O linchamento de um delegado de polícia abolicionista 132 anos atrás levou uma cidade do interior paulista a mudar de nome.
Uma história tão insólita que parece ficção.
Joaquim Firmino de Araújo Cunha foi encurralado por cerca de 200 pessoas na madrugada de 11 de fevereiro de 1888 e morto violentamente dentro casa, onde estavam também a mulher, Valeriana, e os filhos.
Os mandantes do crime: um inglês e um americano que haviam se mudado para o Brasil depois de lutarem na Guerra de Secessão dos Estados Unidos do lado dos confederados, que eram contrários ao fim da escravidão no país.
A história ficou por muito tempo dormente na pequena Itapira, hoje com pouco mais de 70 mil habitantes, e vem sendo redescoberta nos últimos anos.
Penha do Rio do Peixe
Naquela época, Itapira se chamava Penha do Rio do Peixe. A cerca de 170 km da capital, era mais uma das cidades paulistas que fizeram riqueza a partir das grandes fazendas de café e da exploração da mão de obra escravizada.
Às vésperas da abolição, São Paulo era uma das províncias mais resistentes à ideia de libertar os negros escravizados e, não por acaso, uma das que concentravam maior contingente dessa população no país.
Em 1887, de acordo com as estatísticas de povoamento reunidas pelo IBGE, São Paulo contabilizava cerca de 107 mil escravizados, volume superado apenas por Minas Gerais (191,9 mil) o Rio de Janeiro (162 mil). Juntas, as três províncias concentravam pouco mais de 63% do total.
Em paralelo, o movimento abolicionista que nascera na década de 1870 ganhava força.
De um lado, associações abolicionistas tentavam sensibilizar a opinião pública por meio da imprensa e realizavam eventos para angariar apoio e recursos que seriam usados para comprar alforrias, por exemplo.
De outro, os negros escravizados empreendiam fugas, faziam poupança para tentar comprar a liberdade e entravam na Justiça para reivindicar sua alforria.
A polícia era convocada a reprimir as revoltas — mas também passou a se rebelar.
Esse era o caso de Joaquim Firmino, que nascera em Mogi Mirim e assumira o cargo de delegado de polícia em 1885, aos 30 anos.
“Naquele tempo, o cargo de delegado era indicado. Geralmente era alguém que cumpria ordens (das elites locais), um pau mandado — coisa que ele não foi”, diz o historiador Eric Apolinário, morador de Itapira, que está escrevendo um livro sobre o episódio. Intitulada O Crime da Penha, a obra deve ser lançada em 2021.
O delegado fazia parte de uma agremiação abolicionista, o Clube Cosmopolita, e com frequência se recusava a prender “escravos fugidos”, a denominação que se usava na época. Chegou a acobertar fugas, muitas delas com destino ao quilombo Jabaquara, em Santos, e a esconder “fugitivos” em sua própria casa.
O comportamento desagradava os “barões do café”, entre eles João Baptista de Araújo Cintra, fazendeiro de Atibaia que, por sua vez, era próximo de James Hankins Warne, um inglês que viveu nos EUA antes de vir para o Brasil e que lutou na guerra civil do país ao lado dos americanos que eram contra o fim da escravidão.
Warne era casado com a sobrinha de João Baptista, Joaquina de Araújo Cintra, e administrava uma fazenda que comprou dos sogros em Penha do Rio do Peixe.
Ele e o colega americano John Jackson Klink, que também foi combatente do exército confederado, estão entre milhares de imigrantes que vieram do sul dos Estados Unidos para o interior paulista atraídos pelos subsídios e incentivos fiscais oferecidos por Dom Pedro 2º na tentativa de desenvolver novas técnicas agrícolas e novas culturas no Brasil.
Cidades como Americana e Santa Bárbara D’Oeste se tornaram colônias de imigrantes americanos nesse período.
Os relatos sobre a madrugada de 11 de fevereiro de 1888 descritos no processo judicial aberto após o assassinato do delegado — e uma das principais fontes de informação utilizadas pelo historiador Eric Apolinário para reconstruir aquele dia — dão conta de que Warne e Klink incitaram moradores da cidade a se vingarem de Joaquim Firmino.
A intenção inicial, conforme os documentos, era dar-lhe “um susto”.
Cerca de um mês antes, diz Apolinário, o delegado disse a fazendeiros da cidade que não era função da polícia ir atrás de “escravos fugitivos”. A briga chegou a ser judicializada, mas o delegado manteve sua posição.
Na noite do assassinato, cerca de 200 pessoas armadas com facas, espingardas e porretes foram à casa de Joaquim Firmino, cercaram-na e começaram a disparar. O imóvel crivado de balas sobreviveu até 1970, quando foi comprado e demolido.
Ao perceber que os invasores haviam quebrado as janelas e já entravam pela porta da frente, o delegado mandou a esposa, Valeriana, e os filhos se esconderem e tentarem se salvar.
Julieta, de 9 anos, chegou a se ajoelhar e pedir a um dos agressores que não matassem o pai.
Ele foi espancado até à morte no quintal.
Relato sobre o assassinato corre o país
O crime teve grande repercussão nacional.
O artista Angelo Agostini, abolicionista famoso que escrevia e desenhava para a Revista Illustrada, viajou do Rio de Janeiro para Penha do Rio do Peixe para retratar o episódio.
“A imprensa abolicionista passa a falar sobre o caso, tenta transformar Joaquim Firmino em uma espécie de mártir”, diz Apolinário.
Segundo o historiador, algumas fontes dizem que o relato sobre o episódio chega ao Império e aos ouvidos da princesa Isabel, que já vinha sendo pressionada por deputados e senadores e por parte da opinião pública a acabar com a escravidão.
Três meses depois, no dia 13 de maio de 1888, ela sancionou a Lei Áurea.
O assassinato de Joaquim Firmino, diz Angela Alonso, professora livre-docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, “foi decisivo para acelerar o abandono do escravismo por parte das elites sociais”.
“Isso porque apontou a possibilidade da guerra civil, isto é, que a desobediência civil dos abolicionistas (o incentivo à fuga de escravos) poderia ser respondida por milícias privadas a soldo de proprietários de escravos resistentes à abolição. Estas duas mobilizações políticas correriam ao largo do Estado, tirando, assim, das elites políticas a possibilidade de dirigir o processo político em torno da escravidão”, diz a autora de Flores, Votos e Balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88).
De Penha do Rio do Peixe a Itapira
Nos anos seguintes, diz o historiador itapirense, a elite local tenta apagar a memória do crime. Um dos maiores indicativos nesse sentido, para ele, foi a mudança de nome da cidade em 1890.
O idealizador do projeto foi um dos próprios acusados, John Jackson Klink, que também era presidente da Câmara Municipal. O argumento era que “a Penha” estava marcada de maneira muito negativa no cenário nacional.
Joaquim Firmino foi enterrado em Mogi Mirim — até hoje não se sabe a localização exata. A esposa, Valeriana, viveu por mais três décadas, tendo de cruzar com os algozes do marido na cidade.
O delegado não tem mais descendentes vivos. “Uma neta faleceu nos anos 90 sem deixar herdeiros”, diz Apolinário.
A história ficaria guardada por quase um século, até um memorialista resgatá-la na década de 1950. A obra, entretanto, só seria publicada nos anos 2000, ele acrescenta, em meio à pressão de descendentes dos acusados para que a memória do caso não voltasse a circular.
Apolinário, que há anos também pesquisa sobre o passado da cidade, organizou em 2016 uma exposição sobre o “crime da Penha” no Museu Histórico de Itapira, onde é coordenador, e segue contando às novas gerações sobre o caso.
Quem matou o delegado?
Cerca de 20 pessoas foram acusadas pelo assassinato.
Para preparar sua defesa, eles contrataram por uma grande soma Brasílio Machado, advogado famoso na época, professor da Faculdade de Direito de São Paulo — que conseguiu, ao final, que todos os réus fossem absolvidos.
O processo está hoje no Museu do Palácio da Justiça em São Paulo, como documento histórico.