1964 é aqui e agora. Por Roberto Numerian

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Por Roberto Numeriano

A queda do ministro Romero Jucá, por meio de editorial-despacho de O Globo, revelou não apenas a extensão e profundidade da conspiração e golpe em curso, mas, sobretudo, a instabilidade de um governo que não se institucionaliza nem na forma, nem no conteúdo. E uma das fases fundamentais de um golpe de Estado é se instituir por dentro da máquina do regime usurpado, estruturando-se num discurso e numa prática reconhecidos pela opinião pública como legítimos.

O senador Jucá, na sua gravação suja e infame, demonstrou o que os legalistas denunciam como o objetivo central da conspirata criminosa: refrear a Operação Lava Jato a partir da degola de um “boi-de-piranha” político, ou seja, a presidente Dilma. Estivéssemos, ainda, sob um Estado de Direito democrático mínimo, bastaria essa imundície gravada para o Senado sustar o golpe na próxima votação, evitando o chacinamento final da presidente e da legalidade democrática. E O STF sair à caça dos autores (como fez contra Delcídio, por motivos menos graves).

O que me aterroriza, nem é isso. O que me aterroriza é constatar que a PGR de Janot e o STF das “vetustas togas negras” estava na posse de uma bomba suja, um libelo criminoso de uma quadrilha cujo objetivo era obstruir a Justiça (mesmo a da Casa-Grande), a qual, para tanto, decidira derrubar uma presidente da República. Quero crer que nem todos os ministros sabiam dessas provas criminosas gravadas, mas bastará que apenas um ministro soubesse da mesma (e ficasse calado) para que a instituição toda caia na lama do golpe de Estado travestido de legalidade parlamentar.

A gravação de Machado fez cair o segundo nome do golpe continuado. Cunha ainda arrota poder (que, de fato, possui); Jucá foi exonerado pela Globo e se refugiou no foro do mandato. Restam outros da junta de governo, e nenhum deles se salvará, se o Estado de Direito sair do calabouço imoral onde foi jogado pelos golpistas. Os outros dois áudios foram feitos por Machado para pescar Renan e Sarney na bandalheira – dupla deletéria que não por acaso está na cena do crime de lesa-democracia. O próprio Machado disse que os dois áudios restantes são, por assim dizer, “café pequeno” diante da confissão de Jucá. Fôssemos compará-los com a lista de vulgos constantes da folha de propinas da Odebrecht, quem sabe até pedíssemos às togas negras e aos juízes da Justiça e Direito seletivos da Casa-Grande a absolvição desses aprendizes de malfeitos…

Até agora, por parte de cientistas políticos facciosos e jornalistas chapas-brancas (daqui de Pernambuco e de outras terras), não vi nenhuma análise neutra e imparcial do novo quadro (alguns já se amoitaram). Talvez queiram o golpe assinado pelos autores e com firma reconhecida em cartório. Não é preciso ir longe para reconhecer que é um golpe de Estado: a OAB nacional apoiou (como em 1964); o STF chancelou e sabia (como em 1964); a FIESP rosnou (como em 1964); a mídia de direita capitaneou (como em 1964); parcela da classe média e toda a elite embarcou (como em 1964); já há uma censura, embora mitigada e difusa, na comunicação pública (como em 1964); e os EUA negaram que é golpe (como em 1964). O ativismo judicial seletivo dos juízes de província e a ação de uma Polícia Federal transfigurada em capitã do mato já são variáveis novas para análises futuras, assim como o papel em si jogado pelo parlamento no golpe.

Diante da bandalheira golpista, poderíamos arriscar que o governo permanece numa “zona cinza”. A rigor, não houve, em termos da necessária institucionalidade de que toda nova ordem política deve se revestir, a assunção e posse do poder pelos golpistas. E uma das razões reside menos na questão da interinidade do que na sua elementar ilegitimidade. Os atos de resistência democrático-legalista (ocupações, manifestações, vaias a “autoridades”, campanha internacional, mídia estrangeira etc) são a expressão fiel de uma maioria que foi ultrajada pelo golpe, e que sabe que não pode calar. Curiosamente, o silêncio (envergonhado?) dos inocentes úteis de boa-fé, traídos na sua ingenuidade, é quem mais denuncia o caráter do golpe que recusa sair do armário dessa infâmia histórica

O vazio de poder se dá porque a junta de governo ocupa uma espécie de limbo político onde inexistem aquelas classes que serviram como meio de vocalizar a campanha golpista, via mote do combate à corrupção, as quais fizeram girar o engenho das manifestações que imaginaram capturar o amor à pátria porque se vestiam com a camisa da seleção mercenária da CBF. Além de cheirar mal e ser mau, algo está travado por dentro do arranjo de governo golpista e na sociedade.

A junta provisória contará hoje com o Senado para acelerar a deposição fraudulenta? Difícil prever, no momento. O que Renan e Sarney conversaram, sem que soubessem que estavam sendo gravados, com o delator Machado? Se é algo mais do crime do golpe, por que o STF e a PGR continuam em silêncio? Não bastaria o escárnio do crime atual? Aguardariam o golpe se consumar com a prisão de Lula e a cassação de Dilma? O que sabemos é que o relógio do golpe começa a atrasar em face do tempo histórico da dinâmica da resistência nas ruas legalistas e nas instituições democráticas.

Roberto Numeriano apresenta-se como jornalista, professor e pós-doutor em Ciência Política, autor dos livros “O que é Guerra” e “O que é Golpe de Estado” (este, em co-autoria com Mário Ferreira), pela Editora Brasiliense. Tentou ser prefeito do Recife por um partido nanico (PCB mais PSOL), mas foi derrotado.

Extraído do Blog Jamildo Melo

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