120 anos de Anísio Teixeira: as ideias do criador da escola pública no Brasil
O debate a respeito da universalização de uma escola pública, laica, gratuita e obrigatória teve um de seus grandes momentos há mais de 80 anos no Brasil.
Na década de 1930, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova vislumbrava um audacioso projeto de renovação educacional no país.
Consolidando a visão de 26 educadores, de distintas posições ideológicas, o documento “A reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao governo” tratava de assuntos ainda atuais e amplamente discutidos na cena da educação brasileira: da autonomia moral do estudante à equiparação de mestres e professores em remuneração e trabalho.
Um de seus mais notórios signatários, Anísio Teixeira, faria 120 anos neste mes de julho.
Como personagem central na história da educação no país na primeira metade do século 20, os pensamentos do jurista e escritor sobreviveram às transformações sociais e à passagem do tempo.
No entanto, embora empreste seu nome ao Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão ligado ao Ministério da Educação que aplica exames como o Enem e realiza levantamentos estatísticos sobre o ensino, o intelectual ainda é pouco conhecido e comentado fora do âmbito educacional, a despeito da perenidade de suas ideias.
Em uma época em que a educação era formulada e concebida para poucos, uma de suas maiores contribuições está no entendimento da necessidade de se democratizar o acesso ao ensino.
Para Andrea Harada, professora e mestre em Educação pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), o educador via nesse processo um instrumento de “superação das contradições sociais que marcavam o Brasil no período”.
“A democratização poderia, pela ampliação da formação escolar, indicar um futuro marcado pelo desenvolvimento do Brasil e a consolidação do país como nação. Porém, um limite não fora considerado: as determinações políticas e econômicas”, explica ela.
Revolta com a desigualdade
Anísio Teixeira criou a Universidade do Distrito Federal (1935), quando o Rio de Janeiro ainda era capital do país; fundou o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, ou “Escola Parque”, em 1950, em Salvador, durante sua passagem pela Secretaria de Educação da Bahia, e foi um dos mentores da UnB (Universidade de Brasília), da qual era reitor no ano de 1964, quando ocorreu o golpe militar no Brasil.
“A construção da ideia, no Brasil, de uma escola pública, gratuita, laica e de qualidade passa, necessariamente, pelas contribuições dele. Outro aspecto importante a considerar é a formação docente e o reconhecimento do trabalho de professores, a necessidade de conhecimento científico para o desenvolvimento da educação, com ênfase para as séries iniciais, restringindo os espaços para amadorismo e enfatizando as particularidades de nossa cultura e história como meio de superação da mentalidade colonial que se reproduzia também nas escolas”, diz Harada.
Em um documento distribuído à imprensa em abril de 1958, o professor disse: “Sou contra a educação como processo exclusivo de formação de uma elite, mantendo a grande maioria da população em estado de analfabetismo e ignorância. Revolta-me saber que metade da população brasileira não sabe ler e que, neste momento, mais de 7 milhões de crianças entre 7 e 14 anos não têm escola”.
Na visão de Ivan Russeff, doutor em educação e professor de Biblioteconomia da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), essas duas colocações de Anísio, em resposta a grupos que viam suas ideias “como inconvenientes e suspeitas”, atestam a atualidade do pensamento do educador em um contexto que talvez tenha avançado pouco.
“O foco é o ensino básico e o seu caráter excludente que continua atual e se constituindo em verdadeira barreira, com altos índices de repetência e abandono, principalmente no ensino médio. Para Anísio, essa elitização do ensino básico mantinha as classes populares em estado de ignorância, impedindo-as de ingressarem no ensino superior, grande instrumento, para ele, de civilizar e humanizar o povo brasileiro”, explica o professor.
Ainda que os índices levantados pelo educador não sejam mais tão catastróficos, o analfabetismo, principalmente o funcional, ainda é uma realidade da população brasileira.
Para Russeff, o problema é fruto da desqualificação progressiva do ensino básico e do desprestígio em que se encontra, na nossa sociedade, a cultura letrada. “Esse cenário trágico da educação nacional é reiterado (…) na crítica ao poder público e a ausência de uma política de inclusão das massas.”
Diz Anísio: “Contrista-me verificar a falta de consciência pública para situação tão fundamente grave na formação nacional e o desembaraço com que os poderes públicos menosprezam a instituição básica de educação do povo, que é a escola primária”.
Como lembra Russeff, no tempo desse texto, Anísio já estava de volta de seu autoexílio no interior da Bahia, onde ficou de 1935 a 1945 após sua demissão da chefia do Departamento de Educação do Distrito Federal. Já havia sido também consultor geral da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em 1946, diretor da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), em 1951, e do Inep, no ano seguinte.
À época, vinha travando grandes debates públicos a favor de uma Lei de Diretrizes e Bases – a de 1961 – que consagrasse o princípio de uma escola pública gratuita, para todos e comum aos dois gêneros.
“Meninos e meninas em classes mistas, o que já lhe havia provocado ásperas discussões com os setores conservadores, com destaque para a Igreja Católica. Uma lei que facultasse um ensino de qualidade, com professores das séries iniciais que tivessem formação superior em Educação”, pontua Russeff.
Novos ventos
Liberal e opositor a todos os tipos de violência, nas palavras do historiador e político Luiz Vianna Filho, Anísio foi taxado de comunista por seu projeto progressista de ação no ensino, quando de sua demissão da diretoria do Distrito Federal no fim de 1935.
“Sua iniciativa, de defender na implementação da sua reforma do ensino as classes mistas (masculina e feminina), rendeu-lhe a pecha de comunista e de atentar contra a moralidade pública. A Igreja Católica (…) taxou-o de antinacionalista, contra os princípios consagrados da família brasileira, contra a índole da educação nacional”, afirma o professor.
Na visão de Emerson Mathias, mestre em Educação e professor da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) do CEU Paraisópolis, o intelectual também pode ser visto, extraoficialmente, como um segundo patrono de nosso ensino, ao lado de Paulo Freire.
“Ele foi um defensor de uma educação construtivista, que pensava os alunos como agentes transformadores da sociedade. Ou seja, uma educação libertária. Naquele contexto da década de 1930, praticamente todos esses articuladores se inseriram na cena política e instituíram, pode-se dizer, embriões do que temos hoje. Isso transformou uma educação que até então era religiosa, tradicional e sem nenhum olhar para as minorias, os excluídos e os invisíveis”, diz Mathias.
Arte-educador desde 2015, com o projeto autoral “Nzinga Contos Ritmados D’África” sendo trabalhado em escolas públicas e particulares do estado de São Paulo, Mathias convive com a realidade da rede pública há seis anos. Antes de ser concursado, o educador fazia parte da categoria O, docentes que, apesar de realizarem as mesmas funções que outros colegas, não gozam dos mesmos direitos e nem possuem um vínculo empregatício duradouro.
“Tenho quase sete anos no ensino público. E a verdade é que estamos engatinhando ainda hoje no que diz respeito às ideias de Anísio Teixeira, dessa forma ampla de olhar para o currículo como algo universal e inclusivo.”
Com problemas “acumulativos”, como define Mathias, a escola em que trabalha vive uma tentativa de reinvenção, com a busca por novas formas didáticas e ferramentas estruturais durante a pandemia. Em março, por exemplo, já faltavam professores de matemática e de português, além de profissionais auxiliares essenciais para o dia a dia na instituição. “Esse caos se amplia quando temos de encarar a educação a distância. Com essas faltas, a comunidade e os alunos não se sentem acolhidos pela escola, não estabelecem uma identidade”, afirma.
Segundo estimativa do final de maio da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, metade dos alunos da rede estadual não conseguia acessar as aulas online no contexto da pandemia, evidenciando, por exemplo, as dificuldades de acesso a equipamentos e internet.
Em uma escola “engessada, antiga e arcaica”, a despeito de qualquer reforma, o professor Mathias diz encontrar esperança em cada retorno de aluno. “Os problemas são grandes, mas todos os dias estamos aqui, trabalhando com o que nós temos. Com garra, vontade e disposição, tentando criar novas metodologias e novas formas de trazer mais alunos. É desgastante e frustrante. Mas temos alguns momentos de esperança, com alunos retratando suas descobertas e tirando dúvidas. A escola é mais do que conteúdo: é vida e traz um sentido para as coisas.”
Ou como dito por Anísio em discurso feito na inauguração da Escola Parque há exatos 70 anos: “a escola tem de ganhar uma inevitável ênfase, pois se transforma na instituição primária e fundamental da sociedade em transformação”.