Tolerar os intolerantes

Por Marcelo Tognozzi*

Estamos inaugurando oficialmente a era dos guetos digitais. Até agora tínhamos os países como China, Cuba, Egito, Irã e Coreia do Norte controlando o acesso à rede mundial com uma política de censura e proibição de acesso a sites como o Google jornais e portais de notícias. A Primavera Árabe de 2010 e o medo de perder o poder de uma hora para outra fizeram com que os governos desses países aumentassem nos últimos anos a censura e a vigilância sobre o conteúdo consumido por sua população.

Agora assistimos ao banimento digital de Donald Trump e seus apoiadores pelo Facebook, Twitter e grandes provedores como o Google e a Apple. Decidiram agir como justiceiros e censurar o presidente dos Estados Unidos porque entenderam que ele representa uma ameaça à segurança nacional, capaz de promover o caos e a desordem, como aconteceu na invasão do Congresso norte-americano por trumpistas dispostos a melar a diplomação de Joe Biden. É uma grande novidade e uma imensa dose de soberba que grandes empresas de tecnologia tenham o poder de decidir o que é bom ou ruim para a segurança nacional de quem quer que seja.

Confinaram Trump e seus seguidores num gueto digital do Telegram, uma plataforma de mensagens controlada pelos russos. Isso seguramente não corre o menor perigo de dar certo. É uma bomba relógio que acaba de ser armada e que mais cedo ou mais tarde explodirá com consequências imprevisíveis.

Se Donald Trump e seus intolerantes amestrados cometeram crimes no episódio da invasão do Congresso, quem tem de dizer isso é a Justiça, única com prerrogativa de julgar e assegurar o devido processo legal. O Estado democrático de Direito é o garantidor da democracia, não as grandes corporações de tecnologia. Elas apostam na manipulação, agem por conveniência e estupram a democracia sem o menor pudor, como ficou claríssimo no caso da Cambridge Analytica com o Facebook detalhado no documentário Privacidade Hackeada, de 2019, dirigido por Jehane Noujaim e Karim Amer.

Redes sociais não são produtoras de conteúdo, mas simples canais de exibição de conteúdos produzidos pelos seus usuários. Se os executivos destas empresas passarem a fazer curadoria ou edição do conteúdo, deixarão de ser redes sociais para se transformarem em empresas distribuidoras de informação, falsa ou verdadeira, produzida de graça por quem decidiu integrar aquela plataforma. E é aí que mora o veneno.

Rede social não foi feita para censurar, mas para expor pontos de vista e comportamentos. É essencialmente um ambiente de diversidade. A melhor forma de combater aqueles que usam os canais das redes sociais para solapar a democracia ou o Estado de Direito é jogar luz sobre eles, mostrar quem são, o que fazem, como fazem, porque fazem, como vivem e o que pensam. Se desde o início os grandes veículos norte-americanos tivessem jogado luz sobre Trump e seus apoiadores talvez as coisas teriam sido diferentes, mas eles preferiram fazer política, mesmo caminho escolhido pelos grandes grupos de comunicação do Brasil.

A política de segregar quem quer que seja iguala os defensores do banimento de Trump aos apoiadores da sua proposta de construir um muro na fronteira com o México. Ou aos franceses que fingiram tolerar a imigração muçulmana enquanto confinavam estes imigrantes em guetos na periferia de Paris. Nasceu ali uma sociedade paralela, capaz de andar pelas próprias pernas independentemente do Estado. Exatamente como aconteceu no Rio, onde os pobres foram empilhados em favelas, hoje transformadas em guetos controlados pelo tráfico, a milícia ou os 2 ao mesmo tempo, e onde o poder público não entra sem autorização. Estes são exemplos, digamos, analógicos das consequências de uma política segregacionista.

Quando em outubro de 2011 surgiu o movimento Occupy Wall Street, contra a desigualdade, ganância e corrupção provocadas pelo sistema financeiro norte-americano, o máximo que aconteceu foi o corte no sistema de som e a prisão temporária de alguns gatos pingados. Ninguém ousou defender o banimento deles, que transmitiram tudo pela internet apadrinhados por filósofos de esquerda como Noam Chomsky e o esloveno Slavoj Zizek. Em janeiro do mesmo ano manifestantes aplaudidos pela mídia dos Estados Unidos e União Europeia ocuparam a Praça Tahrir no Cairo e derrubaram o regime de Hosni Mubarak. Em pouco tempo, o governo nascido destes protestos censuraria a internet e o acesso indiscriminado à informação. E aí acabou a graça.

Uma década depois, estamos diante de uma situação nova: o primeiro banimento digital de um grupo político decretado pelas maiores empresas de tecnologia, o qual foi aceito e aplaudido por boa parte da sociedade, seja nos Estados Unidos, na Europa ou no Brasil. Uma estupidez sem limites.

Poucos meses antes de morrer, o filósofo italiano Umberto Eco decretou que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis. Antes, eles falavam suas sandices num bar depois de umas taças de vinho. “Promoveram o idiota da aldeia em portador da verdade”, arrematou Eco numa entrevista em 10 de junho de 2015. O maior incômodo do mestre de 83 anos era a quantidade de lixo produzido pela internet, o que o deixava desnorteado e sem entender direito o que acontecia no mundo digital.

O discurso contra o racismo e o apartheid social ou da defesa da liberdade de expressão e de pensamento destoam dos verbos calar, amordaçar e banir. Segregar correntes políticas e ideológicas já levou o mundo a situações amargas como a guerra fria, os guetos de pobreza, os massacres no Camboja e a violência sem fim no Oriente Médio. É um erro caro demais, traduzido com perfeição no poema de Martin Niemoller (“depois vieram buscar os judeus, mas como eu não era judeu não protestei”…). O caminho da evolução é tolerar os tintolerantes. Para os excessos existe a lei.

*Jornalista. Texto publicado originalmente no portal Poder 360.

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