte da família’ e que por isso não deveria receber os mesmos direitos da totalidade dos trabalhadores”, diz a economista.

“Essa noção permanece até os dias de hoje e tem raízes no trabalho escravo.”

O que mudou em 10 anos: avanço da informalidade

Em dez anos, a mudança mais marcante no mercado de trabalho doméstico no Brasil é o avanço da informalidade.

A parcela de trabalhadores domésticos sem carteira passou de 69% para quase 75% entre dezembro de 2013 e igual mês de 2022.

A mudança se acentuou após a pandemia, mostram dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), compilados pela LCA Consultores a pedido da BBC News Brasil.

Grafico de linhas mostra evolução do número de trabalhadores domésticos no Brasil entre dezembro de 2013 e dezembro de 2022

“A PEC das Domésticas teve toda uma boa intenção quando foi implementada. As pessoas que estavam mais tempo trabalhando em casas de família foram bastante beneficiadas. Só que o que aconteceu anos depois não estava dentro do previsto, e a tendência foi outra”, observa Bruno Imaizumi, economista especializado em mercado de trabalho da LCA Consultores.

“A ideia era formalizar, garantir benefícios e que elas tivessem carteira assinada. Mas o que aconteceu é que tivemos duas crises após a implementação da PEC – a crise de 2015-2016 e a pandemia”, afirma.

O economista explica que, quando crises acontecem, as famílias perdem renda e acabam trocando funcionárias mensalistas por diaristas.

Além disso, com a pandemia, muitas pessoas passaram a trabalhar em esquema híbrido e, ao passar tempo maior em casa, assumiram parte das tarefas domésticas antes desempenhados por estas profissionais.

Cristina Vieceli, do Dieese, aponta ainda um fator demográfico que contribui para a mudança: a redução das famílias numerosas e avanço de famílias pequenas e de pessoas morando sozinhas também favorece a contratação de diaristas, em detrimento das mensalistas.

Maria Conceição Santos Afonso, de 60 anos e doméstica mensalista há 20 deles, cita ainda um outro fator que explica a mudança: a busca das trabalhadoras domésticas por ganhar mais.

“Tem diarista que ganha R$ 3 mil, R$ 4 mil, e a mensalista muitas vezes não ganha tudo isso. Então elas vão pelo salário, mas se você for ver, é mais desgastante”, diz Maria Conceição.

A doméstica mensalista Maria Conceição Santos Afonso
‘Tem diarista que ganha R$ 3 mil, R$ 4 mil, e a mensalista muitas vezes não ganha tudo isso. Então elas vão pelo salário’, diz Maria Conceição Santos Afonso, doméstica mensalista há 20 anos

Apesar dessa busca por maiores rendimentos, em dez anos desde a aprovação da PEC das Domésticas, a renda dos trabalhadores domésticos pouco avançou em termos reais.

Em 2013, os com carteira ganhavam em média R$ 1.460 e os sem carteira, R$ 912. Em 2022, esses valores passaram a R$ 1.495 e R$ 932.

Segundo a economista do Dieese, a renda das domésticas está muito atrelada ao valor do salário mínimo, cujos reajustes perderam força na última década, em meio à crise econômica e ao abandono, a partir de 2019, de política que atrelava o reajuste do mínimo ao crescimento do PIB.

Mais velhas, mas contribuindo menos para a Previdência

Embora a informalidade tenha aumentado, o número de trabalhadores domésticos no Brasil permaneceu praticamente estável nesses dez anos: em torno de 5,8 milhões, dos quais mais de 90% são mulheres. Mas o perfil destes trabalhadores mudou bastante neste período.

Em 2013, pouco mais da metade dos trabalhadores domésticos brasileiros (53%) tinham 40 anos ou mais, percentual que chegou a 65% em 2022.

Gráfico de barras mostra parcela de domésticas com 40 anos ou mais

Embora esses trabalhadores estejam pela idade mais próximos da aposentadoria, com o avanço da informalidade, eles estão contribuindo menos para a Previdência. O percentual de contribuintes caiu de 38,6% para 36,2% nestes dez anos, segundo os dados da Pnad do IBGE.

Com o envelhecimento dessas trabalhadoras, também cresce a parcela de chefes de família entre elas, de 40% em 2013, para 53% em 2023.

O avanço da educação no país e a busca das mulheres mais jovens por outros tipos de trabalho explicam o envelhecimento das trabalhadoras domésticas, diz Vieceli, do Dieese.

“Desde os anos 2000, há uma participação menor das trabalhadoras jovens [no trabalho doméstico], porque há um acesso dessas trabalhadoras a outros postos de trabalho, onde elas têm melhor remuneração e mais direitos trabalhistas”, afirma a economista.

‘Filha e neta de domésticas, rompi a corrente’

Camila Silva Passos, de 31 anos e moradora de Barra do Piraí, no interior do Rio de Janeiro, é um exemplo dessa mudança. Com avó e mãe domésticas, ela é farmacêutica pós-graduada.

“Minha avó casou aos 22 anos e sofreu muita violência doméstica. Depois que se separou, ela criou sozinha oito filhos. Todos esses oito filhos passaram fome e necessidade. Assim, minha mãe começou a trabalhar aos 9 anos, cuidando de outras crianças”, conta Camila.

“Ela estudou até a quarta série e foi mãe solteira. Trabalhando como empregada doméstica, ela conseguiu pagar minha van para eu fazer faculdade, o que eu consegui através do Prouni”, diz farmacêutica, que conseguiu pelo programa uma bolsa integral para estudar numa universidade privada na cidade vizinha de Vassouras.

Assim, ela se tornou a primeira pessoa de sua família a se formar numa universidade.

“Decidi fazer o Enem para ter uma vida melhor, receber mais do que um salário mínimo e ter mais direitos. Eu queria uma coisa melhor para mim”, afirma.

Diante da queda recente na busca de jovens pelo Enem e nas inscrições em instituições de ensino superior, Camila defende a importância das políticas públicas de educação, para que mais pessoas como ela tenham alternativas ao trabalho doméstico.

“Os programas sociais são importantes para quebrar esse ciclo: o Sisu [Sistema de Seleção Unificada], cotas raciais, Prouni. Tudo isso facilita que nós tenhamos oportunidades que nossas mães não tiveram”, diz a farmacêutica.

Camila Silva Passos ao lado da mãe
‘Os programas sociais são importantes para quebrar esse ciclo: o Sisu, cotas raciais, Prouni. Tudo isso facilita que nós tenhamos oportunidades que nossas mães não tiveram’, diz a farmacêutica Camila Silva Passos (na foto, com a mãe)

Com mais mulheres buscando outras profissões, o percentual de domésticas entre o total de trabalhadoras ocupadas recuou de 14,9% para 12,8% em dez anos. Mas, enquanto 8,8% das brancas trabalham atualmente como domésticas, esse percentual chega a 16,4% das negras.

Camila, que como mulher preta foi na contramão dessas estatísticas, ao romper o ciclo de trabalho doméstico das mulheres de sua família, avalia que os dados mostram como as oportunidades são diferentes paras brancas e negras.

“Assim como todas as subocupações, o trabalho doméstico é o que resta para uma mulher negra, que está na base da pirâmide social”, diz a farmacêutica.

“Assim como tudo no Brasil, a mulher branca, mesmo sendo pobre, tem mais oportunidade de sair desse tipo de subemprego e, por exemplo, encontrar emprego numa loja.”

Desafios atuais para proteção das domésticas

Como então proteger os direitos das trabalhadoras domésticas, dez anos depois da PEC, nessa nova realidade em que há um número crescente de trabalhadoras diaristas, sem carteira assinada; que estão ficando mais velhas, mas contribuindo menos para a Previdência? E onde as desigualdades raciais e baixa remuneração persistem, apesar dos avanços na educação das mulheres?

Aqui, não há respostas fáceis, segundo os entrevistados, mas um consenso entre os especialistas é de que é preciso avançar na proteção dos trabalhadores informais de forma geral, em meio ao avanço da automação e das novas tecnologias.

Para Luiza Batista, da Fenatrad, é necessário também aprofundar as conquistas da PEC das Domésticas, igualando os direitos conquistados aos dos demais trabalhadores – como no caso do seguro-desemprego e do atestado médico.

Para que haja melhora na remuneração dessas profissionais, ela também defende que mais Estados avancem em convenções coletivas de trabalho para trabalhadoras domésticas, a exemplo do que já acontece hoje em São Paulo.

Também são prioridades para a categoria uma maior oferta de creches, de escolas em tempo integral e a retomada do TDC (Trabalho Doméstico Cidadão), programa criado em 2006, que oferecia elevação da escolaridade, qualificação profissional e formação de lideranças sindicais.

Para Batista, apesar de ser uma alternativa para contribuição à Previdência para as trabalhadoras sem carteira, o MEI não é a solução ideal para a formalização dessas trabalhadoras, que em geral não têm características de empreendedoras.

“Tem patrão usando de má-fé e inscrevendo a trabalhadora no MEI para se desobrigar dos encargos sociais e de pagar salários, férias, 13º”, afirma Batista.

“E ela não sabe que tem que fazer relatório anual para a Receita Federal, pode acabar se complicando, contraindo uma dívida, por não ter consciência de que, ao se inscrever no MEI, ela vira uma pessoa jurídica.”

Para Maria Conceição, doméstica mensalista há 20 anos na mesma casa, é preciso também fazer cumprir os direitos previstos na PEC das Domésticas.

“Há 20 anos, qual era o direito da empregada doméstica? Nenhum. Ela saía [de um trabalho] como ela entrou, com as mãos vazias”, diz a doméstica.

“Hoje nós temos direito ao INSS, ao Fundo de Garantia, ao seguro-desemprego. Tudo isso foi uma conquista grande para a gente. E nós temos que continuar na luta, porque eu fico triste quando vejo companheira nossa trabalhando três dias numa mesma casa e o patrão não assina a carteira dela. Ainda tem muito patrão que não cumpre a lei.”

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